Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Guerra santa na mídia profana

SHOW DE GAROTINHO

Jessé Nascimento (*)

Conscientes de haver perdido a singular posição (real ou imaginária) de grande democracia racial, descambamos para a realidade do cordialismo-racial ? ou o preconceito descarado, às vezes mal e porcamente disfarçado. Do passado, quando éramos famosos pela harmonia ou mistura irreverente de crenças e cultos, denominada segundo os entendidos de "sincretismo", descambamos também perigosamente, comenta-se, para o odioso cordialismo-religioso ou o também mal disfarçado preconceito de credo e de crença.

Continuamos, em ambos os casos, um país esquizofrênico em que as convicções mudam ao sabor do vento e o santo e profano se misturam e se confundem. Se anulam. É o que se nota na aparente arregimentação de forças, algumas misteriosas e ocultas, outras nem tanto, que investem contra a candidatura à candidato presidencial de Anthony, o Garotinho.

E o que e mídia tem à ver com isso? Tudo. O recado que passa é que, em termos da salvação pessoal de Garotinho, nem o céu é o limite. Para as pretensões políticas, entretanto, o Rio de Janeiro com o seu Cristo Redentor é o único nirvana reservado ao governador-zelote.

Análise independente (porém, não cientifica) da abordagem dos maiores jornais do eixo Rio-São Paulo-Brasília- Belo Horizonte sobre o tratamento dado a Garotinho e à interpretação de seu sonho presidencial, parece revelar, num primeiro momento, uma suposta surpresa pelo surgimento em si da candidatura do governador do Rio como séria opção presidencial.

O que se fez, então? Divulgados os resultados das pesquisas de intenção de votos (precipitadas e inconvenientes, concordo), apesar da evidência de possível empate técnico entre os quatro pré-candidatos melhor avaliados (Lula, Itamar, Garotinho e Ciro, não necessariamente nesta ordem), o nome de Garotinho foi sistematicamente omitido nas notas e comentários interpretativos e nas matérias relativas às pesquisas, como opção e postulante sério ao Palácio do Planalto, reduzindo-se o espaço "oficial" aos outros três nomes citados, e só a eles. Quando muito, o nome do governador do Rio era citado como "pretendente", quase sempre acompanhado de ressalvas jocosas ou adjetivos "carinhosos" tais como populista e aventureiro.

A tentativa dissimulada não produziu frutos, uma vez que o candidato aparentemente continuou a subir nas pesquisas de intenção.

Liberdade de consciência

Exemplo do exposto foi o editorial "Fé eleitoral", da Folha de S.Paulo (16/8/01). Em texto elegante e sedutor, o editorialista, de maneira sutil (como convém aos poderosos cordiais) mas sem evitar a ironia e o desprezo, faz chacota dos evangélicos brasileiros e usa o texto como tentativa de reforçar a imagem de Garotinho como candidato do gueto, da minoria histérica, motivada, sobretudo, por interesses terrenos, carnais, politiqueiros e temporais.

Aparentemente assombrado, o autor julga identificar os temíveis combatentes cósmicos que agora estão "…ao nosso lado, em cada família, na casa de cada vizinho?", parecendo exprimir do fundo da alma a prece angustiada: "Misericórdia! O populacho já chegou até nós, nossas casas, vizinhos?governos! Quer agora? a presidência?!"

Percebe-se que a tentativa mal dissimulada da mídia e dos formadores de opinião dos grandes centros é a de assustar a sociedade brasileira, pintando uma potencial Guerra Santa, como se vivêssemos na Irlanda onde protestantes e católicos matam-se em nome de Deus. O pavor de certos setores é o "risco" risível de se assistir, na posse presidencial, um culto em vez de missa, ou a convocação de ministros do evangelho em lugar de ministros da República.

Não é próprio neste espaço defender Garotinho ou reforçar sua ousadia (ou travessura) de candidatar-se. O que não se pode deixar passar sem denúncia é a atitude de certos setores da elite, e da mídia em particular, de renovada tentativa de calar a voz do pluralismo, por meio da tática disfarçada da ridicularização e do preconceito. Usa-se a sagrada doutrina da apropriada separação entre Igreja e Estado para confundir o público leitor e eleitor, omitindo o santo direito da liberdade de consciência, da profissão-pública e expressão de fé, em harmonia com o direito de opção política.

Tem piedade de nós

Em todas as eleições recentes no Brasil, a mídia registrou casos de políticos de diversos matizes a consultar búzios, cartomantes, oráculos e atabaques. Vão aos terreiros prostrando-se aos pais-de-santo num dia, beijam as mãos dos padres católicos no outro, enquanto fazem promessas ao povo e aos santos todos.

De Maluf e sua suposta veneração por Dom Paulo Evaristo Arns, passando por Antonio Carlos Magalhães com sua mobilidade e conforto tanto em terreiros como em átrios, e chegando a vários assumidos agnósticos da esquerda, nenhum político brasileiro é acusado de ser o candidato dos católicos, dos espíritas ou dos ateus. Nenhum deles é ridicularizado e nem deveria, em uma democracia que imprime em sua moeda corrente a frase "Deus Seja Louvado" e que dispõe de uma mídia que, quando lhe é conveniente, esperneia pelo direito de liberdade de expressão.

Nenhuma de-construção é feita em relação àqueles que têm convicções religiosas. Não são esmiuçados como seres exóticos e objetos de perorações pseudo-antropológicas, quando decidem seguir o rumo político do serviço público. Somente Garotinho tem sido questionado, encurralado e ridicularizado por ser evangélico ? e é rudemente rotulado como o "candidato dos crentes". A mídia parece querer levá-lo à tentação de blasfemar e negar a fé.

Fernando Henrique, provocado pela mídia, perdeu a eleição para prefeito em São Paulo, por supostamente não ter dado testemunho público de crer em Deus ? embora também protagonizasse uma desastrada pose para a imprensa, sentado na cadeira do prefeito. Perdeu a eleição, mas virou presidente. Garotinho, "tolerado" pela mídia, pode perder a presidência por testemunhar publicamente que crê em Deus? Senhor, tem piedade de nós, e-leitores.

(*) Doutorando em Sistemas de Informação, Mestre em Comunicação pela University of Leicester, consultor de Tecnologia de Informação e Comunicação em Massachusetts, EUA. E-mail: <jnascime@aol.com>

    
    
                     

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