A leitura dos jornais pode nos permitir mergulhar na alma e pensamento de nossas elites econômicas, políticas e sociais.
Artigo publicado no jornal O Globo na segunda-feira (11/4), assinado por Ilimar Franco, versa sobre possível conversa que teria sido – no condicional porque não dá para acreditar em tudo que se lê nos jornais – travada entre as maiores autoridades deste país, quais sejam o presidente da República, da Câmara de Deputados, do Senado, do Supremo Tribunal Federal, além de dois ex-presidentes da República, um deles senador da República e outro intelectual respeitado internacionalmente.
Embora o encontro não tenha se dado para a discussão dos problemas mais pungentes do país, esperar-se-ia que a conversação, revelada pelo profissional que assina a matéria, se desse em termos que demonstrassem, ainda que minimamente, o espírito republicano de personalidades que têm sob sua responsabilidade os destinos de nosso país.
Apesar de desgastado, o vocábulo ‘republicano’ – que vem da res publica dos romanos, quando a monarquia se esboroou, e retomada no século 16 com Jean Bodin, ao desenvolver a primeira teoria da soberania, para quem a ‘república é o governo reto do que é comum a todos’ – merece ser aqui lembrado.
Capitanias hereditárias
Se realmente a conversa aconteceu tal qual descrito na mencionada matéria, é altamente preocupante.
Estaria o presidente da República descontente com o requerimento do procurador-geral da República, diante do Supremo Tribunal Federal, pela abertura de investigação do presidente do Banco Central por condutas anteriores à sua nomeação. Ter-se-ia argumentado que essa iniciativa repercutiria negativamente sobre a imagem do Brasil perante o mercado financeiro internacional.
Repercutiria mal, então, num país sempre criticado pelos altos níveis de corrupção, tomar providências para apurar se o detentor da autoridade monetária é digno de ocupar o cargo que deve dar credibilidade ao sistema financeiro nacional? Ou repercutiria mal se, ao final, após as investigações se constatasse irregularidades capazes de embasar a responsabilização penal do ocupante da presidência do Banco Central?
Se observado fosse o princípio republicano, o cuidado com a coisa comum de todos, a coisa pública, a iniciativa do procurador-geral da República, chefe do Ministério Público da União, não deveria causar qualquer perplexidade e/ou descontentamento. Trata-se, tão-somente, da observância da lei.
Será que se teme resultado semelhante ao do processo criminal que condenou um ex-presidente do Banco Central por peculato (artigo 312 do Código Penal, apropriar-se o funcionário público ou permitir que bem público seja desviado em proveito próprio ou alheio) por força da ajuda, inexplicável ao comum dos mortais, ao Banco Marka-FonteCindam, no curso do governo do ex-presidente da República integrante da comitiva do Aerolula?
Outra vítima do que se denominou ‘abuso do Ministério Público’, nos termos da matéria aqui considerada, seria a família de outro ex-presidente, hoje senador da República. Em época de campanha presidencial de 2002, uma diligência policial teria flagrado a detenção de valores monetários, em empresa de familiares do ex-presidente da República, cuja origem era de difícil elucidação. Essa investigação teria custado a candidatura à presidência da República da filha do ex-presidente. Parece que o regime das capitanias hereditárias ainda não acabou…
A salvo da lei
Se tais comentários realmente aconteceram, entre altas personalidades da vida política nacional, o que há de comum neles é que todas as iniciativas em defesa da coisa pública, da res publica, sempre causam desconfortos e/ou perturbações de ordem privada aos detentores do poder político e/ou econômico e, na visão desses gestores da coisa pública, essas situações passam a ter a mesma relevância das questões verdadeiramente de interesse público.
Num país cuja imprensa noticia diariamente fatos envolvendo parlamentares, ocupantes de cargos no Executivo e no Judiciário, enredados em operações difíceis de serem explicadas, as quais, por tal razão, estão a exigir rigorosa investigação para a sua cabal elucidação, num país assim é preocupante que as mais altas autoridades vejam, como única solução para o problema, o cerceamento de servidores públicos pagos para, exatamente, buscarem, via pedidos de informações, esclarecer os fatos e, em caso de violação da lei, exercer o direito do Estado de aplicar as sanções previstas para essas condutas que sangram os recursos públicos.
Enquanto detentores do poder político se queixam das iniciativas do Ministério Público, ou seja, reclamam da aplicação da lei, do outro lado da vida real a coisa se dá de forma diversa.
Editorial da Folha de S.Paulo (‘Cegueira da lei’) de sábado (16/4) analisa o caso de empregada presa, há onze meses, pela tentativa de furto de mercadoria no montante de 24 reais que, mesmo presa, sofreu violência física – ou seja, sob a custódia do Estado foi vítima de agressão o que lhe custou a perda de visão de um dos olhos. Apesar do valor do dano ao patrimônio privado ser irrisório, não logrou a presa revogação de sua prisão por ser reincidente, isto é, já teria cometido outro delito.
Parece que a lei só consegue valer quando não se opõe resistência à sua aplicação. Obviamente a empregada doméstica não pode suportar os elevados honorários de advogados, que podem se valer de todos os meios para garantir aos seus representados ficarem a salvo da aplicação da lei. Lembre-se que o banqueiro Salvatore Cacciola, do caso do Banco Marka, conseguiu ordem em habeas corpus, perante o Supremo Tribunal Federal, para não ser preso, acabando por se evadir do país, passando muito bem, obrigado, na Itália. Um ex-prefeito de São Paulo está respondendo solto a processo por ser o detentor de elevadíssimas somas de dólares americanos, mantidas em bancos estrangeiros, sem que tenha uma razão plausível para tamanha fortuna.
República frágil
Essa ‘mania nacional’ de se chocar com a aplicação da lei teve outra manifestação no editorial do Estado de S.Paulo (15/4), sob o título ‘‘Reality show’ da PF’. Desta feita, as críticas não são somente para o Ministério Público. Não faltou também para a Polícia Federal. As críticas decorrem das notícias sobre diligências policiais realizadas no curso de investigação de práticas que denunciam a falta de lisura na condução de atividade prestadora de serviços públicos, concedidos pela União à iniciativa privada por força das privatizações.
O editorialista destaca a ação da Polícia Federal em caso envolvendo crime do denominado ‘colarinho branco’, ou seja, contra o sistema financeiro. Não se trata mais de mera tentativa de furto praticado por empregada doméstica, cujo dano seria 24 reais. Não!
Como os suspeitos não são do grupo dos três Ps – preto, pobre e prostituta – não poderiam ter seus nomes conhecidos e/ou divulgados. Por quê? No governo anterior, as privatizações das teles renderam muitas matérias, principalmente no que respeita à disputa entre grupos interessados, quando veio a público que se buscava privilegiar uns em detrimento de outros. No presente, chega ao conhecimento público notícias sobre práticas ilegais cometidas no interesse de um dos possíveis beneficiados naquelas privatizações.
O editorial, para sustentar a crítica contra a ação policial e o Ministério Público – de novo –, relembra episódios alguns dos quais fizeram parte da conversa anteriormente mencionada. Os casos são apontados como exemplos de falsas imputações, por ausência de condenação pelo Poder Judiciário. Ocorre que não constou do mesmo editorial que muitos casos não redundaram em condenação formal por terem os investigados/acusados logrado sustar o prosseguimento das investigações porque, neste Estado Republicano, as leis não são aplicadas da mesma forma.
Neste sentido é a frase lapidar do jornalista Janio de Freitas, em sua coluna na Folha de domingo (17/4), que conseguiu sintetizar esta mazela nacional: ‘Punir transgressões à lei vai se tornando menos solução do que problema’.
O episódio relativo ao crime de racismo perpetrado pelo jogador argentino Desábato contra o brasileiro Grafite, bem se presta para demonstrar, mais uma vez, essa ‘mania nacional’: de expressar perplexidade toda vez que a lei é aplicada em relação a condutas corriqueiras para aqueles do ‘andar de cima’, na expressão de Elio Gaspari.
O que parece bem evidente é que, no Brasil, o uso de expressão como a utilizada pelo jogador argentino é de emprego tão corrente que os que dela se utilizam não se vêem como praticantes de atos de racismo. Assim, então, preferem por ser mais cômodo criticar a lei e aqueles que têm obrigação de velar por sua aplicação. Houve até quem dissesse que a lei não poderia ser aplicada porque quem violou a lei não é brasileiro, e que a lei na Argentina seria diferente – o que é um disparate.
A frase cortante de Janio de Freitas evidencia a fragilidade da República no Brasil: a dificuldade de fazer valer a lei para todos.
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Procuradora regional da República, associada do Instituto de Estudos ‘Direito e Cidadania’ e do Movimento do Ministério Público Democrático