A imprensa brasileira noticiou com destaque o tamanho da comitiva presidencial no funeral do papa João Paulo II. A atenção recaía sobre o expressivo número de lideranças políticas e religiosas. No campo religioso, destacava-se, ainda, o fato de aquela ser uma comitiva ecumênica, plural, diversa (tanto como a comitiva política, com seus muitos [multi] partidarismos). Porém, sobressaía em quase todos os textos (tanto nos meios de comunicação impressos como audiovisuais) o advérbio ‘até’ referente ao convite e à participação da ialorixá Areonilthes da Conceição Chagas, iyá (mãe) Nitinha d’Oxum, uma das mais respeitadas sacerdotisas do terreiro Ilê Iyá Nassô, mais conhecido como Casa-Branca do Engenho Velho, em Salvador, na Bahia, e legalmente reconhecido como o mais antigo terreiro de candomblé ainda hoje existente e de que se tem notícia no Brasil.
Não por coincidência, Iyá Nitinha é também uma das mais antigas iniciadas na religião dos orixás no Brasil, que congrega todas as formas religiosas de matrizes africanas aqui praticadas, que hoje, segundo dados do IBGE do Censo Demográfico 1991-2000, congrega cerca de 0,3 % da população brasileira. Os números, mesmo que insignificantes, não podem menosprezar o fato de que boa parte de integrantes de terreiros classificam-se de católicos. Mãe Menininha do Gantois, a mais famosa ialorixá (mãe-de-santo) no Brasil, era um bom exemplo. A própria iyá Nitinha é de tradicional irmandade negro-católica.
Mas os números não devem, sobretudo, desconsiderar a importância que essas religiões tiveram como instrumento de resistência à opressão entre grupos desprivilegiados e excluídos do processo civilizatório brasileiro. No Brasil escravocrata serviu como território etológico, parafraseando Félix Guattari, para o reagrupamento de ex-escravizados, restituindo casa (de santo) e família (de santo) aos que nada tinham.
Pobres e não-brancos
No Brasil contemporâneo, tem servido como espaço sociabilizador das minorias desprivilegiadas, no mais das vezes estigmatizadas por recortes de sexualidade, gênero, classe, raça e, não por acaso, religião – claro que não desconsideramos a participação, hoje, de um bom número de integrantes das mais diversas etnias e origens socioeconômicas, que faz, segundo o mesmo Guattari, o candomblé ser visto como um autêntico laboratório da pós-modernidade. Somente o entendimento do que tais recortes significam para a perpetuação de ações discriminatórias e, por extensão, excludentes, pode justificar a utilização pela mídia do advérbio ‘até’ atribuído à participação da digníssima ialorixá nos textos sobre a viagem da comitiva presidencial.
Pois, se o povo-do-santo (os adeptos das religiões de matrizes africanas no Brasil) se reconhece nos ditames da igreja católica (e isso não está relacionado, apenas, à idéia do sincretismo como dissimulador do proibitivo da prática religiosa, mas, propriamente, à devoção pura e simples pelos santos, altares e igrejas católicas), se traços herdados dessas religiões são o que hoje melhor determinam o panorama cultural brasileiro (e que rende excelentes divisas para a indústria turística), se na tal comitiva seguiam, ainda, dois bispos, um rabino, um pastor e um xeque, por que o advérbio ‘até’ foi creditado apenas à presença da ialorixá? Afinal, como já disse, são as religiões de matrizes africanas as que poderiam ser tidas como as mais ‘brasileiras’, considerando que constituem a essência do imaginário popular brasileiro. Ou alguém ainda duvida que Iemanjá é a divindade mais cultuada no Brasil e o saci-pererê é a entidade das florestas mais misteriosa e, por isso, curiosa?
As questões que poderia, aqui, suscitar para a escolha do termo, direcionam-se, via de regra, para o fato de que essas são religiões de maioria empobrecida, mas, sobretudo, não-branca. Ou, corrigindo, distanciadas dos parâmetros de civilidade ditados por uma visão embranquecida e eurocêntrica, que, quer seja relacionada subjetivamente aos termos de raça, quer seja relacionada objetivamente aos termos religiosos, acabam desembocando num mesmo e sabido lugar: racismo – o que, não por acaso, retorna à questão racial.
Instrumentos da discriminação
Dessa forma, torço para que o emprego pela imprensa de tais retóricas manipulatórias (que poderíamos traduzir como feitiço) acabe virando contra seus oradores e emissores (feiticeiros), no momento em que desrespeitam a diversidade etnorracial e religiosa brasileira, mesmo que seguidas da fala do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, lembrando que o atual governo brasileiro pratica o que papa João Paulo II pregou: a harmonia e convívio entre as diferenças.
Ora bolas, e é justamente sobre uma representante de religiões que pregam a diversidade (tais religiões são representações da África continental no Brasil e, por isso, são constituídas pelas mais diversas formas de culto e expressões religiosas), que pregam o acolhimento das diferenças (já é sabido que são religiões para todos, para o mundo, vide a internacionalização dessas religiões), que pregam a aceitação das orientações sexuais, assim como um melhor entendimento sobre os trâmites de classificações de identidades de gênero (gênero e sexualidade das divindades são transpostos para situações da vida cotidiana dos terreiros, o mítico impregnado no corpo do fiel), que pregam a celebração da vida (o corpo, o prazer e o gozo)… que esse advérbio ‘até’ teve que recair?
O perigo é que a utilização de tais mecanismos manipulatórios acaba elaborando campos associativos fechados, que geram processos cognitivos estritamente vedados, constituindo-se, assim, em importantes instrumentos para a fundamentação de ações discriminatórias.
Motivo de chacota
Não sei o motivo da perda do embarque da ialorixá iyá Nitinha. Preferiria nem pensar que pudesse ter ocorrido por forças superiores (e, aqui não falo da ordem do divino). Acreditava que, mesmo que tivesse sido provocado por um engarrafamento ou coisa que o valesse, ainda assim sabia que tais forças estavam presentes: não-acesso à boa prestação de serviços, ausência de infra-estrutura para melhoria da qualidade-de-vida, incisiva presença de mecanismos de invisibilidade, políticas de destituição de auto-estima etc.
Hoje, lendo as matérias sobre as causas para a perda do vôo, descubro: uma funcionária de certa companhia aérea, que poderia ter viabilizado a ida da ialorixá, pouco caso fez ao ouvir da própria iyá Nitinha que ela precisava chegar a Brasília para integrar a comitiva presidencial. Indesculpável! Mas, ainda assim, compreensível. Afinal, são muitos séculos de invisibilização. Depois de analisar a foto publicada, em jornal carioca, com os líderes religiosos que junto com a comitiva presidencial viajaram, dá para imaginar por que, para parte da população brasileira, iyá Nitinha não cabia na foto. Vocês ainda têm dúvida?
Não por coincidência, na mesma página, mas abaixo da foto da comitiva dentro do avião, vemos a imagem de iyá Nitinha, já no terreiro na Bahia, desfazendo as malas. São todos homens, são quase brancos, usam luto preto em vestes estritamente tradicionais, segundo a visão ocidental. Mal podemos dizer quem é representante político, quem é representante religioso. Iyá Nitinha é oposto disso tudo: mulher, negra, baixa, gordinha, em luto branco (a cor do luto nas religiões afro-brasileiras) e, como lembra um comentarista de outro jornal carioca, com trajes rituais de deslumbrante riqueza. Mas, ele emenda: como boa baiana, perdeu o vôo. É isso! Iyá Nitinha é nordestina e, como bem lembra a imprensa, filha da ‘terra da preguiça’, que, não por acaso, concentra maioria negra no país. Por isso, foi motivo de chacota para a descontração do tenso vôo da comitiva, como lembra um jornal de São Paulo.
Uma concessão
É preciso que o Brasil se acostume a ver iyás Nitinha entre rabinos Sobel, arcebispos Aviz, pastores Rolf, bispos Scherer e xeques Saleh. Afinal, para os descendentes de africanos no Brasil, não há nenhum estranhamento nisso – as iyás Nitinhas são nossas avós, mães, vizinhas, trabalhadoras e mantenedoras das famílias brasileiras (sejam mães, babás etc.), mesmo sendo essa uma sociedade patriarcal. Por isso, Dona Nitinha é iyá, mãe. É necessário que a mídia brasileira não mais continue reproduzindo isso que considero mais terrível que a própria invisibilização: a visibilização excludente; que faz aparecer, mas que estereotipa, clicheriza, preconceitua… estigmatiza.
Iyá Nitinha, mais que representar as religiões de matrizes africanas no Brasil, representaria todos nós, brasileiros, tão massacrados por remotas políticas excludentes e suas conseqüências, que encontramos nas nossas relações de fé o conforto para as nossas mazelas e a cura para as nossas aflições, que, no mais das vezes, não podem ser buscadas nos caros medicamentos, no deficiente serviço público de saúde, nas poucas opções de lazer e entretenimento (massacradas pelas ofertas propostas pela indústria cultural e de consumo) etc. Por isso, iyá Nitinha representaria, sobretudo, os descendentes de africanos no Brasil, tão invisibilizados das produções em mídia e, até então, excluídos dos grandes acontecimentos de cunho internacional, dos quais o Brasil oficialmente participa – mas que, quando in[ex]cluídos, são [in]visibilizados pelos mesmos e velhos mecanismos ideológicos, que, não por acaso, nos reservam a estigmatização, a repulsa e o preconceito.
A utilização do advérbio ‘até’ parece significar a permissão para a presença de um outro (diferente) entre iguais hegemônicos e homogêneos (mais uma vez a questão racial teima em se apresentar). Soa como uma satisfação, um esclarecimento acobertado pela característica de diversidade dada a essa viagem. E fica claro que a presença da ialorixá iyá Nitinha, quando referida pelos meios de comunicação, não diz respeito ao reconhecimento da diferença, à diversidade; mas única e exclusivamente à concessão para a participação do que, por tantos séculos, tem sido considerado ‘primitivo, bárbaro, selvagem’ junto a nossa plural, porém homogênea comitiva presidencial.
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Professor, doutor em Comunicação e Cultura