COBERTURA DO TERROR
"Guerra das redes", copyright Folha de S. Paulo, 21/09/01
"A bárbara matança de milhares de pessoas nos Estados Unidos abalou os alicerces de nossas sociedades, ao colocar em questão os princípios da coexistência e da civilidade nas quais elas se fundamentam. Mas o dia 11 de setembro de 2001 tem um significado ainda mais dramático: nessa data foi desencadeada a primeira guerra mundial do século 21, uma guerra na qual, queiramos ou não, já estamos mergulhados.
Qual é essa guerra? De quem contra quem? Como se prevê que ela vai se desenrolar? Só compreendendo em que guerra nos metemos poderemos agir sobre ela a partir de nossos diferentes valores e interesses.
Não é um choque de civilizações -essa é uma idéia falsa difundida por aqueles que reduzem o multiculturalismo de nossa espécie à oposição etnocêntrica entre Ocidente e ?os outros?. Não é um choque de religiões, porque a grande maioria dos muçulmanos e a quase totalidade dos governos dos países islâmicos se opõem ao terrorismo e, em grande medida, apostam na integração na economia mundial e na comunidade internacional. Tampouco é um choque entre os pobres e o capitalismo mundial, embora a exclusão social leve ao desespero do qual se alimenta o fanatismo.
É essencial distinguir essa guerra da oposição ao modelo neoliberal representada pelo movimento antiglobalização, já que traçar paralelos ou aproximações entre as duas coisas levaria à criminalização do movimento antiglobalização e ao sufocamento do grande debate democrático sobre os conteúdos da globalização, debate esse que apenas começou.
Estamos diante de uma guerra definida em termos mais precisos: é a guerra das redes fundamentalistas islâmicas terroristas contra as instituições políticas e econômicas dos países ricos e poderosos, em particular dos Estados Unidos, mas também da Europa ocidental -países estreitamente vinculados em sua economia, em suas formas de democracia e em sua aliança militar.
Na raiz dessa guerra, existe uma rejeição da marginalização dos muçulmanos e uma afirmação da supremacia dos princípios religiosos do islamismo como sustentáculo da sociedade (se bem que em interpretação que se choca com os ensinamentos humanistas do Alcorão). A identidade humilhada e o menosprezo cultural e religioso dedicado ao islamismo pelas potências ocidentais conduzem à resistência e à convocação à guerra santa. E essa resistência se concretiza na oposição à existência de Israel e se alimenta da opressão que Israel exerce sobre o povo palestino.
Portanto, o x da questão está nessa identidade islâmica (não árabe) exacerbada e no projeto de defesa/imposição desses valores em todo o mundo, a começar pelos países muçulmanos. O mundo ao qual Bin Laden aspira já existe: é o Afeganistão do Taleban. Essas redes de terror se alimentam também da frustração de setores (ou governos?) de alguns países muçulmanos, humilhados pelo que sentem ou vêem como o neocolonialismo dos países ocidentais.
É possível, também, que as redes terroristas de origem distinta, incluindo setores da economia criminosa, possam encontrar formas táticas de cooperação com as redes islâmicas (exemplo: a economia do Taleban é dependente do tráfico de ópio que supre o chamado ?caminho turco? da droga até a Europa ocidental).
Dois lados
Resumindo, de um lado estão os EUA, a União Européia e todos os países que, de uma forma ou outra, participam do sistema econômico e tecnológico dominante, incluindo a Rússia (que também se confronta com redes islâmicas, partindo da Tchetchênia), o Japão, a China e a Índia.
Do outro lado, há um núcleo duro e irredutível de redes terroristas do fundamentalismo islâmico, com possíveis cumplicidades de alguns governos, com alianças táticas com outras redes terroristas e desfrutando da simpatia difusa de setores das populações dos países muçulmanos.
Essas redes diversificadas procuram impor seus objetivos utilizando as únicas armas eficazes, dada sua situação de inferioridade tecnológica e militar: o terrorismo de geometria variável, abrangendo desde o atentado individual até as matanças maciças, passando pela desorganização da complexa infra-estrutura material em que se baseia nossa vida diária. E contando com a transformação de pessoas em munição inteligente, mediante a prática generalizada da imolação.
Com a guerra assim colocada, os Estados Unidos iniciou, com o apoio de seus aliados, a mais difícil das guerras: a guerra contra uma rede global capaz de rearticular-se constantemente e de acrescentar novos elementos conforme outros vão sendo destruídos, porque se alimenta do fanatismo e do desespero social de milhões de muçulmanos.
Essa guerra não será muito parecida com a do Golfo. Até a morte e o sofrimento serão diferentes, porque afetarão em medida maior os americanos e seus aliados. Será uma guerra cruel, prolongada, insidiosa, que chegará a todos os cantos, com múltiplas reações violentas dessas redes multiformes e bem equipadas, que sabiam o que estariam provocando e estão preparadas para enfrentá-lo, possivelmente com armas químicas e bacteriológicas.
Mas como se ataca uma rede? Falando em termos assépticos e baseando-me nas pesquisas sobre esses temas parece necessário distinguir entre três processos.
O primeiro é a desarticulação da rede. O segundo consiste em impedir que a rede se reconfigure. O terceiro é evitar sua reprodução.
É sobre esse terceiro nível que versa a maioria das discussões bem intencionadas dos últimos dias: é preciso estabilizar o mundo mediante a inclusão no desenvolvimento daqueles que hoje estão excluídos dele, é preciso praticar a tolerância multicultural, é preciso forçar Israel a aceitar um Estado palestino e impor a judeus e palestinos a convivência mútua -difícil, mas não impossível.
Desarticulação da rede
A primeira tarefa, na qual os governos ocidentais estão engajados agora, é a de vencer esta guerra, começando com a desarticulação da rede. Isso requer, por um lado, a identificação e eliminação de seus núcleos estratégicos, nos quais reside a capacidade de coordenação e tomada de decisões.
Vem daí a intenção de destruir as bases operativas no Afeganistão e em outros lugares ainda não determinados. Também nesse contexto se pede a captura ou morte de Bin Laden, tanto por sua importância carismática de profeta do movimento como pelo valor simbólico que sua captura teria.
A União Soviética foi derrotada no Afeganistão, mas as coisas mudaram. Os guerrilheiros islâmicos tinham o apoio da CIA, do Paquistão e da Arábia Saudita. E os americanos provavelmente utilizarão as novas táticas conhecidas genericamente como ?swarming? (enxameação), baseadas no deslocamento de pequenas unidades de comando com alto poder de fogo, autonomia própria, coordenação eletrônica entre elas e acesso constante a informações por satélite, além de apoio aéreo instantâneo com armas de precisão.
Mesmo assim, suas perdas serão enormes. Desta vez os EUA não vão limitar-se a bombardear e depois ocupar terreno. Vão combater as redes com suas próprias redes, utilizando a capacidade tecnológica para compensar a falta de conhecimento do terreno. Em termos de ferocidade e determinação, desta vez os inimigos estarão em pé de igualdade.
O ponto fraco dos americanos é a baixa qualidade das informações de que dispõem, consequência da queda no nível de seus serviços de espionagem nos últimos tempos. Mas eles esperam compensá-la com a ajuda israelense, saudita, palestina e, sobretudo, com a colaboração dos paquistaneses, que sabem o que acontece no Afeganistão. Vem daí o papel decisivo que o Paquistão poderá desempenhar. Aliado essencial dos americanos ou país dividido por uma guerra civil, com a possibilidade de os fundamentalistas acessarem a seu arsenal nuclear.
A guerra do Afeganistão será apenas um elemento, embora importante, nessa fase de desarticulação das redes. Ao mesmo tempo, ações pontuais na Palestina, no Líbano, possivelmente na Líbia, no Egito e no Iraque (imprevisíveis) procurarão neutralizar, destruir e desorganizar os pontos de conexão identificados.
A segunda fase é evitar que grupos e agentes chaves se transfiram ou reorganizem suas atividades com novos membros. O que conta aqui são três tarefas: detectar e interceptar os fluxos financeiros; interceptar as comunicações eletrônicas nas quais se baseiam os contatos globais; e enfrentar as novas ações de terrorismo com que as redes vão responder à luta.
De certo modo, a identificação dos núcleos operacionais da rede terrorista será tão simples quanto sinistra: eles estarão nos lugares onde acontecerem atentados de destruição em massa.
A guerra contra essas redes será levada a cabo por uma rede de Estados e suas respectivas forças armadas, numa geometria completa de alianças e interesses na qual os governos terão que lidar com a dupla dependência de sua lealdade à rede de defesa conjunta e das diferentes sensibilidades de suas diversas opiniões públicas. E as alianças vão variar na medida em que em alguns países, especialmente em países muçulmanos, ocorrerem reações populares contra a guerra ao terrorismo.
A única esperança de sobrevivência daquilo que hoje é nossa sociedade, é que, durante o processo de destruição das redes de terror, sejam assentadas as bases sociais, econômicas, culturais e institucionais necessárias para evitar que elas se reproduzam.
Nossa organização econômica e social e nossas instituições políticas geraram os fenômenos que hoje temos que combater -Bin Laden, que aprendeu com a CIA. A longo prazo, é absolutamente necessário promovermos uma reforma profunda em nosso mundo, superando a exclusão social e a opressão das identidades.
A curto prazo, estamos em guerra. Achei que o mais honesto era revelar em que consiste essa guerra. Oxalá eu esteja enganado. (Tradução de Clara Allain)"
"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 21/09/01
"A razões morais e psicológicas da guerra – A fala de Bush não deixa dúvidas de que está em curso uma ação militar em grande escala no Afeganistão, e uma ação política de impacto na construção de uma frente mundial contra o terrorismo. Mas a operação militar parece trágico-grotesca. Os americanos precisam purgar um profundo sentimento de culpa pelo fracasso de seus mais elementares sistemas de segurança. Precisam produzir urgentemente alguns heróis ou mártires, e por isso vão fazer besteira. A fala valentona de Bush não convenceu alguns dos principais comentaristas da BBC, por exemplo, que ainda duvidam da existência de uma estratégia clara e objetivos bem definidos. Paulo Sotero, escrevendo de Washington no Estadão, diz que o Estado Maior norte-americano ainda está dividido sobre o alcance da operação.
E as razões econômicas da guerra – O fundamentalismo islâmico, instituído por Kadafi, adotado pelo Irã e pelo Afeganistão, continua ganhando as mentes e corações de massas islâmicas em alguns países ainda regidos por regimes seculares, como Turquia, Argélia, Egito e o próprio Paquistão. É o único sistema ideológico que se antepõe hoje à globalização neoliberal. A derrubada dessa resistência por um capitalismo global que se expande inexoravelmente pode ser a razão subjacente da amplitude dada pelos norte-americanos a esta guerra, logo no seu início.
O buraco negro no discurso de Bush – Considerando que sua cara de caipira não ajuda nem um pouco, Bush conseguiu fazer um bonito discurso, falando de improviso, a partir de um roteiro escrito. A morte de mais de seis mil inocentes no WTC calou fundo em todos os povos, mesmo nos povos hostis aos norte-americanos. Mas foi um discurso de valentão, repleto de chavões, ameaças e lugares comuns. Em nenhum momento abordou as causas do terrorismo.O terror surge no seu discurso como fenômeno da natureza, sem explicação. O mal em si mesmo.
A dimensão da recessão americana – A Folha reproduz na íntegra, na página B2, o cândido depoimento de Alan Greenspan ao Congresso norte-americano, em que ele diz que o ataque terrorista feriu uma economia que já estava em trajetória de recessão, ao afetar o fator confiança e ao paralisar o transporte aéreo por duas semanas, e com isso todo o sistema de produção ?just in time?. O retrato mais abrangente da recessão americana está na matéria ampla do Wall Street Journal, reproduzida na página B10 do Estadão. Os gráficos mostram que o declínio da atividade econômica nos EUA começou em outubro do ano passado e virou recessão já em março.
A mentira do déficit público – O Brasil é o único país do mundo que inclui no cálculo do déficit público o efeito da variação da taxa de câmbio sobre as dívidas públicas. Isso foi revelado na coluna de ontem de Celso Pinto, na Folha e no Valor, e é abordado hoje por todos os jornais, inclusive em editorial do Estadão. Nenhum jornalista, entretanto, parou para pensar no significado dessa revelação. Dizem apenas, com alegria, que se nosso déficit público, hoje da ordem de 5,4% do PIB, for calculado sem considerar o efeito do câmbio, como todos os demais países fazem, cairia quase à metade: 2,8 % do PIB. Nenhum jornal lembrou-se de observar que se é verdade o que está dizendo Celso Pinto, toda a gritaria dos últimos oito anos de nossos economistas de plantão sobre a gravidade do déficit público, e na verdade toda a política econômica de austeridade estava baseada em comparações falsas, numa maneira de medir que nenhum outro país usava, numa mentira.
E agora Doutor Malan? – Isso significa que os cortes brutais feitos sob o pretexto de equilibrar o déficit público eram desnecessárias? Que não era preciso engavetar tantos projetos de hidroelétricas e linhas de transmissão? Que poderia haver mais dinheiro para a saúde e educação? Que não precisavam morrer tantas criancinhas e nem ter tantos buracos nas rodovias federais? Pode ser. Mas nem Celso Pinto, que deu o furo, lembrou-se de formular essas perguntas.
O déficit público como falácia – Uma em cada três manchetes do Estadão nos últimos anos foi dedicada ao ?déficit público?. Diminuir o déficit público tem sido o grande mote da era FHC, a grande tarefa nacional, objetivo prioritário da equipe econômica. Agora descobre-se que eram manchetes sobre um objeto falseado. Um objeto que tem metade do tamanho que se dizia ter. O conceito ?déficit público? não só é alheiro ao dia-a-dia das pessoas e das empresas, como havia sido transformado no Brasil numa ficção contábil.
A mágica do FMI – A reportagem de Celso Pinto tem o objetivo exclusivo de passar a boa notícia de que o FMI decidiu mudar a forma de calcular o déficit público do Brasil. E como vai desconsiderar o efeito do câmbio, nosso déficit caiu de um dia para o outro à metade. Só que nem mesmo essa mágica está bem explicada. Se o dólar sobe e a dívida pública sobe, os pagamentos de juros e do principal em reais sobem também – não há, enfim, como desprezar o efeito do câmbio no déficit público.
Confusão entre fluxo e estoque – Dívida é um estoque. O déficit público é um fluxo, um gasto contínuo que excede a receita. É chamado nominal quando se incluem os gastos com juros, e chamado primário quando não inclui. Essas duas definições já foram uma construção dos economistas para encobrir o fato de que o Brasil não tem déficit primário, mas, ao contrário, tem enormes superávits feitos justamente para garantir o dinheiro para pagar os juros. A matéria de Celso Pinto é pouco clara: depois de discorrer longamente sobre a queda do déficit nos últimos meses pelo novo critério, o jornalista diz o seguinte: ? Embora os juros tenham subido e, com eles, as despesas financeiras, também subiu, neste ano, o superávit primário (receitas menos despesas, exceto juros). O desempenho fiscal, portanto, melhorou, medido dessa forma, mas piorou, e muito, se medido com o impacto cambial?.
Então não tem mágica nenhuma: é claro que se no cálculo das receitas menos despesas forem desconsideradas as despesas com juros, o câmbio tem pouca influência, porque a maioria das outras despesas dentro do país são em reais. Só quando tem que pagar juros e parcelas vencidas da dívida é que entra o câmbio.
Maquiagem dos indicadores – Pode ser que está em curso uma nova maquiagem das contas públicas brasileiras. A primeira foi a mágica redução da dívida externa em US$ 30 bilhões, no começo do mês. Agora é a mágica redução do déficit público. Miriam Leitão, em sua coluna de hoje no O Globo, parece ter matado a charada. O FMI decidiu que no cálculo da relação estoque da dívida/PIB, o valor atribuído ao estoque da dívida pública só vai ser corrigido pelo câmbio no final de cada ano. Mesmo que o dólar suba todo dia. Trata-se, portanto, de mera camuflagem dos indicadores.
Retrato do Brasil – A cidade das crianças famintas. ?Uma em cada quatro crianças de Magé está com fome?. Assim começa a reportagem de Claudia Amorim no JB de ontem. Muitas crianças só se alimentam na escola. Em casa não tem comida. Magé não fica no sertão do Ceará ou no Alto Amazonas. Tem 350 mil habitantes e está aí mesmo, na Baixada Fluminense. Um quarto de seus habitantes está abaixo da linha de pobreza.
Não deixe de ler – Duas importantes análises sobre a guerra: na última página do caderno especial da Folha, em ?Guerra das redes?, o importante sociólogo espanhol Manuel Castels tenta precisar a natureza desta guerra. É contra o Islã? É de quem contra quem? Sua tese é a de que se trata de uma guerra entre redes fundamentalistas islâmicas terroristas (mas não o Islã como tal) e as instituições políticas e econômicas dos países ricos, em especial os EUA. Na sua raiz está a marginalização e o menosprezo dedicado ao Islamismo pelo Ocidente. Diz que não basta destruir as redes. É preciso assentar as bases sociais, culturais e institucionais para que elas não se reproduzam. Na página 2 do Estadão, em ?A paz em tempos sombrios?, o professor de Direito Internacional da USP, Alberto de Amaral Júnior, atribui a guerra a uma crise de qualidade da hegemonia norte-americana, devido à incapacidade dos EUA de mediar com imparcialidade os contenciosos mundiais ou comprometer parte de seus interesses em nome dos interesses gerais, expressa na regressão inicial da administração Bush ao isolacionismo."