Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A construção da vingança

GUERRA AGENDADA

Paulo José Cunha (*)

Aparentemente, apenas uma guerra contra um inimigo (ainda em construção) emerge assustadora dos escombros do World Trade Center. Mas, na verdade, existem dois fronts de combate bem distintos. O primeiro deles delineia-se nas telas dos computadores que restaram ainda operantes depois da explosão do Pentágono: a guerra contra o terrorismo internacional, consubstanciada por enquanto nas ameaças aos países que protegem os membros do grupo talibã Al Qaeda, tendo à frente Osama Bin Laden e sua cambada. E, para permitir adesão maciça à teoria da represália, necessária para lavar a honra americana ultrajada pelas ações que atingiram seu território até então praticamente intocado, trava-se o segundo combate. Ele tem seu front na mídia americana, com reflexos diretos na mídia mundial.

No plano interno, tem sido muito bem sucedido o esforço americano de evitar a exploração das imagens mais trágicas do ponto de vista humano. Sabemos pelo noticiário das agências internacionais sobre o trabalho de resgate dos escombros do WTC de braços e pernas encontrados longe das respectivas cabeças; sabemos de dedos e de vísceras; sabemos de cadáveres, milhares deles, já em estado de putrefação. Mas não se sabe de suas imagens, paradas ou em movimento, nem lá nem aqui. Não se fala no cheiro nauseabundo que recobre um bom pedaço de Manhattan. Com isto, dois objetivos são atingidos: evita-se a exibição externa do sangue do país, subitamente fragilizado pela ação do inimigo. E, ao mesmo tempo, garante-se no plano interno a permanência da imagem do ato terrorista exclusivamente no que diz respeito ao seu uso político, despindo-o do que possa contribuir para amedrontar ou conduzir o povo americano à reflexão das conseqüências desastrosas que poderão advir de uma represália contra alvos insignificantes do ponto de vista estratégico, como o território afegão. É mister manter acesa a chama da vingança. Nada de pieguismos, pois.

Pouca gente parou para refletir sobre o significado da lista de canções que emissoras de rádio e televisão receberam com a "sugestão" de que tivessem sua veiculação evitada. Curiosamente, todas elas ? desde a velha What a wonderful world, na voz rouca de Armstrong, ainda cheirando ao napalm usado no Vietnã, até a delicada Imagine, do beatle John Lennon são canções pacifistas. Difícil acreditar que se pretenda apenas evitar a intensificação da dor. É mais fácil ver por trás da "sugestão" o interesse em manter bem viva a necessidade de retaliação. Manifestações pela paz, só do Pentágono para fora. Ao mesmo tempo, incentiva-se a execução do hino nacional, para elevar os decibéis do patriotismo. Enquanto isso, a Casa Branca entope diariamente os escaninhos das agências noticiosas com o discurso da guerra para que ele se espalhe pelo mundo ajudando a criar ambiente internacional solidário a qualquer uma das ações armadas em exame. Mesmo que seja um ataque aos miseráveis fundamentalistas do Afeganistão.

Os grandes estúdios estão cancelando ou adiando lançamentos de filmes e séries cujos conteúdos façam referência a ações terroristas e acidentes aéreos. Aqui, não se trata de repetir o ditado segundo o qual não se fala de corda em casa de enforcado, metáfora explorada com maestria pelo tio Hitchcock em seu Festim diabólico (Rope). Mas, sim, de evitar que a tragicidade do ataque terrorista, por um efeito de comparação e conseqüente redução, se ficcionalize e, como conseqüência, amorteça a convicção pela revolta. Algo como tentar arrancar pela ausência de reabastecimento um pedaço do imaginário americano que vem sendo cuidadosamente construído pelos roteiristas de Hollywood há dezenas de anos.

Pois é, lá para dentro a estratégia tem dado certo, haja vista a fabulosa imagem das milhares de bandeiras americanas espalhadas por toda parte. Mas, no plano internacional e, curiosamente, a partir das análises partidas de historiadores e pensadores americanos contemporâneos, consolida-se o pensamento: 1) de repúdio e combate ao terror sem a supressão das liberdades civis; 2) de discordância a uma ação armada contra inocentes miseráveis de um país dominado por um bando de fanáticos, pois isso também seria um ato de terror; 3) a médio prazo, de se começar a fazer uma revisão das ações de política externa americana em relação à questão palestina e da política econômica predatória nas relações com os países periféricos ou de sua área de influência.

A ensaísta e escritora americana Susan Sontag sintetizou muito bem a posição que vem tomando corpo ao escrever: "A unanimidade da retórica cheia de santimônia e ocultadora da realidade despejada pelas autoridades americanas e por analistas da mídia nos últimos dias é indigna de uma democracia madura."

Chegou a hora de a mídia internacional sair do ramerrão e parar de repetir chavões como o ataque "covarde" contra a "civilização", a "humanidade" ou "o mundo livre". O ataque foi contra os Estados Unidos e tudo o que eles representam. Ponto final. Ou seja: por mais que evitem as canções de paz lá dentro, elas continuarão a ser entoadas aqui fora. Enquanto a população americana vem sendo psicologicamente preparada para a vingança (um sentimento pessoal), o resto do mundo exige justiça (um sentimento universal).

(*) Jornalista, pesquisador, professor de telejornalismo. Dirige o Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>


 

    
    
                     

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