TURMA DA MÔNICA
Spacca (*)
"Quadrinhos também é imprensa" é o excelente título do geralmente excelente e minucioso Cláudio Weber Abramo. Tenho muita simpatia por suas análises, muitas vezes lucidamente antipáticas, no estilo "doa a quem doer". Não me foi difícil compartilhar de sua visão quando abordou, por exemplo, a romantização do índio brasileiro pelos ambientalistas ou o critério de seleção de novos vocábulos nos dicionários. Temas em que assumiu corajosamente o papel mais incômodo frente à opinião pública.
Ao criticar em artigo recente a Turma da Monica [veja remissão abaixo], Weber começou bem, pelo menos no título. Alguns escritos meus neste Observatório tentaram mostrar que charge também é imprensa, o que é mais fácil de provar, por causa da ligação necessária da charge com a notícia ? ambos vão embrulhar peixe no dia seguinte.
Quadrinho, por princípio, é um produto cultural independente do dia-a-dia. Muitas histórias dos estúdios Maurício de Souza poderiam ser publicadas em qualquer época; diversas, porém, como recurso para envolver o leitor, aproveitam ganchos do noticiário ou da cultura pop para apresentar paródias (de filmes, programas de TV, personalidades, sátiras de outros quadrinhos etc.). Nesta medida, podem ter a relação necessária com os acontecimentos de uma certa época ? que lhe confeririam caráter jornalístico, segundo o critério da "atualidade".
Esta afirmação, de que quadrinho também é imprensa, merecia ser aprofundada porque sinto que há uma certa verdade aqui. Não sei se foi só recurso para justificar o artigo sobre quadrinhos num veículo de crítica midiática; eu, de fato, estaria interessado em saber se quadrinho é, de fato, imprensa e quais as conseqüências disto; se os leitores, crianças ou adultos, encaram a revistinha como mídia ou ponto de contato com o mundo, se essa leitura influencia a interpretação ou construção da realidade etc.
Weber Abramo teria muito o que dizer, se tivesse tido a paciência de examinar com calma o assunto. Mas não teve: o artigo tem o tom de um desabafo ("Há anos, décadas mesmo, sinto cócegas de escrever o que segue"), informa mal e argumenta com emoções.
O parágrafo em que conta a gênese da Turma da Mônica no estilo dos contos de fadas ("Era uma vez a Abril") dá a entender que Maurício era um dos chefes de equipes que desenhavam Disney, nas décadas de 60 e 70, na Editora Abril, em esquema de franquia, quando sentiu comichão de criar sua própria mina de ouro. Ora, Maurício vinha comercializando suas tiras desde 1959; em 1964, iniciou uma parceria com a Folha de S.Paulo e produziu o suplemento infantil "Folhinha" por duas décadas; e a personagem Mônica, então distribuída para 200 jornais, já era uma famosa garota-propaganda da Cica quando saiu sua primeira revista pela Editora Abril, em 1970, vendendo 200 mil exemplares.
Ou seja, Maurício já chegou na Abril com nome feito e equipe formada.
Mais adiante, Weber Abramo chama a atenção para a semelhança entre a Turma da Mônica e os "Peanuts", do cartunista Schulz. Estabelece um paralelo convincente entre Cebolinha / Charlie Brown, Bidu / Snoopy e Chiqueirinho / Cascão. Curiosamente, descreve o temperamento da "insuportável, malcriada, invasiva, desrespeitosa e violenta" Monica e não a comparou com a personagem Lucy, que tem o mesmo perfil da "dona da rua" ? o que só reforça e completa o paralelismo das duas turmas.
Não se pode, porém, creditar a "Peanuts" toda a inspiração da Turma da Monica. O modelo estilístico de Maurício parece ter sido a Luluzinha. O vestido vermelho, a roupa do Bolinha, os sapatos com meia enrolada, esses e outros elementos estão presentes, em gênero e traço, na produção mauriciana. Além disso, o tema "clube do Bolinha", termo que descreve tão bem a competição entre meninos e meninas na faixa dos 7 aos 10 anos de idade, inexiste no mundo dos Peanuts. O personagem "Pinduca" e outros guris virtuais formam um vasto repertório de onde pode ter se originado a Turma.
Há mais incorreções no texto de Abramo. Ele escreve que "quadrinhos como ?Peanuts?, ?Calvin and Hobbes? (Haroldo, em português), ?Mafalda?, do absolutamente genial argentino Quino, empregam a ambientação num mundo infantil para abordar uma imensa variedade de situações humanas". Ora, a tira "Calvin e Haroldo", criação do cartunista Bill Waterson, tem um caráter completamente oposto aos adultos em miniatura de Peanuts e à crítica social para crianças de Quino. Calvin é o resgate da criança como ela é ? birrenta, malcriada e imaginosa ? como não se via nos quadrinhos desde os "Sobrinhos do Capitão". Se Calvin é uma criação tão genial e inteligente quanto "Peanuts", ambas diferem tanto na representação do universo infantil quanto na postura dos respectivos autores frente ao merchandising. Bill Waterson jamais permitiu qualquer exploração comercial de sua obra além do universo estritamente editorial, enquanto Schulz chegou a ganhar 30 milhões de dólares por ano em licenciamento para produtos no mundo inteiro (pegou segundo lugar em uma lista da Forbes, em 1999, dos nomes mais ricos da área de entretenimento ? perdeu para Elvis Presley).
Tirando os dados inexatos e as comparações inadequadas, tudo o que sobra do texto que poderia justificar o título, ou prevenir o público contra a leitura dos gibis da Turma, é apenas o desabafo de um pai preocupado: Bidu é um "cachorro besta", as histórias são vazias e de mau gosto, medíocres etc. Que sejam: por que Cláudio Weber Abramo não o expressou na mesma linguagem minuciosa com que esmiuça temas lógicos, sociológicos e matemáticos?
Por que não estava a fim, esclarece ("mais vale a opinião de quem tem convívio com o bom gosto do que todos os mercados do mundo, e estou me lixando para a massa ignara. É possível dizer isso de forma mais delicada, mas não estou a fim"). Porque há décadas sente cócegas de escrever essa crítica. A crítica saiu num jorro, "indelicada", porque o que está em jogo, para Abramo, é nada menos que a sanidade mental de sua família (ele propõe mesmo uma "proibição doméstica" aos bonecos e gibis de Maurício). Compreendo perfeitamente seu desespero ante essa e outras invasões domiciliares, e a obrigação de zelar por um mínimo de qualidade de formação intelectual e cultural dos filhos.
Porém, meu conselho (considerando que sou autor de quadrinhos), ou antes pedido de quem admirou vários de seus textos, é que reescreva essa mesma crítica de forma menos vulcânica, justamente porque "quadrinho também é imprensa" e não merece uma abordagem tão irrefletida. A raiva e o desdém pelo objeto de estudo prejudicaram imensamente a exatidão jornalística e o serviço que poderia prestar aos pais preocupados e à "massa ignara", caso o alerta a esse tipo de leitura seja procedente.
(*) Cartunista e ilustrador
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