APAGÃO
Rosemary Bars Mendez (*)
Acompanhando as notícias nacionais sobre o apagão e o programa do governo federal incentivando a construção de termelétricas no Brasil, fico com a impressão de que muitos jornalistas foram os primeiros a comprar o pacote do governo, antes mesmo de qualquer empresa interessada nos milhões de recursos que estão sendo disponibilizados por bancos oficiais. Talvez essa atitude seja mesmo o medo de ficar no escuro durante algumas horas e ter que acreditar na história de que a culpa é de São Pedro.
Então, se não chove, vamos espalhar termelétricas aos quatro cantos do país, com gás cotado em dólar, para abastecer não as usinas, mas as relações comerciais entre Brasil e Bolívia. Na ponta deste iceberg, o consumidor, que com certeza pagará, no final do mês, a conta da energia produzida com base na variação cambial, além de enfrentar os problemas ambientais oferecidos pelas termos.
Será que a chamada grande imprensa se acostumou com o discurso de que é preciso investir para que o país não pare de crescer e, embalada nesta canção, não consegue ouvir outros ritmos que tocam o país? Ou será que o ritmo de produção diária da notícia impede os jornalistas de abrirem os olhos, ou melhor, o espaço, às ações da comunidade cotada para ser presenteada com uma termelétrica? Será que somente com as termelétricas poderemos enfrentar o apagão?
Posso garantir que nem todo cidadão comum aceita pagar o preço que o governo quer repassar com o pacote das termelétricas.
Uma sociedade unida
Na região de Piracicaba há um intenso movimento contrário ao programa energético do governo federal. Os moradores economizam energia, estão apagando as luzes, desligando computadores, microondas, máquinas de lavar. Estão fazendo o esforço necessário para manter a cota determinada pelo governo. E sem reclamar.
Porém, a mesma comunidade não está aceitando calada o anúncio de que a cidade de Americana ? interior de São Paulo ? está na lista para receber uma usina termelétrica. Pelo projeto, denominado Carioba II e elaborado pelo consórcio InterGen, Shell e CPFL, a usina deve ser instalada no Rio Piracicaba, que corta aquele município e pertence à Bacia dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. A bacia é uma das mais críticas pela escassez de seus recursos hídricos e poluição pelo não-tratamento de esgoto urbano, segundo levantando feito pela Agência Nacional de Água (ANA).
O projeto da Carioba II prevê um investimento de US$ 600 milhões, consumirá água suficiente para abastecer um município com cerca de 140 mil pessoas e vai gerar 50 empregos diretos, quando estiver em funcionamento.
A primeira cidade a se manifestar contra a usina foi Piracicaba ? cidade que leva o nome do rio e a última da bacia ?, a 150 quilômetros de São Paulo. O movimento contrário ganhou força em maio, quando o Jornal de Piracicaba iniciou campanha de esclarecimento sobre os prejuízos ambientais que a usina trará à região.
O Jornal de Piracicaba tomou uma posição firme e, em sua linha editorial, definiu que nenhum megaempreendimento ? como a Carioba II ? será aceito na bacia, que deve ser recuperada e preservada. O movimento ganhou adesão de várias entidades civis e sindicais, da Universidade Metodista de Piracicaba, da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, da Escola Superior de Agricultura de Piracicaba/USP, de estudantes secundaristas, de associações de bairro, partidos políticos, da Câmara de Vereadores e da Prefeitura Municipal. Tornou-se tema de debate público em vários pontos da cidade. As escolas públicas e particulares incentivaram as discussões nas aulas de Geografia e Meio Ambiente.
O movimento conseguiu, em 30 dias, 64.394 assinaturas contra a instalação da usina. Já distribuiu mais de 20 cópias de um dossiê jornalístico sobre o movimento, com reportagens que mostram o impacto ambiental negativo que a usina representará para a região. O dossiê está nas mãos do governador Geraldo Alckmin, com os secretários estaduais Ricardo Trípoli e Antonio Carlos de Mendes Thame, com os prefeitos das cidades da região de Piracicaba, com o Ministério Público, com o Conselho de Defesa do Meio Ambiente.
Qualidade de vida
A Assembléia Legislativa de São Paulo instalou a Frente Parlamentar em Defesa do Rio Piracicaba. Deputados federais, que participam da comissão que analisa a crise energética no Congresso Nacional, já discutiram com o ministro Pedro Parente que a comunidade da região de Piracicaba prefere ter água para beber do que luz gerada por uma termelétrica.
Aos poucos, o movimento conseguiu a adesão de mais cidades, como Santa Bárbara D?Oeste, Águas de São Pedro e São Pedro, e está sendo apontado como modelo de resistência à instalação de termelétricas no país.
Todas as cidades envolvidas têm rios que as cortam, enfrentam o racionamento por causa da estiagem e não querem ver o pouco da água disponível desviada para resfriar as turbinas de uma usina termelétrica. Isso sem contar que, se instalada, o ar ficará poluído. Uma preocupação endossada pelo Ministério Público, que protocolou ação cautelar pedindo explicações para os empreendedores sobre a geração não de energia, mas de gazes poluentes que serão lançados na atmosfera no momento em que a usina entrar em funcionamento.
Para a região de Piracicaba, a qualidade de vida, representada pela água e pelo ar limpo, está acima de qualquer discurso desenvolvimentista.
É uma pena que essa música se perca na relação de importância das pautas diárias produzidas pela grande imprensa.
(*) Jornalista, chefe de redação do Jornal de Piracicaba e professora de Jornalismo no ISCA-Faculdades, em Limeira (SP)