A grande imprensa neoliberal brasileira – que não estranhou o fracasso de Doha, fracasso das suas próprias pregações pelo livre mercado, detonado pelos países capitalistas cêntricos, resistentes à abertura das suas fronteiras para os produtos agrícolas dos países capitalistas periféricos – não fez o dever de casa para avaliar por que o ministro Gilberto Gil, igualmente, não conseguiu acertar suas estratégias culturais, destinadas a promover o produto cultural brasileiro.
Dominada pelo pensamento neoliberalizante, no qual sequer acredita, pois quando está numa pior corre para os braços do Estado, pedindo recursos, como fizeram os banqueiros norte-americanos diante da crise bancária, a grande mídia realizou pífia cobertura sobre a saída de Gil e a forma em que ela se deu.
Não deu atenção ao essencial que ele disse, isto é, que não teve condições de trabalhar porque não superou o discurso defendido pelo poder midiático, baseado no apoio à prioridade número um do governo, fixada no artigo 166, parágrafo terceiro, II, letra b, da Constituição de 1988, que proíbe contingenciamento para quase tudo, menos para o pagamento dos juros da dívida pública interna. Uma república constitucional bancocrática.
Gordas verbas da Petrobras
Para a saúde, educação, segurança, cultura, pode haver brutais contingenciamentos, que paralisam as atividades governamentais nos ministérios atingidos. Para os juros pagos, religiosamente, aos credores, não pooooode, como diria a humorista pernambucana Fabiana Karla.
O Ministério da Cultura teria, apenas, R$ 1 bilhão e pouco de recursos, mas, contingenciados, sobrariam menos de R$ 400 milhões, uma ninharia. Enquanto isso, o pagamento dos juros toma R$ 200 bilhões por ano, já tendo consumido mais de R$ 1 trilhão na Era Lula.
Nesse ambiente, Gil ficou de pés e mãos amarrados, sem nenhum apoio midiático contra o contingenciamento neoliberal lulista para a cultura e descontingenciamento antineoliberal para a banca.
Tentou uma ação maior, nacionalista, por meio da criação da agência nacional do audiovisual e do cinema, mas, como estão por trás desses interesses a grande mídia, dançou.
Sobrou sua tentativa de descentralizar o processo cultural, centralizado pela legislação que concentra recursos para a cultura, favorecendo aqueles que estão suficientemente organizados em lobbies, para abocanhá-los, historicamente, no eixo Rio-São Paulo, especialmente, para obter gordas verbas na Petrobrás, a tetal estatal para a cultura.
Os privilégios dos banqueiros
Sequer a mídia trabalhou com dignidade, em favor do produto cultural brasileiro, a boa ação gilbertiana de liberar os certificados digitais de modo a permitir que haja ampla mobilidade para os internautas criarem seus produtos sem sofrerem a condenação centralizadora dos que combatem o software livre. Ela ficou a favor da manutenção do oligopólio das importações da Microsoft, cujos programas pautam o consumo, tanto privado como governamental, de forma acachapante.
Gil, bloqueado pelo neoliberalimo cultural vigente, que tem o poder midiático como estandarte, conseguiu disseminar essa democratização internáutica, num mercado, que, infelizmente, ainda é restrita para pouca gente, marcando importante tento. Hoje, no espaço global é, inclusive, chamado de ‘ministro hacker‘, graças a essa ampliação das oportunidades gerais no plano da circulação na banda larga.
Mas, no espaço da legislação vigente, saiu amplamente derrotado pelos grupos oligopólicos da comunicação nacional, apoiados pelo presidente Lula, que se rendeu à tentativa da desconcentração das ações culturais, afetadas pela escassez de verbas. Prioritária não é a cultura, mas a bancocracia, constitucionalmente, garantida.
O ministro, frente a essa avalanche neoliberal do poder midiático, mereceu a caricatura de ministro, como tentaram classificá-lo as revistas Veja e Época. O editorial do Estado de S.Paulo na quinta-feira (31/7) foi na mesma linha, traduzindo a ação do compositor-ministro como marcada pelo que seria uma incapacidade gilbertinana de agitar a cultura nacional, e não por conta das razões básicas, tão defendidas pelo grande jornal, isto é, o privilégio concedido aos banqueiros, que engordam nos juros reais mais altos do mundo.
Nacionalismo cultural
A mídia bancocrática vê a cultura como entretenimento absoluto, como ocorre nos Estados Unidos, ricos, que mercantilizam tudo, mas atuam, sem dúvida, nos bastidores, do mesmo modo em que jogam para favorecer os agricultores norte-americanos, frente às tentativas de desamarrar o mercado de Tio Sam para os produtos agrícolas de outros países, vale dizer, concedendo subsídios, subvenções, política fiscal privilegiada – e, agora, o dólar sobredesvalorizado que incrementa exportações – para que o estilo norte-americano invada culturalmente o mundo.
Os segundos cadernos, no final de semana, lixaram-se para uma apreciação mais demorada sobre a gestão Gilberto Gil. Não deram um panorama decente para o tema. Teriam que abordar a tentativa da regionalização da cultura nacional, pressuposto básico da política cultural, detonada pela política econômica conjunta do Banco Central e do Ministério da Fazenda, que vêem a cultura como estorvo para as contas públicas, sob intenso aplauso do poder midiático.
Gil, minado pela inteligência midiática, perdeu as forças para prosseguir com a discussão do nacionalismo cultural, no plano interno, como demonstram tendências que se ampliam em todos os espaços regionais, na atualidade globalizada, especialmente, na América Latina.
Vale lembrar o discurso de Octavio Paz, em 8 de novembro de 1990, em Estocolmo, desancando o discurso neoliberal, enquanto recebia o Prêmio Nobel de Literatura: ‘La declinación de las ideologias que he llamado metahistóricas, es decir, que asignam un fin e una dirección a la história, implica el tácito abandono de soluciones globales.’ O nacionalismo cultural, nesse caso, como reconhece o grande escritor-poeta mexicano, representa a necessidade da afirmação nacional para atuar como coadjuvante global.
Legislação excludente
O ministro tropicalista esqueceu o mandamento do tropicalismo de guerra contra as estruturas carcomidas. Não agiu como provavelmente agiria Glauber Rocha, seu conterrâneo, para quem a luta política é, essencialmente, luta ideológica.
A determinação constitucional existente para a integração latino-americana no plano cultural – como também para o econômico, político e social – foi desdenhada pelo ministro, no esforço geral da promoção-união sul-americana. Preferiu voltar suas ações para os países ricos, mas sem uma articulação interna, para promover o produto cultural brasileiro como pauta prioritária do comércio exterior.
No mundo em que os empregos estão sumindo, em que a humanidade vai sendo liberada pela ciência e pela tecnologia a serviço da produção, de modo a ampliar as horas de lazer, a aposta na cultura, certamente, é alternativa para geração de renda, emprego e consumo, especialmente para a juventude.
As tentativas, nesse sentido, do ministro foram vistas pela grande mídia como algo sem maior importância. Ficou, assim, sem bala para levar adiante um projeto cultural que vai sendo dificultado pelas forças concentracionistas que se fortalecem em torno de uma legislação excludente, favorável apenas aos interesses dos grandes grupos investidores.
Discursos e boas intenções
Nesse sentido, o governo vai dando a entender que tem apenas retórica. A TV Pública, por exemplo, está se transformando numa esfinge. Prega, filosoficamente, a disseminação-regionalização, mas, nos bastidores, está sob pressão da falta de dinheiro, que a obriga a abandonar sua política pretensamente desconcentracionista.
Vai levando pauladas, como levou Gil, que, cansado, entregou a rapadura. O jogo da grande mídia, que pensa oligopolicamente no plano econômico, político, social e cultural, continua faturando seus conceitos ideológicos que determinam a intensificação do processo de concentração.
Sobram, tão-somente, os discursos e as boas intenções, como a do ‘ministro hacker‘, aplaudido lá fora, mas capado aqui dentro pelo neoliberalismo cultural vigente. Como dependente dessas articulações poderosas para vender seu próprio produto, Gil pensou com seu umbigo e deixou a luta para lá.
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Jornalista, Brasília, DF