Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Eliane Cantanhêde


CASO ABRAVANEL

"?Alckmia? eleitoral", copyright Folha de São Paulo, 31/08/01

"Ontem foi o dia em que Geraldo Alckmin finalmente encarnou Mário Covas e aquele voluntarismo espanhol. Só que… Geraldo Alckmin não é Mário Covas.

O governador estava em Jundiaí, participando de um encontro sobre segurança pública (ora, veja!), quando Silvio Santos praticamente exigiu a presença dele para avalizar um acordo que garantisse sua liberdade e a vida do sequestrador.

Alckmin voltou correndo a São Paulo, reuniu-se com o comando de segurança e com ?outros assessores? (políticos? de comunicação? de marketing?) e decidiu participar da negociação. Uma decisão arriscada em todos os aspectos.

Ao contrário do que disse Patrícia Abravanel naquela entrevista no mínimo patética, o bandido não tem nada de bonzinho nem de santo, muito menos se rendeu a Deus. É, meramente, um sanguinário que sequestrou uma moça indefesa e matou dois policiais civis. Aliás, as grandes vítimas.

O governador, portanto, deveria respirar fundo, ser pragmático e não cair na armadilha do bandido. A novela teve um final feliz para a família. Patrícia saiu alegríssima, Silvio Santos escapou ileso, o bandido foi preso. Mas… se o refém fosse outro, o governador iria? E se o sequestrador resolvesse ter não um, mas dois reféns? E se descontasse sua raiva do mundo no governador?

Como disse o próprio secretário de Segurança, Marco Vinicio Petreluzzi, ?mente criminosa é imprevisível?. Alckmin, portanto, jogou o cargo de governador numa espécie de roleta e abriu um precedente perigoso. Daqui em diante, qualquer sequestrador se sentirá no direito de exigir a presença de governadores. E se um deles tiver juízo e não se sentir no dever de ir?

Não será surpresa se Alckmin disparar nas próximas pesquisas. Para governador, presidente, delegado ou lixeiro. O lucro político, porém, não torna seu ato automaticamente digno de elogios, apenas de uma boa autocrítica. Há formas bem mais seguras de encarnar Mário Covas."

 

"Show de bravatas", copyright Folha de São Paulo, 31/08/01

"Difícil definir a surpresa diante da ação espetacular do sequestrador da filha do Silvio Santos. Depois de ter matado dois policiais e escapado de três cercos, ele voltou ontem ao local do crime em busca de segurança e fez o próprio Silvio de refém.

Em todo este episódio, nada pareceu previsível. Exceto o comportamento da polícia. Não houve nada mais idiota e sem propósito nos últimos dias do que o bate-boca entre os secretários de Segurança de São Paulo e do Rio depois do sequestro.

A disputa entre os dois seria cômica não fosse trágica a situação das duas cidades. É o roto rindo do esfarrapado. Nenhum dos dois tem qualquer razão para se vangloriar ou se supor em melhor situação.

De que São Paulo pode orgulhar-se? E o Rio? As duas cidades têm taxas semelhantes e altíssimas, indecentes mesmo, de assassinatos, ambas por volta de 50 homicídios por 100 mil habitantes.

Para os paulistanos, é uma vergonha a ocorrência de uma média de 17 sequestros por mês. Mas os cariocas não têm de que se envaidecer: as estatísticas oficiais, que registram poucos sequestros, ignoram o varejo dos sequestros relâmpagos, que não são notificados.

E ignoram, principalmente, uma realidade que envergonha as duas cidades: sua população mais pobre, aquela das favelas e conjuntos populares, vive um sequestro coletivo, refém dos comandos do narcotráfico. E a polícia? Às vezes, parece impotente e submissa; às vezes, desnecessariamente violenta e ignorante.

Nossos secretários de Segurança falam, falam e aí está o resultado de suas ?políticas? de segurança: um sequestrador dentro da casa do maior apresentador de TV do Brasil, em São Paulo; e, no Rio, uma favela inteira, a Maré, onde vivem mais de 100 mil pessoas, ocupada pela PM como se fosse um enclave inimigo."

 

"A caminho do matadouro", copyright Folha de São Paulo, 31/08/01

"A notoriedade foi confundida pelo jornalismo -e pelo governador Geraldo Alckmin com gravidade maior e, portanto, merecedora de atenções especialíssimas. Não fosse o refém uma pessoa com o destaque (televisivo, ainda por cima) de Silvio Santos, teriam tantas autoridades se posto à volta da vítima e o próprio governador se abalado porque assim queria o criminoso?

Mas, do ponto de vista humano, do ponto de vista da segurança pública e da responsabilidade dos serviços de governo, o que interessa são os 108 ou 110 reféns, entre os quais Patrícia e Silvio Santos figuram sem distinção, feitos só neste ano em São Paulo. E é isso que a espetaculosidade conferida a certos episódios obscurece, em detrimento do geral. Pior ainda, obscurece parecendo que ilumina.

Desde o massacre no Carandiru, as rebeliões se reproduzem em sequência e frequência intermináveis. Sinal de que as condições carcerárias não mudaram no fundamental, mesmo que as políticas carcerárias tenham mudado um pouco com os sucessivos governos, o que nem é tão certo. Diante do que houve no Carandiru, porém, as rebeliões, por mais que sejam denunciadoras das suas motivações, não provocam clamor nem suscitam pressões por iniciativas governamentais.

Inconsciente embora, o fator comparativo é inevitável e forte nos seus efeitos.

Passado o choque da morte de uma jovem, pelo tiro inepto de um PM ao fim do sequestro de um ônibus no Rio, a polícia continuou a atirar com a mesma desnecessidade e a mesma inépcia. Inocentes vão caindo sob a designação cínica de vítimas de ?bala perdida?, um salvo-conduto para a impunidade da matança.

Em pelo menos dois acontecimentos, outras pessoas se tornavam reféns de sequestros enquanto Silvio Santos era vítima em sua casa. Talvez ainda mais dramática, a situação daqueles outros mal deu para tirá-los do anonimato, em registros velozes e desinteressados. Era já o fator comparativo em aplicação, essa força com que a mídia amortece reações, atenua exigências e assim conduz à bovinização – no caminho conformado do matadouro."

 

"A síndrome do acossado", copyright Folha de São Paulo, 31/08/01

"Aquilo que o público espera de um escritor, de um diretor de cinema, de um autor de novela de TV pode ser resumido em uma única palavra: ?Surpreenda-nos?.

A surpresa é o tempero da vida, é o antídoto contra a rotina, o mais das vezes pesada, em que vivem milhões de pessoas.

Fernando Dutra Pinto surpreendeu-nos. Não foi a surpresa lúdica de um filme ou de um romance; não, foi uma surpresa assustadora, gerada por um foragido caçado pela polícia e em cujo rastro já havia dois mortos. Uma história de horror, interrompida, em um momento, por um estranho interlúdio que dava a idéia de um final feliz: Silvio e Patrícia felizes, sorridentes, ela atribuindo à crença em Deus sua salvação. Parecia ficção, mas não era ficção, como logo se descobriu, e sim brutal realidade. A realidade da violência brasileira.

Mas essa realidade ainda admitiria o insólito, correndo à conta daquilo que poderíamos chamar de síndrome do acossado. O perseguido recorre a qualquer coisa para escapar; recorre, inclusive e principalmente, ao inesperado. Por exemplo: sempre se disse que o criminoso volta ao local do crime -uma coisa, portanto, que o criminoso deveria evitar. E Fernando Dutra Pinto voltou à casa de Silvio Santos. Porque o acossado vive uma situação diferente, raciocina diferente, e às vezes seu raciocínio, governado por obscuros mecanismos psicológicos, escapa aos padrões habituais.

Em fuga, uma lagartixa deixará a cauda, coleando, diante do espantado perseguidor; uma ratazana, ao contrário, poderá atacar com surpreendente ferocidade. Ou seja: em animais ou em seres humanos, a condição de acossado significa imprevisibilidade. Por que decidiu Dutra Pinto regressar à casa de Silvio Santos? Movia-o o desespero ou uma notável intuição? Não importa. O certo é que desnorteou seus perseguidores e criou dificuldades adicionais à polícia. Os negociadores enviados ao local sabiam que estariam diante de uma figura insólita.

O fato é que a negociação deu resultado. O que, entre parênteses, corresponde a uma tradição brasileira. Somos um país que busca o consenso. O que nem sempre é bom: quando o consenso serve para maquiar (e esta também é uma palavra muito usada entre nós, ao menos no momento) um conflito, representa apenas um engodo histórico, ilusório, aliás. Mas quando, como no caso, evita problemas maiores, representa uma solução. É o antídoto que a racionalidade nos dá contra a síndrome do acossado. E funcionou. Bom seria se a negociação pudesse resolver os nossos macroproblemas. Isso, porém, já seria pedir demais."

    
    
                     

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