Monday, 30 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1307

Um Jorge amado por todos

SALVE JORGE (1912-2001)

Deonísio da Silva (*)

Lygia Fagundes Telles caminhava por São Paulo no dia seguinte à morte de Jorge Amado. O prestigioso jornal francês Le Monde já publicara na edição da quarta-feira (8/8/01) o artigo da escritora "O coração solitário da nação", revisão comovente e antológica do que o escritor significara para o Brasil. Foi abordada na rua: "a senhora não é Lygia Fagundes Telles, a escritora? Ah, eu sabia! Um sujeito ganhou 300 reais no Sílvio Santos porque acertou o título de um livro seu". Lygia quis saber se a ? como direi? ? transeunte sabia qual tinha sido o livro. Não sabia. E disse que o acertador também jamais lera um livro da autora, mas o importante é que não errara o título. Confessou que ela também nunca lera um livro de Lygia.

Assim é o Brasil. O leitor ouviu o galo cantar, não sabe bem aonde, mas tem vaga idéia do que acontece. Milhões de brasileiros sabem quem é Lygia Fagundes Telles que, entre tantos feitos notáveis, é colega de Jorge Amado na Academia Brasileira de Letras. E provavelmente todos os brasileiros sabem que Jorge Amado era nosso maior escritor. Ainda que fosse o mais lido de todos, quantos brasileiros podem dizer que leram um livro dele? Muitos, certamente. De todo modo, porém, em número inferior aos que viram filme, novela ou especial de televisão baseados em obra sua.

Como escreveu certa vez Antonio Candido, entre os deveres dos intelectuais está o de esclarecer, ordenar as coisas com o fim de um melhor entendimento. No caso de Jorge Amado, por motivos óbvios, a imprensa tinha o dever de estar melhor preparada para destacar os feitos memoráveis de um escritor que estreara aos 18 anos e era, não apenas o maior escritor do Brasil, mas também um dos maiores do mundo.

Entre as liquidações processadas nas últimas décadas do século passado, houve uma que atingiu em cheio o mundo literário. Escritores como Jorge Amado e Erico Verissimo não têm mais vez, não têm mais lugar. Mudou o perfil do escritor, no Brasil e no mundo. Coube à França, a nação mais literária do mundo segundo a Unesco, ainda no século 19, apresentar o último grande enterro de escritor, o de Victor Hugo, em 1885. No Brasil, o de Machado de Assis, em 1908, já marcava as nossas diferenças. Muito lido em vida, Machado não fora um escritor popular. E ainda não é. Para que seja, há alguns requisitos que ainda não foram cumpridos. Nossos indicadores escolares, salvo alguns arquipélagos, situam-se entre os piores do mundo. A alfabetização em massa ainda está demorando. O círculo vicioso se intensifica. Não lemos porque o livro é caro. O livro é caro porque as tiragens são baixas. Enquanto o brasileiro tiver que escolher entre livro e leite, livro e pão, livro e remédio, livro e transporte, o livro será um luxo.

Mas Jorge Amado era o mais popular de nossos escritores. Foi a primeira vez, desde Machado de Assis, que a morte de um escritor mexeu tanto conosco. E com o mundo. Nossa imprensa adora exéquias e velórios. Reflete nosso gosto pela morte. Nosso inconsciente religioso, cheio de sincretismos diversos, demonstra nessas horas a secreta convicção de que a morte não é o fim de tudo. Ao contrário, no caso dos chamados vultos da pátria, apenas o recomeço.

Tanto festejamos a morte de pessoas ilustres que damos a entender que estamos comemorando o seu passamento. Foi assim com Ayrton Senna, foi assim com Tancredo Neves. E seguimos o preceito que os romanos trouxeram da Grécia: de mortuis nihil nisi bonum (dos mortos, nada a não ser o que é bom).


Falta de intimidade

Ao lado do artigo de Lygia, merece destaque a revista Época, publicada na semana que antecedeu a morte do escritor. Zélia Gattai mostrou a revista ao marido e leu-lhe trechos da matéria assinada por Augusto Nunes. E no Estado de S.Paulo de domingo (12/8), João Ubaldo Ribeiro, inconsolável, exagerou: "Heródoto escreveu que o Egito é um dom do Nilo e nós somos um dom de Jorge". Rachel de Queiroz, sua colega de jornal e de Academia ignorou o escritor em sua coluna semanal no dia anterior, sábado. Ignácio de Loyola Brandão abriu sua coluna de sexta-feira (10/8), no Caderno 2, saudando o escritor como rei. A revista Veja deveria comemorar. Como utiliza critérios de mercado para se ocupar de livros, agora só tem que se ocupar de Paulo Coelho e outros livros de auto-ajuda. Sua matéria sobre Jorge foi exemplo de que também os que autodenominam críticos literários não lêem, apenas vêem televisão.

O tratamento mais jornalístico foi dado em O Estado de S.Paulo, em sua edição de quarta-feira, dia 8. Com chamada de capa e foto de destaque do velório, deu-lhe três longas páginas, repletas de informações essenciais, incluindo a repercussão de sua morte no mundo, e o destaque da publicação de sua obra para 36 idiomas em 46 países.

Em suma, a morte de Jorge Amado, cuja cobertura deixou a desejar em sua pátria, foi melhor tratada em outros países. E mais uma vez brilhou na escuridão que se avizinhava a luz de José Saramago rechaçando em entrevista a Alberto Dines, no Observatório na TV, a erva daninha que ameaçava grassar em nossa imprensa, que adora repercutir boutades insensatas [
veja
PRÓXIMO TEXTO
para transcrição da entrevista, título "Sobre Jorge"
]. O único Prêmio Nobel das literaturas de língua portuguesa mais uma vez serviu-se de sua costumeira conversa clara ao comentar a informação de que alguns espíritos de porco ameaçavam creditar o sucesso do escritor ao Partido Comunista, como se não fosse necessário ter obra, apenas divulgação: "É uma vergonha, se fazem isso com o corpo do escritor ainda quente, o que não dirão depois?"

Já tinham dito, meu caro José Saramago. E em excelentes universidades. Com efeito, já havia sido cometido, em décadas anteriores, um erro palmar de interpretação: atribuir ao escritor juízos de personagens que fizeram ao longo de tantos romances memoráveis o que Jorge Amado mais fizera em vida: a denúncia social, a incapacidade de nossas elites de ouvir o povo, mirar-se em seus exemplos e resolver os problemas como quem trabalha resolve, isto é, trabalhando, e não vivendo de cirandas financeiras e outras extorsões.

Não é que não se possa ou não se deva criticar um escritor. Mais do que direito, é obrigação de críticos, pesquisadores e docentes. Mas endeusar ou satanizar não são formas de se fazer crítica. Em suma, a maioria dos editores não sabe pautar a cobertura de autores e livros. E os leitores mereciam maior respeito. Alguns cronistas perderam considerável oportunidade de esconder sua incultura, sua falta de intimidade com livros. Ganharam o troféu de ignorantes do ano aqueles que, convictos de que o Brasil não teve nenhuma cultura antes de Caetano Veloso, esqueceram de que uma literatura se faz com linhagens. Jorge Amado não teria sido possível sem vários dos que o antecederam, a começar por nomes como Aluísio Azevedo, Júlio Ribeiro e Manuel Antônio de Almeida, este último de especial predileção de Jorge Amado. E será que Jorge Amado seria o mesmo sem seus colegas do movimento literário conhecido como Romance de 1930?

Essas questões foram apenas arranhadas. Mas milagres acontecem. E no século da televisão nossos escritores mais populares fizeram-se sem ela. Precederam o poder da imagem ao se constituírem como genuínos filhos e habitantes da Galáxia Gutenberg. Quando a imagem precisou melhorar a mensagem, recorreu a seus livros.

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, doutor em Letras pela USP; escreve regularmente nas revistas Época e Caras, e em <www.eptv.com.br>. Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros do Campo e De Onde Vêm as Palavras

    
    
              

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