Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O valor da vida humana

CASO ABRAVANEL

Paulo José Cunha (*)

Há uma questão filosófica irrecusável no debate sobre a divulgação de seqüestros pelos veículos de comunicação, principalmente agora, quando o tema é reproposto a partir da polêmica criada pelas posições divergentes em relação ao caso de Patrícia Abravanel, filha do apresentador Sílvio Santos. A resposta à questão é pré-requisito para toda e qualquer análise sobre o assunto. Não apenas como exercício acadêmico, mas para fins práticos como, por exemplo, a definição de parâmetros mínimos capazes de balizar a tomada de decisão em situações semelhantes. A questão é: existe valor maior que a vida humana?

Se não existe, a discussão termina aqui e simplesmente não se considera a hipótese de divulgação do fato ? ainda que respaldada pela intenção de contribuir para preservar a integridade física do seqüestrado. Não se divulga rigorosamente nada. Ponto final. Mas a discussão avança porque, ficando aqui mesmo no nosso quintal, uma corrente da qual fazem parte as Organizações Globo, o Jornal do Brasil e a revista VEJA entende que o silêncio, em vez de beneficiar o seqüestrado, terminaria fazendo o jogo do seqüestrador. Em editorial, O GLOBO justifica a posição favorável à divulgação dizendo que, “quando a população ignora o seqüestro, torna-se difícil a denúncia sobre ações suspeitas e a localização do cativeiro”.

Temos então duas correntes muito claras. Uma delas se define pelo princípio da supremacia da vida humana. Considera risco à vida da vítima e dos familiares qualquer ato além do silêncio. Os adeptos desta corrente simplesmente não levam em consideração a possibilidade de a divulgação interferir positivamente no desfecho. Outra corrente, favorável à divulgação, além de exibir o direito de informar e ser informado, argüi a tese da “função da imprensa”, ou seja, justifica a divulgação a partir da influência benéfica que ela pode trazer para elucidação do caso e de uma solução menos traumática para a vítima. É, contudo, argumento discutível uma vez que confunde função de imprensa com função de polícia.

Mas, quando justifica a divulgação com a possibilidade de contribuir para desfecho positivo, abre a guarda porque igualmente permite conseqüências indesejáveis ou inesperadas. Em março deste ano, por exemplo, contrariando o pedido dos pais, a divulgação do sobrenome do menino Gonçalo Matarazzo pela Rede Globo no Jornal Nacional teria resultado em tortura da vítima. A Rede Globo terminou processada e condenada em primeira instância em ação de indenização.

É ponto pacífico que não se trata de questão exclusivamente relacionada à liberdade de imprensa, constitucionalmente assegurada. A polêmica tem como centro outra questão, bem mais complexa, relacionada a uma “ética de economia interna” de cada veículo no que diz respeito aos efeitos de suas ações. Os argumentos das duas correntes são igualmente respeitáveis e defensáveis no que diz respeito aos casos de seqüestro. Mas a inexistência de qualquer orientação por parte da FENAJ em relação ao assunto, mesmo que de ordem genérica, deixa a decisão a critério de cada veículo, contribuindo para a polêmica. Embora demonstre aparente neutralidade, na prática essa omissão beneficia diretamente a corrente dos veículos de comunicação favorável à divulgação. Quando um veículo divulga, rompendo eventual acordo de silêncio, anula os efeitos da convicção firmada pelos adeptos da primeira corrente, ainda que estes formem a maioria e permaneçam firmes na decisão de não noticiar nada enquanto o seqüestro está em andamento. A partir daí, todos estão livres para agir como preceituam seus códigos próprios. Cria-se um fato consumado e passa a ser irrelevante a manifestação isolada de um ou outro veículo defendendo esta ou aquela posição. A divulgação e seus efeitos ? positivos ou negativos para o desfecho ? é unicamente o que passa a prevalecer.

É preciso considerar também um aspecto até agora não abordado nas análises do assunto: que razões movem os adeptos de cada uma das correntes? Os que se pautam pelo silêncio em respeito ao pedido da família ou da polícia sabem que sua atitude, embora revestida de evidente motivação humanitária e amparada na convicção da responsabilidade social da imprensa, vai repercutir negativamente na tiragem/audiência. São conscientes de uma eventual redução no faturamento, na repercussão de sua omissão no departamento comercial. Correm o risco não só de perder anunciantes, mas de não ganhar novos, já que as agências de publicidade dificilmente pautam ou posicionam os anúncios de seus clientes em função de critérios relacionados à posição editorial do veículo, por mais louvável ou responsável que seja. Os departamentos de mídia movem-se, isto sim, de acordo com indicadores de circulação, audiência e credibilidade. Já os que se posicionam a favor da divulgação dos casos de seqüestro beneficiam-se diretamente da elevação da tiragem/audiência. É mais difícil, mas igualmente podem levantar argumentos de responsabilidade social e motivação humanitária para justificar sua posição. De qualquer maneira, há, um componente comercial intrinsecamente vinculado à decisão, ainda que os veículos favoráveis à divulgação convenientemente o omitam, embora dela sejam beneficiários.

Curiosamente, o próprio Sílvio Santos apontou para uma solução que vem pautando a posição da maioria dos veículos americanos e europeus em casos de seqüestro: seguir a orientação da polícia, já que ela, no comando da ação e teoricamente no controle do maior número de informações, tem as condições mais favoráveis para indicar o procedimento mais aconselhável. Inclusive para decidir se a divulgação poderá ou não contribuir para o desfecho mais favorável. Aos veículos de comunicação, por sua vez, caberia rever sua escala de valores. Talvez em alguns deles a vida humana esteja mal posicionada. E, por sua vez, a Fenaj bem que poderia chamar o debate, confrontar os principais argumentos, acender uma luz e, assim, ajudar a reduzir a incômoda sensação de vale-tudo que cerca este assunto.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de telejornalismo. Dirige o Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>

    
    
                     

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