PÚBLICO
"Entre a televisão
e o jornal", copyright Público, 16/9/01
"Numa semana em que o trágico atingiu proporções inimagináveis, mostrando como a realidade pode ultrapassar a mais fantasiosa das ficções, a abordagem mediática dos atentados terroristas nos EUA foi compreensivelmente dominada pela televisão. Há situações em que o ?directo? – hoje tão facilitado por tecnologias que permitem acesso imediato aos locais dos eventos – se justifica de todo e ocupa um insubstituível lugar. Assim, com os acontecimentos a desenrolarem-se minuto a minuto frente aos nossos olhos, o trabalho jornalístico de mediação com os espectadores torna-se menos visível, por vezes até totalmente silencioso, embora decisivo na escolha do que se mostra: a preocupação é captar a maior quantidade possível de ângulos e pontos de vista, mas não esquecendo nunca que o propósito é informativo, com as inerentes exigências profissionais e éticas.
Ancorados nas grandes cadeias televisivas americanas que estavam no local, os canais portugueses fizeram globalmente um trabalho atento, proporcionado e correcto. A isso ajudou certamente o material de base que recebiam de estações como a CNN, a CBS ou o Sky News, e que, como nas páginas do PÚBLICO já sublinhou Eduardo Cintra Torres, foram muito cuidadosas e contidas, procurando mostrar e informar sem ceder a sensacionalismos ou à crua exploração emocional de sentimentos – o que nem seria difícil na situação, tantas as tragédias pessoais que, imaginamos, se sucederam naqueles dias terríveis.
As imagens mais chocantes que vimos terão sido as de uma ou outra pessoa saltando para o vazio (e para uma morte certa) das janelas do World Trade Center. Mesmo essas, quase não as vimos, pois diversas cadeias parecem ter optado por não as mostrar – ou, mostrando-as em curto ?flash?, não as repetir morbidamente vezes sem conta, como noutras situações temos visto.
Esta imagem, de resto, gerou polémica no terreno da imprensa escrita americana, pois (como se soube nos dias seguintes, pela troca de perguntas e respostas entre provedores do leitor de todo o mundo) diversos jornais optaram por a publicar, com mais ou menos destaque. Foi o tema da chamada ?suicide photo?, que suscitou protestos de leitores em diversos locais mas que, como disse, muitas publicações decidiram não usar. Nem era necessário, tão abundante e expressivo da dimensão do horror era o material divulgado pelas agências fotográficas. Talvez a própria contenção das televisões tenha favorecido, aqui, alguma prudência.
Mesmo no caso da imprensa portuguesa, praticamente todos os jornais escolheram outras imagens – fortíssimas, terríveis, mas por assim dizer menos ?individualizadas? no retrato da tragédia -, dando exemplos de um respeito pela dignidade de pessoas concretas que se assinala. Até porque não têm faltado exemplos de sinal contrário na cobertura de acontecimentos trágicos mais próximos da nossa casa.
O trabalho da imprensa escrita no acompanhamento noticioso deste invulgar atentado permite, entretanto, atentar num ponto interessante: a televisão, ainda que omnipresente e em directo, nem de longe esgota a sede de informação das pessoas, sobretudo nos momentos que se seguem ao impacto inicial que nos deixa, boquiabertos, colados ao ecrã. Confirma-o a enorme procura de jornais no próprio dia e nos imediatos, confirma-o a profusão de edições especiais com que tantos títulos avançaram (algumas até com distribuição gratuita, em diversas zonas dos EUA), confirma-o o aumento de tiragens.
Isto parece sugerir, mais uma vez, que os diferentes suportes por que é veiculada a informação (e note-se, além da TV, a utilização intensíssima da Internet para actualizar dados ao minuto…), ao contrário de se anularem, se complementam. Ou seja, têm vocações diversas e tanto melhor (sobre)viverão quanto melhor souberem aprofundar o seu papel específico, em vez de tentarem batalhar todos no mesmo terreno. Aos anos que se prediz que os jornais vão acabar, e eles, aparentemente, não acabam. Vão-se modificando, não são insensíveis aos desenvolvimentos tecnológicos que atravessam todo o panorama mediático, confrontam-se com novos desafios, podem vir a tomar formas diversas das de hoje no correr do tempo, mas preenchem uma função particular que, se bem entendida e cultivada, os torna insubstituíveis.
Que procura um leitor quando, horas depois de uma tragédia que acompanhou em directo pela televisão ou pela rádio, se apressa a comprar o seu jornal, ou até diversos jornais? Em parte, quer rever o que de algum modo já sabia, agora mais devagar, com mais atenção, relendo isto e aquilo, voltando atrás, detendo-se em aspectos que a TV dá de raspão e em imagens que nunca páram. Mas isso é só uma parte. Há outra, mais relevante do que a ?repetição do mesmo por outros meios?: há o ir mais longe e mais fundo na compreensão do que aconteceu, o tentar perceber as causas e prever as consequências, o analisar com a ajuda das opiniões já mais ?a frio? de terceiros, o descobrir relações próximas ou longínquas entre estes e aqueles factos, enfim, o enquadrar a ?notícia? num contexto muito mais vasto que nos permite reflectir, aprender, criticar, formar opinião, ler o mundo.
Esta é uma nobre e decisiva vocação da imprensa escrita, e não apenas da semanária – que aborda os assuntos com vários dias de recuo e pode ir mais longe neste esforço de interpretação e ponderação dos acontecimentos. Não. Nos tempos de hoje, com a omnipresença de rádio, televisão e ?net? – cujas vocações primeiras, nestas situações específicas, são ?dar? o que se está a passar, temperando-o com um ou outro comentário necessariamente rápido, ?a quente? e tantas vezes interrompido por novos dados daqui e dali -, a distância face aos eventos já não se mede em dias, mas em horas. Assim, os próprios jornais diários, sob pena de deixarem o seu trabalho apenas meio feito, e ultrapassado, não podem bastar-se com a repetição do que já se viu e ouviu; precisam de dar mais resposta, mais desenvolvida, mais enquadrada, à necessidade das pessoas de saberem melhor o que se passou, mas também como, porquê, em que contextos, com que bases e efeitos. De outro modo, arriscam-se a ser dispensáveis – e, nesse cenário, não seriam as televisões (então pelo que vamos vendo entre nós…) a colmatar essa importante lacuna de uma informação mais serena, mais funda, mais larga, mais reflexiva.
Eis um desafio grande para os jornais diários – a que eles, mesmo de forma desigual, vêm tentando dar resposta – e uma exigência suplementar para os jornalistas. É mais, muito mais, do que simplesmente ?levar a mensagem? daqui para ali."