Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O negro e a universidade

RACISMO

(*)

Com a realização em Durban (África do Sul), da 3? Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo ? que se encerra dia 7 de setembro ? autoridades governamentais, intelectuais e o pessoal do chamado movimento negro brasileiro agendaram na mídia o polêmico tema das reparações para os negros ? aí incluída a proposta de quotas raciais.

Mas o debate sobre a implantação de quotas para afrodescendentes nas universidades públicas brasileiras foi introduzido no Brasil há exatos oito anos. E surgiu dentro da Universidade de São Paulo (USP), não por iniciativa institucional, mas pela ação política de meia dúzia de gatos pingados, alunos da vetusta academia ? entre eles, este escrevinhador ? e outros simpatizantes.

Note-se que agora até mesmo o ex-presidente José Sarney, em sua coluna semanal na Folha de S.Paulo (31/8/01), quer para si a paternidade do tema. Há quase nenhuma menção àquele pequeno grupo abrigado na USP que, contando com apoio de poucos, embora significativos professores da casa, a exemplo de Milton Santos, Paulo Sérgio Pinheiro, Kabengele Munanga, Solange Couceiro e Antonio Junqueira, enfrentou o ceticismo ou a arrogância de muitos.

Por conta das ações do movimento pró-quotas, o aluno de filosofia Mauro Göpfert Cetrone e o então doutorando Fernando Conceição (eu mesmo!), foram detidos pela guarda interna da USP certa noite, enquanto faziam pichações. No meu caso, no dia seguinte fui novamente detido e levado à delegacia da circunscrição. Fiquei preso por mais de sete horas. A delegada plantonista buscou um acordo com a administração da universidade, que recusou-se a ceder, obrigando a policial lavrar o flagrante. Por ser réu primário, fui solto, mediante pagamento de fiança, mas um processo criminal foi aberto.

A direção da USP ? sob o comando do reitor Flavio Fava de Moraes, por sua vez, impetrou processos administrativos contra os dois alunos, que poderiam levar à sua expulsão dos quadros discentes. Somente recuou pela repercussão havida, inclusive com pronunciamentos na Câmara dos Deputados pelo deputado Paulo Paim (PT/RS) e pressões junto à reitoria daqueles e outros professores acima mencionados

Está tudo documentado pelas escassas mas repercutidas matérias feitas principalmente pela Folha de S.Paulo, embora O Estado de S.Paulo, Jornal da Tarde e o Diário Popular, todos paulistanos, também tenham vez por outra dado alguma coisa. Mesmo a Rede Globo, em um dos seus Fantáticos (matéria de Eliana de Grammond), à época levou ao ar tais proposições.

O auge da cobertura sobre o movimento ? denominado MPR (Movimento pelas Reparações dos descendentes de africanos escravizados no Brasil) ? apareceu em The Wall Street Journal, edição de 6/08/96. A chamada no alto da primeira coluna da primeira página do WSJ dizia: "Seeking equality. A Racial ‘Democracy’ begins painful debate on affirmative action". O texto é assinado pelo então correspondente na América Latina do Journal, Matt Moffett.

Desde aquela época até àgora, toda vez que o tema das quotas é publicamente mencionado provoca reações emocionais de um e de outro lados do espectro envolvido no debate. Quem é contra, apresenta argumentos diversionistas, tais como o de que "é impossível definir quem é negro no Brasil". A isso, argumentamos que bastaria dar essa tarefa de identificação a um policial, a um publicitário, a uma empresa de recrutamento de mão de obra. Esses profissionais têm uma sensibilidade instintiva de reconhecimento dos "negros" que desde já os habilita.

Quem é a favor, por sua vez, nem sempre está seguro do que se quer. E o que ser quer com a implantação de quotas ? que eu não chamaria de "raciais", porque raça é um conceito controverso e cientificamente superado? O que se quer é diminuir as absurdas diferenças de oportunidades sócio-econômicas existentes no Brasil entre os descendentes de africanos escravizados e os descendentes dos senhores escravocratas e imigrantes europeus aqui introduzidos.

Somente as quotas anulariam tais diferenças? De forma alguma. A existência de quotas não resultaria na implantação de um utópico paraíso racial, mas no contexto brasileiro eqüivaleria a uma revolução no tratamento que é dispensado hoje aos afrodescendentes.

Ocorre que, se sob o regime escravista os negros praticamente eram objetos. Com e depois da abolição em 13 de maio de 1888, eles, se adquiriram o status de sujeitos, não se tornaram cidadãos portadores de direitos plenos. Porque a chamada Lei Áurea silenciou-se sobre as possíveis medidas concretas que poderiam ser tomadas para prover àqueles homens/mulheres-coisas de recursos para recomeçarem suas vidas ? agora sob o regime de "liberdade". As conseqüências dessa omissão são as demonstradas ainda hoje pelos indicadores sociais.

Quotas não serão a panacéia. Mas devem estar situadas dentro de um projeto maior de políticas compensatórias de ação inclusiva. Como parte de tais políticas compensatórias, as quotas devem ter abrangência, prazos, metas explicitamente definidas já na sua implantação. Isso equivale definir quem será beneficiário, o percentual, o período e o que se quer atingir. Não é uma medida eterna e sem controle de medição.

Em paralelo às quotas, outras ações compensatórias podem e devem ser tomadas ? seja por iniciativa governamental, seja por setores privados da economia. A inclusão nos currículos das escolas de disciplinas ou tópicos disciplinares com conteúdo voltado a demonstrar a contribuição positiva que negros e índios deram e continuam dando na formação da sociedade brasileira, é exemplo do que pode ser feito.

Da atual cobertura midiática sobre o debate de quotas ? cobertura essa resultante da visibilidade causada pela Conferência da ONU ?, em geral percebe-se tentativas de se acertar ou, quando menos, ater-se a uma visão "politicamente correta". Ora, se o próprio governo federal oficialmente agora reconhece ser o Brasil um país que discrimina os negros, seria esdrúxulo aos setores conservadoramente arcaicos virem a público e afirmarem o contrário, sem conseqüências negativas.

No conjunto da cobertura, a Folha se destaca e se distancia dos concorrentes, seguindo uma linha editorial que consolidou-se em 1995, quando executou o chamado "Pojeto Zumbi" ? na rememoração dos 300 anos da morte do líder do quilombo de Palmares. Conforme recentemente tivermos oportunidade de demonstrar em tese apresentada na Escola de Comunicações e Artes da USP, o jornal da Alameda Barão de Limeira tem se credenciado como o veículo da grande mídia mais sensível ao debate racial, sem fazer panfletarismos.

O problema está na distância entre a retórica e a ação. O ministro Paulo Renato, da Educação, que se posiciona contra a proposta de quotas mas defende a criação de cursinhos pré-vestibulares para negros e pessoas carentes, ao assim se colocar mostra o quanto está tomado pelo paradoxo. Não é dele a proposta de esvaziar e até mesmo um dia extinguir a existência do vestibular para o ingresso nas universidades? (O Enem já é um instrumento nessa linha). Se em breve o vestibular vai acabar, para que o investimento anunciado de 10 milhões de dólares em tais cursinhos?

É mais um diversionismo. Ou faz parte da estratégia de campanha política do ministro, de olho nas próximas eleições.

(*) Jornalista, doutor pela ECA-USP, professor da Facom/UFBA <fernconc@ufba.br>

    
                          

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