SALVE JORGE
Intervenções do escritor e Prêmio Nobel José Saramago e do crítico literário Wilson Martins no Observatório da Imprensa na TV n? 163, exibido pela Rede Pública de Tv em 7/8/01.
JOSÉ SARAMAGO
A.D. ? O presidente Fernando Henrique Cardoso disse que o Jorge Amado foi o grande intérprete do Brasil. Eu lhe perguntaria, mestre Saramago, o Brasil conseguirá produzir outro intérprete a altura?
José Saramago ? Eu não sei se Jorge Amado foi o grande intérprete do Brasil. Jorge Amado foi em primeiro lugar um grande escritor, uma grande pessoa. Um grande escritor que no seu trabalho literário, evidentemente, o mundo que ele pôs nos seus livros é o mundo brasileiro. Que este mundo, através da obra dele, que tenha chegado muito longe, que se tenha espalhado por todo o mundo, uma vez que, como se sabe, a obra dele está traduzida em quase 50 línguas ? enfim, muitas dezenas de milhões de pessoas. Evidentemente que, desse ponto de vista, pode-se considerar o Jorge Amado como o grande intérprete, digamos, da sua terra, do seu país. Mas eu acho que o Jorge Amado é muito mais do que isso. Sem preocupações de localismo, regionalismo, o que o Jorge Amado é, pelo menos do meu ponto de vista, é um grande escritor universal. Agora, se o Brasil terá outros grandes interpretes, não sei, eu gostaria de advinhar o que se vai passar no futuro, mas o mundo que o Jorge Amado levou ao mundo, quer dizer, o mundo brasileiro que ele levou ao mundo é de alguma forma o mundo que está em extinção. Não é por acaso. Quando eu digo que está em extinção estou a pensar em muitas coisas. Estou a pensar o que está a acontecer na Amazônia. Quem no futuro transmitirá ou será intérprete dessa mentalidade provavelmente será um escritor que agora tem 20 anos e que aí, quando amanhã tiver 40 ou 50, saberemos se realmente ele pode ser, nesse aspecto, um sucessor do Jorge Amado. De todo o modo, o Brasil tem hoje uma plêiade de grandes romancistas, de grandes poetas, que cada um no seu trabalho, naquilo que faz, são também intérpretes do Brasil.
A.D. ? Algumas pessoas aqui no Brasil hoje falaram, alguns críticos, jornalistas, que a primeira etapa da celebrização de Jorge Amado teria sido porque ele era comunista e a máquina do partido teria ajudado. E que, depois, a sua consagração foi porque ele rompeu com o Partido Comunista e aí ele foi ajudado por aqueles que eram contra, anticomunistas. Como vê essa leitura?
José Saramago ? Se isto está a ser dito no Brasil agora, quando de alguma forma o corpo de Jorge Amado ainda está quente, eu acho simplesmente uma vergonha. Acho uma vergonha que se diga isso, quer dizer, o mérito da obra de Jorge Amado, o grande escritor que ele foi, não tem importância nenhuma, porque durante um tempo ele foi ajudado promocionalmente pelos comunistas e depois no outro tempo foi ajudado promocionalmente pelos capitalistas. A obra em si não tinha importância nenhuma. É isso que se pretende insinuar ou afirmar. Digo com toda a franqueza, meu caro Alberto Dines, que me parece isso uma vergonha total e lamento que pessoas responsáveis, críticos, jornalistas do Brasil, em lugar de olharem com respeito e com a atenção que merece não só a pessoa do Jorge Amado, estejam a entreter-se agora com questões que certamente não têm efetivamente qualquer sentido.
WILSON MARTINS
A.D ? O senhor está militando na crítica literária há pelo menos meio século. Como vê a obra de Jorge Amado à luz do que estamos falando aqui, inclusive à luz do que o Mestre Saramago disse agora há pouco numa entrevista pelo telefone?
Wilson Martins ? Neste período que estou trabalhando na crítica brasileira, praticamente acompanhei quase toda carreira de Jorge Amado como escritor. Ele começou pouco antes que eu mesmo comecei a fazer crítica, mas de qualquer maneira eu posso dizer que a partir do seu segundo livro, eu já fazia crítica, já escrevia nos jornais a respeito dele, e por isso tive oportunidade de escrever a respeito praticamente de toda sua obra que, como todo mundo sabe, é uma obra com altos e baixos. Naturalmente eu acompanhei isso com seriedade, com amizade ? ele próprio em conversa comigo, há muitos anos, reconheceu isto. E pude então formar esta opinião de que o Jorge Amado foi de fato o escritor mais representativo daquele grupo de nordestinos dos anos 30 que escreviam no Rio de Janeiro aquela nova literatura, documentária social e até socialista. Houve um número enorme de epígonos, de escritores menores, mas os três grandes eram realmente ele, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Mas ele foi o mais representativo deste grupo por ser ao mesmo tempo um documentarista social, um ideólogo político e um escritor muito ligado ao ramo daquela literatura que se dirigia ao público, que era encarada naquele momento como o chamado "realismo socialista". Nessa obra há livros que marcam cada período. O Jorge Amado é um escritor de fases. Na primeira fase foi realmente o regionalista de tendências ideológicas e políticas e o ápice desse período em sua vida foi claramente "Terras do sem Fim" ? que marcou um passo gigante com relação ao interior, que era mais ou menos a obra de um improvisador, de um escritor espontâneo que ele sempre foi, que é de fato o seu atrativo maior.
Aquelas obras que eram por assim dizer instintivas, foram substituídas, a partir de "Terras do sem fim", pelo escritor consciente de um processo social. É curioso que existe um grande romance desta fase ideológica, na verdade um romance de capitalismo, que foi o romance de conquista das terras do cacau, da construção do grande porto de Ilhéus e assim por diante. No fundo, sabendo ler, foi um épico da conquista capitalista das terras do cacau. Este período vai durar certamente até o aparecimento de "Gabriela, Cravo e Canela", que marcou uma fase inteiramente nova. Eu escrevi naquele tempo que o escritor do realismo socialista não sabia sorrir nem rir. A partir de "Gabriela", Jorge Amado começa sorrir e a rir, e é um salto extraordinário em uma série de qualidades de espontaneidade, é uma nova fase do Jorge , que ele naturalmente passou a repetir um pouco e que vai culminar em "Tocaia Grande", que é fim, o fim nos dois sentidos dessa palavra, o fim desta tendência.
E houve uma terceira fase Jorge Amado, que era o Jorge dos romances urbanos. Nesta fase eu coloco como obra importantíssima, talvez a melhor de toda sua carreira, que é "Tenda dos Milagres". Esse é o Jorge Amado que eu acho o maior de todos. Nesse período dos romances urbanos ele passou a escrever livros com alguma facilidade a respeito de temas pitorescos, alegres e talvez um pouco salazes, mas, naturalmente, fazendo um grande sucesso de público. Aqui no Brasil e fora do Brasil ele foi o romancista que mais encarnou a nossa tendência para o exótico. Os brasileiros gostam muito de se ver a si mesmos como exóticos e os romances do Jorge Amado respondiam de uma maneira por assim dizer orgânica a essa tendência do nosso espírito. E o curioso é que para os europeus e norte-americanos essa é a imagem do Brasil ? e isso explica, realmente, o seu grande sucesso internacional além realmente do sucesso político que eram as suas traduções em todos os países da antiga União Soviética. Mas o Jorge Amado exótico, inclusive do ponto de vista das suas relações amorosas, é muito curioso e responde bem a uma das tendências do nosso espírito. Tudo isso faz de Jorge Amado um escritor paradigmático não só dos anos 30, eu creio, mas também em geral na literatura brasileira de ficção durante um largo período.
A.D. ? Professor, para concluir, como é que o senhor vê o panorama daqui para frente, quer dizer, os novos Amados que vão surgir na nossa literatura?
Wilson Martins ? Eu acho que não haverá novos Amados. O novo Amado surgiu em 1946, com Guimarães Rosa e, em seguida, em 1956, melhor ainda com os romances de Guimarães Rosa. Foi uma guinada extraordinária em matéria de tendência e de inspiração. De forma que um dos problemas que explica o relativo, vamos dizer, esquecimento de Jorge Amado a partir de Guimarães Rosa foi justamente isso. Guimarães Rosa trouxe um novo tipo de criação literária, um novo tipo de inspiração, e colocou isso tudo num plano completamente diferente. E, veja bem, foi em grande parte um espécie de releitura da ideologia, porque o romance de Guimarães Rosa é ideológico mas não naquele sentido, por assim dizer, direto, esquemático, com que os realistas socialistas escreviam nos anos 30.