MÍDIA E CREDIBILIDADE
Antonio Fernando Beraldo (*)
Conclusão de artigo cuja primeira parte está publicada na edição anterior do OI [veja remissão abaixo]
De volta ao artigo do professor Rubem Alves. Ele matou a charada ao fazer a comparação "jornais são refeições, bufês de notícias selecionadas segundo um gosto preciso", e que esta seleção revela o que ela (a imprensa) "pensa do gosto gastronômico dos seus leitores". Chocado com uma entrevista da apresentadora(?), modelo(!) e atriz(??) Adriana Galisteu, ele se espanta com o tipo de comida que é servido aos leitores (vou resistir à piadinha-pronta Galisteu/comida/servida, em respeito às damas).
Professor, com todo o respeito, agradeça a Deus: o senhor ainda não viu nada. Bem-aventurados são os que não têm filhas adolescentes ? não são obrigados a comprar a enxurrada de revistas que contém revelações importantissimas sobre a atualidade nacional, como, por exemplo, se a cantora e atriz(?) virgo semper intacta Sandy já beijou "de verdade". Ou qual é "o verdadeiro amor" do multifacetado(??) Maurício Mattar, ou o que pensam (ponhamos assim) as Sxxchheilas do Tcham. Bem-aventurados os que não assinam o catálogo de propagandas, digo, revista, Veja: não precisam garimpar uma ou outra página com matérias, para descobrir que o possível sucessor do Bin Laden pode ser "ainda mais perigoso". Nossa, que medo! O que será que ele vai fazer? Jogar veneno na Disneylândia? Pintar o Michael Jackson com a cor natural?
Torneira fechada
Há muito, muito tempo, jornais e revistas deixaram de ser apenas veículos de informação. Há mais tempo ainda, as campanhas de venda de produtos-coisas e produtos-gente, feitas por empresas especializadas em marketing-de-qualquer-coisa, tomaram para si 99,9% da tinta e do papel em circulação neste planeta. A coisa chegou a tal ponto, professor, que volta e meia encontramos encartadas, nas Vejas e IstoÉs da vida, propagandas especiais, caríssimas, com amostras de perfume (com cheiro e tudo), tecidos, xampus, chocolate… A revista Caras, líder deste "segmento de mercado", oferece aos distintos leitores um faqueiro completo, uma peça por semana. Continuando nesta velocidade, daqui a pouco a revista(?) irá presentear seus bem-aventurados consumidores um tijolo por semana, um saco de cimento a cada 6 meses e um cupom anual para as ferragens ? ao fim de 25 anos, teremos uma torre completa do castelo de Caras; acompanha poster da Hebe Camargo, na festa dos seus 112 anos, posando ao lado da neta da Xuxa.
Jornais ainda não são totalmente vitrines de modelos-e-atrizes à venda nem distribuem faqueiros, por enquanto. Mas já distribuiram panelas e não escapam à poluição de páginas e mais páginas de lançamentos imobiliários, de promoções de lojas de varejo e de tudo quanto é traquitanda, desde aparelhos para emagrecimento ("até 4 kg por semana") e clínicas de terapias sexuais até conjunto de facas para churrasco que nunca perdem o corte. Isto sem falar na praga dos cursos de "pós-graduação", nos jornais do Rio e São Paulo. Exemplo: "Neurofisiologia Aplicada, a partir de R$ 98,00 na UNIG ? Universidade de Iguaçu" (UNIG? Iguaçu?). Será que aceitam cartões de crédito? Será que dão desconto para quem não freqüentar as aulas?
Só esta "coisa" do patrocínio das faculdades particulares pode explicar um editorial como o do Jornal do Brasil, de saudosa e respeitável memória, "Pagando o Pato" (29/9/01). Entre outras pepitas refulgentes de desinformação, lemos "…grevistas do serviço público, tanto no âmbito federal quanto no estadual e no municipal, vivem no melhor dos mundos (sic), "… "pesquisas [que pesquisas?] mostram que, em alguns níveis [que níveis?] os alunos chegam a perder o equivalente a um ano letivo no espaço de quatro a cinco anos ? … privação irreparável para eles e para o país" [vai ser preciso assim l&aacaacute; longe!]; "…em meio a polêmicas sobre medidas governamentais para melhorar a qualidade do ensino… o provão é uma delas." Esta foi gol contra: se o provão provou alguma coisa, foi que as faculdades federais e estaduais estão a anos-luz de distância, em termos de qualidade de ensino, das UniverCidades e Estácios de Sá e outros atacadistas que ajudam o JB a sobreviver). Continua o editorial: "…todo esforço é pouco para acabar com as fábricas de diplomas, professores malformados e alunos despreparados" [outro gol contra, não falei?].
A Folha de S.Paulo, em editorial sobre o mesmo assunto, "Universidades Paradas", pelo menos chamou a atenção para a torneira fechada de recursos para as federais e para os salários(?) dos docentes e técnicos, e para a produção em pesquisa e tecnologia focada na realidade brasileira ? o que só as universidades federais e estaduais apresentam. Mas este é apenas um entre os milhares de exemplos do que pode e do que consegue o "negócio do jornal".
Infinitas vítimas
Jornais, uma feijoada quase completa, com um pouco de quase tudo, mas raramente um pedaço de carne no meio do entulho. Um banquete, sim, mas o cozinheiro está prá lá de comprometido com que o patrão-mercado manda servir. E se a credibilidade faz, ou faria, parte do sabor da comida, aí adentramos o perigoso terreno da metafísica. Eu, cozinheiro, posso conquistar a sua confiança dizendo coisas que você quer ouvir, do jeito que você quer ouvir. Posso até, como se faz hoje em dia (e se fez sempre), ensinar a você quais as coisas que você irá querer saber, e gostar de saber. Posso criar e modificar o seu gosto. Não preciso nem me preocupar com um possível "senso crítico" seu, uma vez que a TV já fez o trabalho de aplainar sua consciência. A dobradinha TV-jornais é a chave desta credibilidade.
O filme citado por Rubem Alves é o exemplo perfeito disso. A novela Being There, de Jerry Kosinsky (1971), transformou-se numa obra-prima do comediante inglês Peter Sellers, em 1979. O protagonista principal, Chance Gardener (jardineiro, em inglês), faz do jardim de seus patrões um lugar perfeito, um mundo compacto, isolado do resto do planeta. E o resto do mundo chega a Mr. Gardener via TV, nunca por jornais ou revistas. Mr. Gardener costura uma "filosofia" básica, pseudo-ingênua de entendimento das coisas, que imagina intocada pelas mentiras, distorções e bobagens publicadas pela imprensa. Suas "verdades" são simples, brutas, chapadas como as cores dos desenhos animados que adora assistir. É o que se pode chamar um filmaço, deste que a gente não esquece.
Um filme como este deve ser revisto, neste dies irae que não nos dá sossego. Melhor ler com muito cuidado os jornais e revistas, que, defendendo ou atacando os americanos, judeus, palestinos, talebans e bin Ladens da vida (e da morte), querem nos fazer acreditar que estamos assistimos a mais um filme de cowboy. Bobagem, meu amigo: neste filme não existe mocinho ? é tudo bandido, e da pior espécie; e vítimas, muitas, infinitas vítimas. Segundo o relatório sobre desenvolvimento da ONU, 11 milhões de crianças morrem por ano vítimas da falta de atenção e de condições básicas de saúde. No Brasil, são 108 mil, antes de completar o primeiro ano de vida ("Os bebês e o World Trade Center", Milú Villela e Hélio Mattar, Folha de S.Paulo, 30/9/01). Pense nisto. Mas não pare de ler jornais.
(*) Professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora
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