ENTREVISTA / THOMAS FERENCZI
Leneide Duarte, de Paris
[clique, abaixo, em Texto Anterior para ler a introdução desta matéria]
A que o senhor atribui o prestígio do Le Monde?
Thomas Ferenczi ? Acho que o Le Monde criou um estilo novo na imprensa francesa, há 50 anos. É uma história antiga, quase antes da guerra. A imprensa francesa na primeira metade do século 20 tinha uma reputação bastante ruim: era uma imprensa considerada desonesta, muitas vezes até sórdida; uma imprensa corrompida e, por outro lado, parcial, ligada a partidos. O jornal Le Monde criou (não creio exatamente que tenha inventado, mas impôs um novo estilo, um jornalismo de análise) um jornalismo que tem uma certa ambição de honestidade, de imparcialidade, de objetividade, o que então era bastante novo para a imprensa francesa. Isso correspondia a uma época muito particular depois da guerra, quando todos os homens que tinham feito a Resistência quiseram criar uma imprensa nova, que seria respeitada como um verdadeiro instrumento da democracia. O Le Monde, criado em 1944, foi, sem dúvida, o primeiro jornal a adotar essa linha. Ele herdou as instalações de um jornal que se chamava Le Temps e surgiu como um jornal diferente que, acredito, é um modelo que se impôs particularmente na Europa e, talvez, também na América Latina ? ou seja, uma certa imagem de seriedade, de qualidade e de rigor. Nesses 50 anos, o jornalismo evoluiu e acredito que prestígio do Le Monde é explicado por essa inovação que ele trouxe.
E desde sua criação ele vem crescendo e se tornando cada vez mais importante.
T. F. ? O jornal enfrentou crises, cresceu, sua tiragem aumentou de maneira extraordinária até o fim dos anos 1970. Depois conheceu uma crise ao mesmo tempo financeira e de vendas. Em seguida, em 1995, transformou-se sob a direção de Jean-Marie Colombani, que assumiu em 1994 como diretor da publicação. O jornal soube se renovar e reconquistar o prestígio que, em parte, ele tinha perdido durante os anos de crise.
Por que na semana passada [16-22 set] Le Monde decidiu publicar uma página diária do jornal The New York Times?
T. F. ? Porque imaginamos que isso devia interessar nosso leitor, isto é, o fato de ter acesso direto a uma página do NYT num período em que os Estados Unidos estão no centro do noticiário. Existe uma necessidade do leitor, não somente do Le Monde mas da opinião pública de uma maneira geral, de querer ter acesso aos textos originais. Como cada vez mais há pessoas que compreendem inglês na França, achamos interessante inaugurar assim uma colaboração com o New York Times. Já traduzíamos alguns artigos mas quisemos de uma certa forma internacionalizar o nosso jornal que se chama Le Monde.
T. F. ? E por que The New York Times? Ele é de uma certa forma um modelo para os jornalistas do Monde?
T. F. ? Sim. Só uma minoria de jornalistas o lêem diariamente mas para nós ele é um grande jornal.
Desde o caso Salengro, na década de 30, sobre o qual o senhor escreveu um livro, o que mudou no jornalismo francês?
T. F. ? Primeiramente, quero dizer que o caso Salengro não é bem um caso típico na história do jornalismo. É um episódio num período de grande polêmica, os anos 30. Para situar as pessoas que não conhecem o caso, Salengro foi um ministro do Interior do governo do Front Populaire (Frente Popular) que se suicidou por ter sido violentamente atacado pela imprensa de extrema direita. Era um período em que, de uma parte, a linguagem dos jornalistas era extremamente violenta, as polêmicas eram muito intensas e a imprensa tinha talvez menos que hoje uma vontade de equilíbrio, de honestidade e de imparcialidade. Era uma imprensa muito engajada inclusive nos excessos que esse engajamento podia significar. A imprensa da segunda metade do século 20 é, pois, uma imprensa muito diferente. Há, de um lado, uma imprensa de qualidade, da qual o Le Monde é um dos melhores representantes, que não se presta a esse gênero de ataque. Por outro lado, há uma imprensa popular, muito menos política que a outra. O caso Salengro foi criado por uma imprensa de extrema direita, muito engajada politicamente. Na época, esse caso não era coberto pela grande imprensa. O que há de novo hoje ? com mais ênfase há cerca de dez anos ? é que o jornalismo de investigação desenvolveu-se muito, isto é, os jornalistas aprenderam a investigar, aprenderam a examinar um caso, primeiramente sob o ângulo da informação apurada, antes de se entregarem à polêmica. O caso Salengro não tinha uma base, não era uma história completamente inventada, mas a imprensa de extrema direita, que divulgou a história, não estava realmente preocupada com a verdade. A imprensa de hoje estaria mais atenta quanto à veracidade das acusações contra Salengro, [a mais grave] de que ele havia desertado como soldado da Primeira Guerra Mundial.
A imprensa de hoje, que faz um jornalismo investigativo, foi influenciada pelo desempenho da imprensa americana nos casos Watergate e documentos do Pentágono?
T. F. ? Sim; pelo menos, pela imagem que fazemos da imprensa americana que talvez não seja a mais correta. É a mitologia da imprensa americana, que, aliás, não é tão antiga, já que agora se sabe que, à época do presidente Kennedy, coisas que poderiam ter sido ditas e não o foram. A imprensa americana desenvolveu-se a partir dos anos 70, na medida em que o poder dos jornalistas se tornava mais forte, que eles adquiriam um papel mais importante. O mesmo fenômeno se produziu na França, com aspectos negativos mas também com aspectos positivos. Os positivos é que os políticos franceses, que estavam habituados a uma certa forma de impunidade, viram-se e hoje vêem-se obrigados a prestar contas. A democracia francesa evoluiu muito e nem a imprensa nem a opinião pública aceitam mais o que seria aceito há dez ou 20 anos.
Quais são os principais obstáculos para se fazer um bom jornalismo em geral? Por que o mau jornalismo é ainda a norma?
T. F. ? Porque é difícil o trabalho dos jornalistas. Ele supõe muita paciência, muito rigor, muita tenacidade num contexto que, ao contrário, os empurra para a rapidez e até para a precipitação ? obrigando muitos, às vezes, a preferirem satisfazer o gosto do público, a tornar espetaculares alguns fatos. Manter o limite para o jornalista que investiga, que informa, que comenta, é extremamente difícil pois há pressões comerciais, a pressão do tempo, a pressão das paixões. As condições do jornalista não são aquelas do historiador, do sociólogo, nem dos magistrados ? por isso, não é fácil fazer um bom jornalismo. Espero que não façamos tão mal.
O senhor acha que existe uma tendência na imprensa escrita, como existe na televisão, a ceder à facilidade, ao que vende jornal?
T. F. ? Isso é bastante ambíguo, pois os que criticam os jornais por fazerem jornalismo investigativo os acusam de querer vender jornal, de só se interessarem pelas atitudes torpes de Jacques Chirac ou pelo passado de Lionel Jospin com o objetivo de vender. É difícil, portanto, estabelecer uma fronteira entre a vontade de informar e o que é um desejo de sedução do público. E isso é mais difícil ainda quando se aceita que é normal responder à demanda do público, à curiosidade da opinião pública. O que é sensacional ou não? Para mim, o que responde a isso é a pertinência das informações. Se consideramos que as informações que damos são importantes, que é importante que o cidadão seja informado para desempenhar bem seu papel, então, acho que não estamos cedendo à tentação comercial. Mas existem também fronteiras.
Quais são as fronteiras, os limites para o Le Monde?
T. F. ? O jornal sempre se recusou a tratar da vida privada dos políticos, mesmo que isso possa interessar ao eleitor, porque achamos que de maneira geral não é pertinente.
Ao contrário dos Estados Unidos e da Inglaterra, onde a imprensa fala muito da vida privada dos políticos.
T. F. ? Nesses países isso não está apenas ligado a uma vontade de vender jornal: faz parte da ideologia deles, da cultura. Os jornais são tentados pelo sensacional, pela necessidade de seduzir o público, mas jornais como Le Monde, os jornais franceses de qualidade, de uma maneira geral resistem a essa tentação ? melhor, sem dúvida, que a imprensa popular inglesa, que é um tipo de imprensa que não existe na França, e mesmo uma parte da imprensa alemã.
A história das passagens de avião do presidente Chirac foi, na sua opinião, tratada com equilíbrio na imprensa francesa? Como o senhor avalia a posição do Le Monde no caso? Muitos leitores acharam um exagero dedicar várias manchetes a essa história.
T. F. ? Uma certa parte do público do Le Monde não está acostumada com o fato de questionarmos os políticos dessa forma. Mas acho que na democracia de hoje um certo grau de transparência é indispensável; e que, se for provado que o presidente da República utilizava dinheiro que vinha de comissões ocultas, ilícitas ? que é o que a Justiça investiga ?, achamos isso inaceitável. Esta é uma exigência nova da opinião pública francesa ou da imprensa francesa em relação a seus dirigentes.
A que o senhor atribui essa mudança?
T. F. ? Talvez à influência americana. Também é devido ao crescente poder dos juízes. É bom lembrar que não foi a imprensa que inventou essa história, foram os juízes que tornaram públicas suas investigações sobre Chirac. Foi a Justiça que começou a investigar e a imprensa divulgou porque não consideramos normal que o presidente da República utilize dinheiro público, mesmo que fosse de fundos secretos. Essa explicação, ainda que verrdadeira, não é satisfatória pois não é normal que o presidente use dinheiro público para viagens pessoais. Sobre esse caso, não acho que o Le Monde tenha exagerado e acho que devemos continuar.
Le Monde publicou no início de julho duas grandes reportagens sobre o assassinato de Ben Barka, na França. O senhor acha que esse é bom exemplo de jornalismo de investigação ?
T. F. ? Sim, mas é um caso particular de investigação, uma investigação histórica. De um lado, há a vontade de tentar estabelecer a transparência sobre um mistério. Mas como é um inquérito sobre nosso passado, isto significa também que nos interessamos pelos pontos sombrios de nossa história. Como quando nos interessamos sobre denúncias de tortura na Guerra da Argélia. Le Monde se interessa sobre a época da ocupação alemã e do nazismo. Para nós, se interessar pelo caso Ben Barka significa voltar a um caso que não é muito glorioso nem para a França nem para o gaulismo, em particular. Essas duas reportagens são investigação e também se inserem no que chamamos "memória", o levantamento de casos históricos com novos dados de investigação jornalística.
Qual a fronteira que delimita o que é atentado à vida privada de um homem público e o que é defesa do interesse público, no contexto do jornalismo investigativo?
T. F. ? O critério é saber se os acontecimentos da vida privada tiveram uma importância na gestão dos interesses públicos. Nós nos perguntamos se essa informação é necessária para que nossos leitores compreendam a ação pública de tal político. Cada caso é um caso. Penso que na questão de Chirac é do interesse público saber se o dinheiro das suas viagens pessoais saiu dos cofres públicos. Isso interessa para saber mais sobre ele e sobre sua forma de gerir o dinheiro público. Se Lionel Jospin foi ou não trotskista interessa aos leitores e à imprensa, e isso é normal, porque se trata de sua face pública. Por outro lado, Le Monde não disse nada sobre a filha ilegítima de François Mitterrand, por considerarmos que isso fazia parte de sua vida privada e que não havia razão para falar desse assunto. A mesma coisa aconteceu quanto a sua doença, e aí eu acho que nós nos enganamos. Acho que a doença de um chefe de Estado é de interesse público, mesmo se isso está no contexto de sua vida privada.
Por que Le Monde não falou da doença do presidente?
T. F. ? Primeiramente, porque não tínhamos a informação segura e também não nos interessamos em checá-la. Nenhum jornal francês falou disso, exceto, bem no início, a imprensa de extrema direita, o que tornou o assunto parte de um jogo político. Mas acho que a saúde de um político não pertence somente à sua vida privada: pertence à sua vida privada e à sua vida pública. No fim, todos os jornais noticiaram porque o presidente mesmo anunciou.
Mas isso faz parte de um respeito sobre assuntos da vida privada que parece sagrado na França.
T. F. ? O respeito da vida privada na imprensa francesa é principalmente o respeito da vida sentimental ou amorosa dos políticos. Mas quando ele mesmo começa a se expor, isto é, se mostra com sua mulher ou seus filhos, então os jornalistas podem achar que têm o direito de falar das famílias desses políticos. Mas não é o caso, isso continua um tabu.
Isso explica o fato de a imprensa francesa não dar a idade das pessoas entrevistadas? Isso seria parte do respeito à vida privada?
T. F. ? Isso não é voluntário, não é um hábito. Às vezes se dá a idade dos politicos, mas das pessoas entrevistadas sempre, realmente, não faz parte do nosso hábito.
Duas perguntas do último capítulo de Eles o mataram:
o caso Salengro, Thomas Ferenczi (Editora Plon)
"A história do jornalismo moderno é a de sua emancipação em relação a todos os poderes e, portanto, de sua afirmação como um poder autônomo, capaz de enfrentar os outros. Mas quem enfrentará o poder dos jornalistas?"
"Mesmo se eles pensam que fazem bem obrigando as autoridades a se explicarem sobre assuntos sensíveis ou ajudando na luta contra a corrupção, os jornais não merecem muitas vezes as críticas que lhes são dirigidas quanto à sua arrogância e irresponsabilidade?”