O CLONE
"Essas novelas e seus tabus", copyright O Estado de S. Paulo, 30/09/01
"A boa televisão, a que zela pela qualidade de seu conteúdo, vive eternamente entre o desejo de criar, avançar, romper barreiras, e o temor de que isso provoque reações fortes no telespectador, comprometendo os índices de audiência. Prega o profeta Boni, não por acaso, que ?a televisão deve andar sempre um passo na frente do público?, o que dá a justa medida de ousadia e prudência necessárias, pois significa estar adiante das expectativas do momento, mas não a ponto de descolar-se delas. Dificilmente haverá, entretanto, gangorra mais delicada de equilibrar do que essa e, a partir de amanhã, teremos não uma, mas duas telenovelas para acompanhar os esforços de autores e diretores na busca do ponto ideal.
Estréia amanhã O Clone, novela de Glória Perez para a faixa das 8 na TV Globo, com direção de Jayme Monjardim e Marcos Schechtman. Chega mexendo logo em dois vespeiros: a clonagem de seres humanos, assustadora perspectiva aberta pelos avanços da genética, e o mundo islâmico, um tabu para o Ocidente há 1.300 anos, particularmente agora, após os atentados terroristas nos Estados Unidos. Mas a estreante não estará sozinha na arena da polêmica.
Ao lado dela, já no ar há algumas semanas, a novela das 7 – As Filhas da Mãe, de Silvio de Abreu, dirigida por Jorge Fernando – põe em cena nada menos que as peripécias amorosas de um transexual, ultrapassando o antigo limite dos romances mais ?convencionais? entre gays e lésbicas. Sendo este um País majoritariamente cristão, conservador e homofóbico, é compreensível que a Globo esteja fortemente preocupada com as possíveis reações negativas do público.
Mas é neste momento, precisamente, que a telenovela pode optar entre ser apenas entretenimento ligeiro, ou obra dramatúrgica capaz de inquietar e levar a pensar. É agora que a TV está entre o seu direito de ganhar dinheiro oferecendo lazer às pessoas e o seu dever de informá-las e educá-las. Não pode acovardar-se. Certamente os índices de audiência serão examinados com muito mais angústia, e haverá um coro de medrosos sugerindo a ?suavização? das tramas, a cada pequeno revés. Poderão surgir reações externas dos fundamentalistas de sempre, os extremistas do obscurantismo. Mas é do interesse da maioria dos telespectadores que todos os temas delicados, do passado ou do momento, do País ou do mundo, sejam tratados com liberdade e seriedade pela televisão. Os esforços nesse sentido merecem apoio.
Que ninguém se iluda, entretanto. Novela é apenas novela, um coquetel de romances e intrigas, uma sucessão de desencontros entre galãs e mocinhas até os casamentos finais. O debate de temas como clonagem, islamismo ou transexualismo será só pano de fundo para tapas e beijos. Não se deve esperar mergulhos analíticos em profundidade, mas antes os vôos estratosféricos da imaginação. Ainda assim, esses temas estarão expostos diariamente, por meses, a milhões de pessoas. Se despertarem a curiosidade de apenas alguns milhares delas, levando-as a buscar mais informações e aperfeiçoar o seu conhecimento, as duas novelas já terão mais que cumprido a sua missão. Divertirão educando – e é tudo o que podemos esperar delas.
Brasilidade é legado de Avancini
É quando aborda temas como transexualismo, clonagem e islamismo que a novela pode optar entre ser só entretenimento, ou obra capaz de levar a pensar"
"Efeitos buscam realismo para ?O Clone?", copyright Folha de S. Paulo, 30/09/01
"Coma estréia amanhã de ?O Clone?, nova novela das oito da Globo, volta a se destacar a dupla Tony Cid e Chico Mauro. São eles os responsáveis pelos efeitos visuais que ?duplicarão? o ator Murilo Benício, intérprete dos gêmeos Lucas e Diogo e, a partir do capítulo 30 ou 40, do clone Leandro.
Cid e Mauro também são responsáveis, entre outros trabalhos, pelas cenas que reuniam os irmãos Félix e Bartolomeu, interpretados por Antônio Fagundes, no começo de ?Porto dos Milagres?.
Para ?O Clone?, além de sequências em que Benício contracena consigo mesmo, Cid e Mauro planejaram cenas em que um irmão joga um objeto para o outro e em que os dois se tocam.
Parte do trabalho é feita pelo software canadense Inferno, mas em muitos casos os técnicos precisam ?recortar?, quadro a quadro, pedaços de uma imagem para nela inserirem outra. ?Às vezes, para cinco, dez segundos de imagem no ar, são de quatro a cinco horas no computador?, afirma Cid.
A duplicação ?simples? funciona assim: com um mesmo fundo, como uma parede, estante ou até mesmo uma paisagem distante, e a câmera fixa, Murilo Benício grava duas vezes a mesma sequência, como Diogo e como Lucas.
É definida uma marcação para que o ator ocupe metade do quadro de cada vez. As sequências gravadas são, então, ?cortadas? ao meio e fundidas, formando uma só, na qual os irmãos conversam.
Já nas cenas em que há interação, como uma sequência na qual um irmão mexe no cabelo do outro, o trabalho é mais complicado. ?Um dublê passa a mão na cabeça de Murilo. Depois, o ?apagamos? e inserimos em seu lugar o próprio Murilo fazendo o gesto?, explica Mauro.
Ele define esse tipo de sequência como ?coreografia?, pois, além dos efeitos visuais, o resultado depende mais do ator e da direção. ?Nós damos algumas indicações sobre o posicionamento correto das câmeras e apresentamos um ?storyboard? (desenho das cenas)?, afirma.
Logo nos primeiros capítulos da novela, o trabalho da dupla estará presente também durante o acidente de helicóptero que causará a morte de Diogo. Parte das imagens foi feita com a aeronave desligada, erguida por um guindaste. No computador, Cid e Mauro geraram o céu de fundo, ?apagaram? o guindaste da cena e criaram o movimento das hélices, inclusive o reflexo delas no vidro do helicóptero.
?É comum fazer esse tipo de mudança. Nesse caso, o Murilo não tinha como sair sozinho pilotando um helicóptero?, afirma Mauro.
Outra intervenção da dupla aparecerá nas cenas de apresentação do Rio e de Marrocos. Foram feitas imagens de paisagens locais em horas variadas, que serão fundidas. ?São como retratos, feitos com aberturas de diafragma diferentes. Ao sobrepor as imagens, aproveitamos as áreas mais iluminadas em cada horário, gerando uma iluminação por igual?, explica Cid.
A paisagem marroquina também foi alterada por computador em uma sequência que mostra uma forte tempestade de areia. Outras cenas em que Murilo Benício aparece no Egito foram totalmente finalizadas no computador, com imagens pré-gravadas de paisagens locais, já que a equipe da novela não esteve naquele país. (O CLONE – Globo, de seg. a sáb., 20h30)"
"Dilema das arábias", copyright Época, 01/10/01
"Desde 11 de setembro, executivos e roteiristas do cinema americano enfrentam um dilema. Que tratamento Hollywood dará a personagens e temas muçulmanos depois da tragédia causada pelos atentados a Nova York e Washington, atribuídos a terroristas islâmicos? Apresentar nas telas os seguidores de Maomé como criaturas ternas e perfeitas pode soar tolo e politicamente correto em demasia. Exibir algum deles no papel de vilão, em contrapartida, seria uma escolha preconceituosa.
A novela O Clone, que estréia nesta segunda-feira em horário nobre na Rede Globo (emissora das Organizações Globo, empresa que publica ÉPOCA), tem desafio semelhante. A história traz um núcleo de personagens muçulmanos envolvidos em questões típicas dessa cultura, como dotes de casamento e poligamia. O personagem Ali, vivido por Stenio Garcia, é um radical defensor dos casamentos múltiplos e arranjados.
Devido ao clima quente das últimas semanas, os temas de inspiração oriental deverão roubar a atenção da trama central: a clonagem de seres humanos. Caberá a Glória Perez, autora de O Clone, ao diretor Jayme Monjardim e a nove atores encontrar o tom certo para falar da cultura e do universo de uma família de marroquinos adeptos do Corão. Monjardim reconhece que, inevitavelmente, a realidade vai intervir na ficção. ?Nenhum capítulo foi alterado, mas Glória acabará mudando o tratamento dado aos personagens, ainda que inconscientemente?, diz. A autora nega. ?Não mexi em nada, minha história não é sobre terroristas.?
Apresentar tipos estrangeiros de forma simpática é uma tradição das novelas brasileiras. O mestre em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo Mauro Alencar diz que os italianos são os campeões de audiência. Desde o pioneiro Nino, de Nino, o Italianinho (1969), até a dupla Matheu e Juliana, da recente Terra Nostra (1999), eles têm conseguido destaque. A TV brasileira parece um encontro das Nações Unidas: o protagonista Severo (Jonas Mello) de Meu Rico Português (onde também havia um casal de alemães), em 1975; a nissei Midore (Midore Tange) de O Grito, em 1975; a espanhola Aldonza (Lolita Rodrigues) de Sassaricando, em 1987; Dona Armênia (Aracy Balabanian) de Rainha da Sucata, em 1990; e Simão (Jonas Bloch), um judeu, em Olhai os Lírios do Campo, em 1980.
Em todos os casos, os folhetins sempre se comportaram com respeito diplomático e simpatia aos outros. ?Essa tradição da novela reflete o espírito do brasileiro, sempre aberto a estrangeiros e às diversas religiões?, analisa a historiadora Lúcia Padilha, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. Ela afirma que um programa com núcleo muçulmano seria impensável em qualquer canal europeu ou americano na atual e explosiva realidade mundial. ?O Brasil tem uma tradição de sincretismo religioso, ecumenismo e multiculturalismo que não deixa espaço para preconceito. Quando ele aparece, é étnico, atinge negros ou nordestinos, mas não estrangeiros.? Essa diferença é notável. Sucesso absoluto de audiência, o seriado americano Família Soprano, que focaliza uma família de mafiosos de forma crua, até agressiva, provocou reação irada da comunidade italiana dos Estados Unidos.
Personagens árabes já estrelaram novelas. O de maior sucesso foi o comerciante de origem síria Nacib, em Gabriela (1975). O médico especialista em reprodução humana Roger Abdelmassih, de 57 anos, filho de libanês, tem boas lembranças de Nacib, interpretado por Armando Bogus. ?Ele me trazia lembranças de meu pai, que tinha aquele sotaque e o espírito de imigrante, pois veio para o Brasil trabalhar no comércio no interior de São Paulo?, recorda. Salomão Hayala (Dionísio Azevedo, em O Astro, de 1977) e o simpático Rachid (Luís Carlos Arutim, em Renascer, de 1993) também ficaram na memória popular. ?Alguns árabes eram caricatos, mas sempre foi bom vê-los na TV?, diz Abdelmassih. ?Dá orgulho de nossa origem.?
Nos programas de humor, os limites não são diferentes. As sátiras arrancam gargalhadas dos telespectadores – e não protestos. É o caso da dupla humorística formada pelo muçulmano Salim Muschiba (vivido por João Elias) e o judeu Samuel Blaustain (Marcos Plonka), personagens da Escolinha do Barulho, da TV Record. Para Chico Anysio, que lançou os dois na Escolinha do Professor Raimundo, o truque é fazer graça dos tipos, e não das religiões. ?Não há preconceito?, avalia. A coordenadora do Núcleo de Pesquisas de Telenovelas da USP, Maria de Lourdes Motter, concorda. ?Os tipos escapam da patrulha porque não entram no debate sobre a fé propriamente dita. Seria mexer em terreno espinhoso.?
Para evitar escorregões em O Clone, dois xeques – líderes intelectuais – estão prestando consultoria a Glória Perez e todo o elenco. Os especialistas ensinam conceitos e costumes muçulmanos. ?Os princípios religiosos estarão muito bem explicados?, diz o xeque Abdelbagi Sidahmed Osman, presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro. ?Essa novela será uma ótima maneira de mostrar que os terroristas representam uma minoria e o Islã prega a paz.? Todo esse cuidado não tranqüiliza a colônia muçulmana, em estado de alerta. ?É uma obra de ficção, vai acabar aparecendo uma falha ou outra?, afirma Mohammad Nassib Mourad, presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana de São Paulo. ?Mas, se o erro for grave, estamos prontos para reclamar e até entrar na Justiça.?
Antes mesmo de O Clone estrear, Mourad já esgrime algumas restrições. Condena a escolha de Luciano Szafir, que é judeu, para interpretar o muçulmano Zein. ?Somos povos inimigos, eles invadiram nosso território. Entre agressor e agredido não pode haver amizade?, dispara, em tom pouco conciliador. Szafir acena com bandeira branca: ?É um trabalho interessante, que me dá a oportunidade de aprender uma cultura e uma religião muito bonitas?, diz.
Na Sociedade Beneficente do Rio, a muçulmana Rosemery Touil está indignada com o comportamento da personagem de Giovanna Antonelli. ?Já nas chamadas, eu vi Jade (Giovanna) beijando Lucas (Murilo Benício). Isso fere os princípios islâmicos, que proíbem o contato físico entre homem e mulher antes do casamento?, reclama.
Glória Perez argumenta que sexo antes do matrimônio também é proibido no catolicismo, e, ainda assim, acontece. ?Se a gente fosse contar uma história em que os personagens seguissem rigorosamente os preceitos de cada religião, essa novela não se passaria na Terra, e sim no Paraíso?, reage. A autora segue, religiosamente, os preceitos do bom folhetim. As novelas são obras de ficção. Cuidados excessivos podem transformá-las numa diversão maçante e insossa. Já o preconceito resulta, de forma inexorável, em personagens que agridem o bom senso. O desafio de Glória Perez é equilibrar as duas faces desse dilema num tempo em que os nervos de todos se encontram à flor da pele."