Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Com vagar e competência

GLOBO RURAL

Cláudio Weber Abramo (*)

"Mijamos em comum numa festa de espuma." Da leitura adolescente de poema de Vinícius de Moraes, só me ficou esse verso. Tratava-se decerto de uma bucólica, gênero literário de temática campestre que tem como patrono imortal o poeta latino Virgílio.

Uma batida na internet (êta coisinha boa!!) confirma. É o "Soneto de intimidade": "Fico ali respirando o cheiro bom do estrume/ Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme/ E quando por acaso uma mijada ferve// Seguida de um olhar não sem malícia e verve/ Nós todos, animais, sem comoção nenhuma/ Mijamos em comum numa festa de espuma."

É um pouco desse jeito que me sinto aos domingos de manhã, ao zapear a TV e bater no Globo Rural (para assistir ao Globo Rural é necessário ser afetado por insônia matinal, inconveniente que de fato me aflige). Paro ali e assisto a algumas matérias sobre assuntos que jamais me ocorreriam sequer existir, quanto mais cobrir.

Capim colonião, inseminação artificial de porcas, criação de tilápias, eficiência de pequenos geradores de energia elétrica, um mundo que o citadino nunca se lembra que existe.

Meus filhos, quando eram pequenos, aí pelos sete-oito anos, assistiam religiosamente ao Globo Rural. Na época, eu não entendia por quê, exatamente. Hoje percebo melhor.

Para mim, o Globo Rural é o único jornalismo televisivo brasileiro de fato competente. Nota-se que as matérias são feitas com vagar, há uma edição que parece criteriosa, o passo lento e pausado parece sob medida para transmitir ao telespectador ? fazendeiros reais ou imaginários, sem dúvida ? aquela sensação de serenidade e segurança que costumamos associar à mente rural. Fica-se a imaginar que a própria ilha de edição do programa é movida a boi de carga. Nhén, nhén, range o VT.

Não vai nisso censura, muito ao contrário. O que sobressai no programa é uma constância de política editorial que se reflete numa estabilidade de produção e reportagem que não se vê em nenhum outro noticiário, programa de variedades ou de reportagens.

Talvez isso se dê porque, ao menos na aparência, esse setor tenha conseguido escapar dos ditames do marketing. Ninguém fica dando lição de moral, ou representando a notícia como se rádio-novela fosse. Vão lá, conversam com as pessoas, entendem do que se trata, dão o recado, temperam com uma vinheta sobre comida ou fabricação artesanal de algo insólito e está feito.

Sob meu ponto de vista ? que, admito, é retrógrado ?, é o vagar com que cada assunto é tratado que responde pela qualidade jornalística do programa. Não parece que a redação seja dominada por máximas do tipo "ninguém agüenta matéria de mais de 10 segundos". O repórter pode entender o que está cobrindo, e não simplesmente dizer ao entrevistado "explique esse negócio aí".

Certa vez, fiz parte de uma comissão que concedia prêmios de jornalismo. Na categoria de telejornalismo, demos o prêmio a uma matéria sobre ninhais do Pantanal, reportagem de José Hamilton Ribeiro. Não creio que a tal matéria correspondesse ao melhor que o Globo Rural é capaz de produzir. Mesmo assim, era cem vezes superior às concorrentes.

Assim continua sendo em todas as manhãs de domingo.

(*) Secretário-geral da ONG Transparência Brasil <http://www.transparencia.org.br>; e-mail <cwabramo@uol.com.br>

    
                  

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