SALVE JORGE
"A fraternidade de Jorge Amado", copyright Folha de S. Paulo, 7/8/01 (publicado originalmente na Folha da Manhã, 26/10/1943)
"Dá vontade de permanecer. Dá vontade de pegar a viola e cantar. É tal a força sugestiva desse novo Castro Alves que a Bahia criou que o Brasil homérico nele se espreguiça e modorra como numa manhã do dilúvio.
Um dia no Rio, quando eu procurava na extinta editora Ariel, de Gastão Crulz, um volume de ?Serafim Ponte Grande?, fui interpelado, por um menino de buço que não conhecia, sobre o estado de minhas relações com um poeta querido. Como essa amizade estivesse em crise, respondi: ?Seu muito infiel…?. E o castigo veiu (sic). Nunca, em toda a minha vida de meio século, fidelidade nenhuma ia me prender como essa àquele adolescente que se chamava Jorge Amado.
Devo-lhe mais que uma ressurreição. Quando, depois de uma fase brilhante em que realizei os ?salões? do modernismo e mantive contacto com a Paris de Cocteau e de Picasso, quando num dia só da débâcle do café, em 29, perdi tudo, os que se sentavam à minha mesa iniciaram uma tenaz campanha de desmoralização contra meus dias.
Fecharam então num cochicho beiçudo o diz-que-diz-que que havia de isolar minha perseguida pobreza nas prisões e nas fugas. Criou-se então a fábula de que eu só fazia piada e irreverência, e uma cortina de silêncio tentou encobrir a ação pioneira que dera o ?Pau Brasil?, donde, no depoimento atual de Vinicius de Moraes, saíram todos os elementos da moderna poesia brasileira.
Foi propositadamente esquecida a prosa renovada de 32, para a qual eu contribuí com a experiência das ?Memórias Sentimentais de João Miramar?. Tudo em torno de mim foi hostilidade calculada. Aquilo que minha boa-fé pudera esperar dos frios senhores do comércio, veiu (sic) nos punhais de prata com que falavam os poetas, os críticos e os artistas. Resignava-me ao clima absoluto da solidão, quando encontrei Jorge Amado.
E dessa criança que tinha escrito um livro – ?O País do Carnaval?- brotou uma tão tenaz e efusiva assistência a tudo que eu fazia que agradeci ao destino dirigido (dirigido sobretudo pela economia) à ingratidão de seleta dos meus antigos comensais.
Ia reiniciar minha existência literária ao lado de alguém que representava realmente uma geração. E esse alguém se chamava Jorge Amado.
Prosseguiu a luta e permaneceu a pobreza. Quando eu ia ao Rio, não mais para os estofos dos grandes hotéis, onde a imprensa me visitava, mas para um modesto quarto de 5$000, num hotelzinho da Lapa que chamávamos de Robalinho-Palace, era Jorge quem aparecia com outra magnânima inteligência que é essa de Queiroz Lima, para a realização de grandes manhãs de conversa e de grandes noites de café e cigarro.
Já então ele publicara ?Cacau? e ?Suor?, essa tricromia da miséria que o colocava ao lado de Michael Gold. Um dia trouxe-me ?Jubiabá?. E vi com espanto que o menino da livraria Ariel tinha escrito uma ?Ilíada? negra.
Nada talvez ganhe no Brasil, de 30 para cá, a importância de ?Jubiabá?, pela revelação de poesia social que esse monumento representa.
Já disse em artigo que ?Jubiabá? é um comício, o mais belo comício que o Brasil ouviu depois do ?Navio Negreiro? de Castro Alves. E agora essa atmosfera de comício e de epopéia atravessa, da primeira à última página, essas ?Terras do sem Fim? com que, ao meu lado, ele inutilmente compareceu a um concurso internacional nos Estados Unidos.
Confesso e deixo público que, se alguma coisa pode constituir honra para mim, é essa de ter sido colocado por um júri capaz ao lado de Jorge Amado e ver o primeiro volume de ?Marco Zero? ter sido indicado com ?Terras do sem Fim? para representar o Brasil num certame literário estrangeiro.
Nas regiões do mito, a psicologia tem um papel simplesmente motor. De modo que as figuras homéricas de Jorge Amado dispensam o aprofundamento interior. Elas são míticas, representativas e simples. Seu clima é a ação, sua persuasão é a aventura, sua finalidade é a sobrevivência, seu poder é a simpatia.
Está pois aí, fixado em coordenadas homéricas, o ciclo inicial do cacau na Bahia. ?Terras do sem Fim? transcende do romance, é obra de rapsodo e canto de bardo. E nada mais ajustado à natureza poética de seu autor que aquele desfilar heróico de capangas e sicários, de advogados e coronéis, de senhoras românticas e mulheres de má vida, no drama da conquista da mata pelos primeiros latifundiários bahianos (sic).
Não há figura que se destaque nesse livro admirável. O background formiga de heróis vivos, de heroínas puras e simples. As mulheres de Tabocas e Ferradas são de uma singelidade bíblica. Os negros matadores também. Toda essa gente realiza, no Brasil do cacau, o primeiro avanço da civilização e da economia. E na economia, na história econômica da terra, é que se prende a ficção para lhe dar peso, estrutura e verdade.
Jorge Amado realiza poderosamente sua ascensão anunciada em ?Suor?, magistralmente erguida em ?Jubiabá?. Eu já disse – ele é Castro Alves."
"?Na Bahia de Todos os Santos, só a vida importa?", copyright Folha de S.Paulo, 7/8/01 (publicado originalmente no Alber Republicain, 9/4/1939)
"Um livro magnífico e prodigioso. Se é verdade que o romance é antes de tudo ação, esse é um modelo do gênero. E nele se lê claramente o que pode haver de fecundo em uma certa barbárie livremente consentida. Pode ser instrutivo para todos ler ?Bahia de Todos os Santos? ao mesmo tempo, por exemplo, que o último romance de Giraudoux, ?Choix des Élus? (Escolha dos Eleitos). Porque esse último figura exatamente numa certa tradição de nossa literatura atual, que se especializou no gênero ?produto superior da civilização?. Desse ponto de vista, a comparação com Amado é decisiva.
Poucos livros se afastam tanto dos jogos gratuitos da inteligência. Vejo nele ao contrário uma utilização emocionante dos temas folhetinescos, um abandono à vida no que ela tem de excessivo e desmesurado. Da mesma forma que a natureza não teme de quando em quando o gênero ?cartão-postal?, assim as situações humanas são frequentemente convencionais. E uma situação convencional bem concebida é própria das grandes obras.
Em uma grande capital aberta para o mar, Antônio Balduíno, negro, pobre e iletrado, tem a experiência da liberdade. Experimentar a liberdade é primeiro se revoltar. O tema do romance, se há um, é a luta contra as servidões de um negro, miserável e iletrado, e essa exigência de liberdade que ele sente em si mesmo. É a busca apaixonada de um ser elementar à procura de uma revolta autêntica.
É uma revolta que faz do negro um boxeador, e um boxeador triunfante. É uma revolta que leva o miserável a recusar todo trabalho organizado e a viver esplendidamente as alegrias da carne. Beber, dançar, amar as mulatas, a noite, diante do mar, tantas riquezas inalienáveis, conquistadas à força da virilidade. E é ainda uma revolta, essa mais sutil e nascida no mais profundo do coração, que leva o negro ignorante a cantar com seu violão e compor admiráveis canções populares.
Mas todas essas revoltas combinadas não fazem uma alma confiante. Se Antônio Balduíno vive com todas as suas forças, ele não está, contudo, satisfeito. Que uma greve aconteça, e ele se lançará inteiro no movimento. E ele reconheceu então a única revolta válida e satisfatória, a revolução. É essa ao menos a conclusão do autor. Eu não sei se ela é verdadeira, mas o que é psicologicamente verdadeiro é que o herói de Amado encontra então o sentido de uma fraternidade que o livra da solidão. E está na natureza desse ser instintivo satisfazer-se absolutamente com isso.
De resto, que não nos enganemos. Não se trata de ideologia em um romance em que toda a importância é dada à vida, quer dizer, a um conjunto de gestos e de gritos, a uma certa ordenação de impulsos e de desejos, a um equilíbrio do sim e do não e a um movimento apaixonado que não se acompanha de nenhum comentário. Não se discute sobre o amor. Basta amar e com toda a carne. Não se encontra uma palavra de fraternidade no livro, mas mãos de negros e mãos de brancos (não muitas) que se apertam. E o livro inteiro é escrito como uma série de gritos e melopéias, de avanços e retornos. A ele, nada é indiferente. Tudo é emocionante. Mais uma vez, os romancistas americanos nos fazem sentir o vazio e o artifício de nossa literatura romanesca.
Uma última palavra: Jorge Amado tinha 23 anos quando publicou este livro. Ele foi expulso do Brasil por tê-lo vivido antes de tê-lo escrito."