CASO ABRAVANEL
"O governador fez a coisa certa", Editorial, copyright O Estado de São Paulo, 1/09/01
"Assim que terminou o drama de sete horas na casa do empresário e apresentador de TV Sílvio Santos, mantido como refém pelo seqüestrador de sua filha e assassino de dois policiais, começaram a aparecer nos meios de comunicação críticas à atitude do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, a maioria das quais, como era inevitável, motivada pelos interesses políticos e posições ideológicas de quem as faz. O suposto delito do governador foi ter acedido aos apelos do próprio Sílvio Santos, feitos por exigência do seqüestrador, para que fosse avalizar, com a sua presença na casa ocupada, as garantias dadas pelo comandante-geral da Polícia Militar, coronel Rui César Melo, de que ele não correria perigo de vida se, afinal, se rendesse.
Não houve, portanto, ao contrário do que dizem seus críticos, qualquer ?negociação?. Alckmin foi condenado por ter se exposto, na condição de primeiro mandatário do Estado, ao risco de ser, também ele, transformado em refém; por ter aviltado a dignidade de seu cargo ao dialogar com um homicida e autor de crime hediondo; por ter aberto um precedente inaceitável e desmoralizador para a polícia; por ter saído em socorro de uma celebridade, o que não faria por um cidadão comum.
A nenhum dos críticos desse político de temperamento reservado, formal, beirando a timidez, convém lembrar, parece ter ocorrido a singela idéia de que, se ele mantivesse a decisão inicial de não ir ao lugar do crime e se a situação terminasse em tragédia, com a morte de Sílvio Santos – uma possibilidade impossível de ser descartada -, o grosso da população, açulada pelos Ratinhos da mídia de massa,não vacilaria em execrar Geraldo Alckmin como o grande culpado por tal desenlace. O clima de linchamento moral que se seguiria praticamente o impediria de continuar governando.
Isso porque o refém e vítima em potencial é o homem de TV com quem as classes pobres mais se identificam, o seu animador preferido décadas a fio.
Classificar Sílvio Santos como ?rico e famoso? é perder de vista o essencial. À parte quaisquer juízos éticos ou estéticos sobre o seu desempenho empresarial e televisivo, ele é um show-man popular como nenhum outro, pelas emoções e fantasias que leva aos estratos mais carentes da sociedade. Isso é o que explica o impacto incomum do seu transe, a cobertura torrencial que lhe dedicaram os meios de comunicação – e, ao fim e ao cabo, a participação de um governador de Estado, fato sem precedentes em episódios do gênero.
Quando se está, como nesse caso, imerso na quintessência da cultura de massa, em que a morbidez se torna ainda mais ?espetacular? por envolver, além da indispensável violência, um dos seus próprios personagens, cabe perguntar que autoridade moral tem a mídia – sócia desse teatro de sensações baratas – para considerar oportunista o ato de Alckmin. Não foi ela a maior avalizadora da excepcionalidade do episódio pela avassaladora cobertura que seus órgãos lhe dispensaram?
Além disso, primeiros a julgar os outros e últimos a se indagar sobre a sua parcela de responsabilidade pelas patologias sociais que vicejam no País, os jornalistas de há muito devem à sociedade um exame de consciência, uma autocrítica e um esforço sério de mudança.
Em 1951, o diretor Billy Wilder filmou The Big Carnival (A Montanha dos Sete Abutres). Trata-se da mais impiedosa obra de ficção sobre jornalismo sensacionalista, ?o circo da mídia?, como se diz hoje em dia. É a história do repórter Charles Tatum, interpretado por Kirk Douglas, que impede o resgate de um mineiro soterrado, para explorar, dia após dia, essa ?matéria de interesse humano? que faz o seu jornal bater recordes de venda, enquanto o mineiro agoniza. Não se dirá que a imprensa brasileira faria essa torpeza, mas, sobretudo a TV – cujos índices de audiência mais sobem quanto mais traumática a notícia, ou excitante o espetáculo – adota critérios que o inescrupuloso Tatum entenderia de imediato.
Não é aceitável, para dizer o mínimo, que o maior conglomerado de mídia do Brasil, por exemplo, se julgue autorizado por sua ?ética própria? (sic) a desrespeitar o direito à privacidade, divulgando, com estardalhaço, notícias de seqüestros sobre os quais as famílias atingidas pediram sigilo, como no episódio de Patrícia Abravanel. Nem se pode dissociar a programação da grande maioria das emissoras de TV – essas produtivas fábricas de paranóias – dos surtos de proliferação de crimes violentos, quando ocorrências desse tipo passam a dominar de forma desmedida o noticiário. Em vez de pretender justiçar uma autoridade cuja intervenção foi o que fez o seqüestrador da filha de Sílvio Santos entregar-se pacificamente, deviam os profissionais da mídia reconhecer que somos todos responsáveis."
"?É o equilíbrio social, entende??", copyright Jornal da Tarde, 31/08/01
"Então, ficamos assim. Livre do cativeiro, Patrícia, a alegre filha de Silvio Santos, declama do alto da sacada: ?É muita diferença social. Uns têm muito e outros têm pouco. E os que têm muito, em vez de dividir com os que têm pouco, ficam só enchendo o saco de dinheiro. Porque não é dando uma casa, é mais profundo, é dando educação. É o equilíbrio social, entende??
Despojado de toda a parafernália – cenários, figurinos, equipamentos e instrumentos – usada no show Noites do Norte, Caetano Velloso compõe uma nota à imprensa: ?Com a imoral distribuição de renda brasileira e a cultura do desrespeito pelo convívio social, vemo-nos acuados por nós mesmos. Agora é ler o Mangabeira Unger e votar no Lula.?
Patrícia e Caetano, cada um a seu modo, são porta-vozes, menos ou mais articulados, de um estado de ânimo que atravessa de fora a fora a sociedade: está todo mundo farto de conviver com a desigualdade.
Daí a percepção de que o contraste feroz entre a riqueza e a pobreza no Brasil é a explicação primeira para a delinqüência. Palavra das próprias vítimas.
Não faz muito tempo, uma pesquisa do Ibope deu que metade da população queria uma revolução socialista. Logo se viu que não era bem isso – as pessoas não queriam nem uma revolução nem o socialismo.
Tinham entendido a expressão, isso sim, como sinônimo de reformas sociais. E outras pesquisas mostram que essas reformas são desejadas, em primeiro lugar, como arma contra o crime.
Nunca antes, provavelmente, tantos brasileiros acreditaram que o crescimento da violência é a face mais medonha da perpetuação das injustiças sociais.
Isso pode ser verdadeiro, falso ou qualquer coisa entre um pólo ou outro. Pouco importa.
O fato novo é que, para muita gente, ou para mais gente que de hábito, a fórmula malufista – ?pôr a Rota na rua? – é tida como insuficiente, no mínimo, para garantir a segurança.
Quando as pessoas começam a se dar conta de que a polícia está indo para a rua, como acontece em São Paulo, e nem por isso o crime diminui, não é que elas se põem a ler Mangabeira Unger – o hermético guru baiano-americano de Ciro Gomes que Velloso tanto admira – nem se decidem a votar no Lula.
Mas que elas se perguntam ?por que não Lula??, lá isso perguntam.
A prova está nas pesquisas eleitorais. Não se trata de Lula vir em primeiro lugar, com 30% de intenções de voto nas perguntas estimuladas (quando se mostra um cartão com os nomes dos candidatos). Ele está onde sempre esteve nessa altura do campeonato, nas três outras vezes em que disputou a Presidência.
Mas a rejeição a ele e ao PT está onde nunca esteve: batendo todos os recordes de baixa.
Na mesma terça-feira em que Patrícia Abravanel expôs a sua visão de mundo ao reportariado espremido diante da mansão da família, em São Paulo, e em que roubaram o caminhão com os equipamentos do show de Caetano, no Rio, ficou-se sabendo que dois em cada três entrevistados numa pesquisa do Instituto Sensus queriam ter um ?nome novo?, que não fosse um político tradicional, para votar em 2002.
Não está claro se o eleitorado considera Lula uma coisa ou outra. Mas um dos maiores cobras do ramo das pesquisas fez chegar ao Planalto dois interessantes pensamentos.
Como se fosse um economista, ele comparou a sucessão presidencial a uma situação de mercado em que a oferta está aquém da demanda. E, como se fosse um publicitário, disse que Lula é um bom conceito, mas um mau produto.
O primeiro raciocínio quer dizer o seguinte: o eleitor olha em volta e não vê quem lhe possa dar o que quer. E o que ele quer não é, em geral, um candidato que seja o avesso de Fernando Henrique, mas que seja um Fernando Henrique que faça a ?revolução socialista?, naquele sentido reformador que lhe deram os pesquisados do Ibope.
Um candidato que entenda que a questão, como diz a compassiva e loquaz Patrícia, ?é o equilíbrio social, entende??
Mas Lula não seria esse homem? Sim e não, argumenta o mestre-pesquiseiro.
Sim, como conceito: ele é o protótipo de candidato que tem o social colado na alma.
Não, como produto: ele é o gênero de candidato que, quanto mais fala, mais semeia dúvidas sobre a própria capacidade – no caso, de dar um jeito na ?imoral distribuição de renda? mencionada por Caetano em sua nota-desabafo.
Então, ficamos assim. Pelo menos enquanto não se souber o nome do candidato do governo – que não deverá ser Pedro Malan, porque nem ele nem o PSDB querem, e só não será José Serra se ele não quiser."
"Drama vivido por Silvio Santos vira a principal atração do Domingo Legal", copyright Jornal do Brasil, 3/09/01
"O apresentador Gugu Liberato usou o drama vivido pelo próprio patrão, Silvio Santos e de sua filha, Patrícia Abravanel, para impulsionar os índices de audiência de seu programa, Domingo Legal, no SBT. Equipes de repórteres apareceram durante o programa em frente ao Centro de Detenção Provisória (CDP) do Belém, Zona Leste da capital, para mostrar o local onde se encontra recolhido o algoz da família Abravanel, Fernando Dutra Pinto, de 22 anos – que seqüestrou Patrícia, matou dois policiais, invadiu a casa de Silvio Santos e ainda exigiu a presença do governador Geraldo Alckmin para se render.
Gugu levou ao programa, o pai de Fernando, Antônio Sebastião Pinto, a médica que atendeu o seqüestrador na casa de Silvio, Silvana Nigro e a ex-namorada do criminoso, Eliane Gomes Cardoso. Chefe do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate), o capitão da Polícia Militar Diógenes Lucca, em entrevista ao vivo exibida por Gugu, disse que entre as alternativas da polícia era a de usar de atiradores de elite, caso as negociações fracassassem. O militar atribuiu ao poder de convencimento de Silvio Santos o sucesso da operação.
O governador Geraldo Alckmin, bastante criticado por seu envolvido nas negociações, também apareceu no programa para afirmar que ?não dormiria tranqüilo?? se ocorresse uma tragédia por sua omissão. ??Era um caso excepcionalíssimo, raro no mundo??, disse Alckmin. O governador sustentou que agiu de acordo com sua consciência, sem pensar em elogios ou críticas e lembrou que, menos de 15 minutos depois de dar garantia de vida a Fernando, o seqüestro havia terminado. O ministro da Saúde, José Serra, também foi entrevistado no programa: ?Acho que foi uma decisão difícil, mas foi correta. Ele achou que poderia salvar uma vida. O Silvio Santos estava em perigo e não se tratava de um seqüestrador típico?, disse Serra, de sua casa.
A ex-namorada do seqüestrador revelou que há cerca de 20 dias chegou a ser procurada por Fernando para morar com ele na casa alugada para o cativeiro, no Morumbi. A ex-namorada contou que estranhou o convite – que extensivo ao seu filho -, mas não concordou, o que teria levado o seqüestrador a optar por outra moça, a misteriosa Jenifer, que está sendo procurada pela polícia. Antônio Sebastião Pinto contou que seu filho, Fernando, era fã de Silvio Santos. Segundo Gugu, o objetivo de Fernando não era seqüestrar nenhuma das filhas de Silvio, mas sim o apresentador. Ele teria inclusive comprado a biografia do empresário e preparado o seqüestro com meses de antecedência. Gugu Liberato exibiu também no programa entrevista com o chefe da Delegacia Especializada Anti-Seqüestro (Deas), Wagner Giúdice. O delegado afirmou que esperava que Fernando se apresentasse numa redação de jornal ou através da Ordem Advogados do Brasil (OAB), mas jamais na casa do dono do SBT. O programa Domingo Legal terminou sem que Silvio Santos desse qualquer declaração sobre o caso.
Policiais do Departamento de Investigações Sobre Crimes Patrimoniais (Depatri) estão investigando a origem do dinheiro usado pela família de Fernando Dutra Pinto para comprar a casa de cerca de R$ 60 mil em São Miguel Paulista, na Zona Leste da capital. Há suspeitas de que o seqüestrador, que estava desempregado há quase um ano, tenha se envolvido em outros roubos ou seqüestros na Grande São Paulo e usado o dinheiro para ajudar a família a comprar o imóvel."