ANTROPOJORNALISMO
Antonio Brasil (*)
Nem todos os jornalistas americanos necessariamente embarcaram numa cobertura patriótica dos últimos atentados terroristas contra os Estados Unidos. Muitos deles, como o velho âncora da CBS Walter Cronkite, parecem começar a sentir o perigo da perda de perspectiva jornalística numa cobertura voltada simplesmente para uma mobilização internacional de caráter essencialmente militar. Compreensível. Afinal, cada dia que passa nos afastamos um pouco mais das emoções deflagradas pela profusão de imagens sensualizadas pela televisão total, e começamos a procurar "explicações" por todos os meios, até mesmo nos próprios telejornais. Nem tudo nas discussões que já proliferam sobre a atual cobertura internacional de telejornalismo se resume a tecnologia ou ideologia. Assim como aqueles incríveis correspondentes de guerra e seus maravilhosos videofones ajudam a trazer imagens e notícias ainda mais rápido e barato de lugares com nomes estranhos, existem outras ferramentas para aqueles que não se contentam com um jornalismo de televisão superficial e imediato.
É sabido que na atualidade o jornalismo tem privilegiado a especulação, o sensacionalismo e o detalhe, mas tudo com muita estética, forma, rapidez e técnica. Fala-se muito na necessidade de maior conteúdo no jornalismo em geral e na televisão, principalmente. Mas excetuando as inovações tecnológicas, faz-se muito pouco para reverter um quadro pessimista em relação à informação internacional que já vem se deteriorando há muitos anos.
Questões simplistas
Mas como se pode equilibrar esta ênfase na superficialidade e nos recursos tecnológicos que se confundem com a própria essência do meio? Não seria mesmo inevitável que a televisão tudo mostre e nada explique? Simplicidade e objetividade não deveriam ser confundidos com "reducionismo", mas para o jornalista de TV o público e a pressa parecem ser soberanos. Considerando sempre que o público não é nunca culpado e a pressa é inevitável, podemos tentar pensar as origens do quadro atual do telejornalismo internacional em outros campos. Lá mesmo nos Estados Unidos existe há muitos anos, por ironia do destino, uma expressão recorrente em jornalismo chamada "afghanistanism", ou "afeganistanismo", que quer dizer, mais ou menos, alguma matéria sobre o que "ninguém sabe e nem quer saber"! É ainda uma herança típica das vãs tentativas de uma cobertura internacional mais responsável da guerra entre o Afeganistão e a União Soviética durante os anos 80. Época em que os gatekeepers das notícias ? os editores que decidem o que e quando os americanos e o resto do mundo devem saber sobre qualquer coisa, decidiram pelo desinteresse do público de TV pela cobertura internacional.
Hoje, a cobertura de notícias internacionais se reduz aos desastres naturais ou não e, principalmente, às curiosidades amorfas e inúteis. Notícias são produzidas cada vez mais por um número muito restrito de agências, principalmente no segmento televisivo. Em tempos de idéias curtas e vacas magras, privilegia-se a cobertura local em detrimento da cobertura internacional. Não é de se admirar que hoje, mais do que nunca, tantos americanos estejam tão surpresos de que existam tantas pessoas que não gostam de americanos. Mas para aqueles que mantêm uma consciência além dos limites das fronteiras nacionais, o cenário parece mudar. Numa referência entre o público e os "afeganistanismos" ? eles, o público de TV, se ainda não sabem, pelo menos agora já tentam saber.!
Mesmo assim, a discussão sobre o noticiário ainda avança por questões simplistas, entre ser contra ou a favor dos Estados Unidos, que se confundem com o bem, o mal, a democracia, a liberdade e até mesmo com a civilização. Em oposição temos o terrorismo, sociedades, culturas e deuses diferentes e até mesmo ameaças teatrais de um possível retorno à Idade Média. Tudo vale quando se sabe pouco e, pior ainda, quando temos pouco tempo para saber. Na televisão isto é ainda mais dramático! Milhares de jornalistas disputam diariamente a atenção de bilhões de telespectadores ávidos por explicações, quaisquer explicações. Parece que para voltar rapidamente a viver uma vida considerada "normal" precisamos entender em poucos minutos tudo aquilo que sempre nos pareceu incompreensível e mais ainda imprevisível.
Reconstruindo a notícia
Estamos todos pensando em alternativas para evitar a repetição dos mesmos fatos. Entre uma guerra e outra, vasculhamos nossos arquivos e nossas consciências mas continuamos não entendendo nada. É exatamente neste espaço, numa tentativa de reversão dessas expectativas sombrias, que alguns jornalistas de televisão, insatisfeitos com um quadro determinista, resolveram buscar novas ferramentas para acrescentar conteúdo às suas matérias. Longe dos computadores e das câmeras, eles encontraram um grande aliado numa velha ciência, a antropologia.
Apesar de confundida com a sua própria história e com o colonialismo que sempre privilegiou o estudo de tribos ditas "primitivas" e após mais de 100 anos buscando entender o homem na sua totalidade, cabe hoje em dia à antropologia uma contribuição bem maior sobre o nosso mundo. Encarada por muitos jornalistas simplesmente como uma daquelas disciplinas obrigatórias e desnecessárias das escolas de Comunicação do Brasil, a antropologia encerra, em verdade, uma enorme riqueza de conceitos e técnicas especializadas de pesquisa que podem ser de grande ajuda aos profissionais de notícias.
Em livro recente, Media Anthropology ? Informing Global Citizens, editado pela antropóloga e jornalista Susan Allen, discute-se, em vários artigos instigantes, o papel da antropologia nos meios de comunicação de massa. Mas o mais importante é que se especula sobre uma proximidade maior entre a metodologia etnográfica da antropologia, do lendário "trabalho de campo" conduzido por inúmeros antropólogos e da investigação jornalística, principalmente no telejornalismo. É uma tentativa de se mostrar que a antropologia não precisa estar restrita a documentários e filmes etnográficos de povos exóticos que costumam ocupar um espaço limitado nas TVs do mundo inteiro.
Numa afirmação polêmica e inusitada, afirma-se que "a maior oportunidade para um envolvimento antropológico nos meios de comunicação de massa como a TV estaria, em verdade, na área da produção de notícias". Não necessariamente no segmento que chamamos de hard news ou notícias quentes do dia-a-dia, mas naquelas matérias complementares mais explicativas que são tão necessárias para entendermos um mundo totalmente às avessas, repleto de novos personagens saídos de verdadeiras obras de ficção romanceada que insistem em se tornar notícia. Aquelas mesmas notícias que, infelizmente, a partir dos anos 80 foram consideradas desinteressantes e desnecessárias.
Passado e presente
Talvez isto, hoje, também explique um pouco mais essa mesma surpresa de todos, telespectadores e jornalistas de TV, frente aos acontecimentos recentes. Ao renunciar ao imediato e aprofundar a pesquisa sobre o meio social e cultural, a antropologia tem subsídios importantes para uma explicação mais sensata para tantos problemas. A própria noção de objetividade tem parâmetros diferenciados mas complementares nas duas disciplinas. Para a antropologia, objetividade significa ser fiel à verdade. Para um jornalista de TV, objetividade significa ser justo com todas as partes envolvidas.
Entre a curiosidade por povos com costumes "exóticos" e a necessidade de um aprofundamento do noticiário internacional, pode ser que estejamos criando uma espécie de "antropojornalismo". Ou seja, uma mistura entre as propostas totalizantes e científicas da antropologia com as técnicas jornalísticas mais voltadas para a popularização do conhecimento e do interesse geral do público. Definida como "uma certa atitude que filtra a maneira que vemos tudo mais na vida", a antropologia pode não só evitar um pensamento reducionista mas também apontar melhores pautas para um novo jornalismo.
Num dos artigos do livro The Anthropologist as Television Journalist, James Lett, ele mesmo antropólogo e âncora de noticiários televisivos, cita que existem vários pontos comuns entre essas duas atividades. Ambas se dedicam à observação, gravação, descrição e explicação. Porém, cabe à antropologia e sua preocupação com o caráter comparativo e holístico do conhecimento adquirido pela observação evitar o "etnocentrismo" e a "homogeneização cultural" típicas do meio televisivo. Ainda mais em tempos de globalização, que atropela muitas vezes as peculiaridades de cada cultura.
Ele lembra que privilegiar a cobertura local em tempos de terrorismo global também não parece ser muito sensato. Entre escudos tecnológicos de uma verdadeira guerra nas estrelas, mais próxima da ficção científica, discutimos agora o poder de crenças, religiões e do próprio demônio. Tentamos redefinir uma trilha inevitável para o futuro repleto de promessas tecnológicas messiânicas com nomes como cibercultura e internet. Nos voltamos, no entanto, para um passado de deuses que não são mais nem astronautas ou internautas. Mas se afinal tudo é mesmo pura questão de "política", seria bom termos os instrumentos para entendermos pelo menos essa linguagem desses novos tempos. A antropologia tem muita a nos ensinar sobre o nosso presente, mantendo um foco afinado com o nosso passado.
Qualificados, bizarros e herméticos
A proximidade entre o jornalismo e a antropologia é sem dúvida uma proposta ambiciosa. Mas num momento de grandes transformações e avaliações importantes também é preciso pensar no que fizemos de errado para nos surpreender tanto com as notícias. Se por um lado fomos surpreendidos por prédios explodidos por seitas de fanáticos antifederalistas americanos, imaginem o temor do poder de destruição de outros fanáticos que ainda por cima acreditam em Deus, não temem a morte, pertencem a uma sociedade de natureza tribal e têm muito dinheiro. São ingredientes explosivos que produzem grandes desastres pela história, mas também podem produzir um excelente jornalismo. Alguns desses ingredientes ou conceitos podem ser novos para o público e para o jornalismo, mas são velhos conhecidos dos antropólogos.
A antropologia e o jornalismo, de formas diversas, possuem interesses comuns. Porém, a sua confluência ou cumplicidade pode gerar novos campos de interesse tanto para uma área como para outra. Mas existem problemas. Por um lado, tradicionalmente, o meio acadêmico sempre olhou com enorme espírito crítico qualquer tentativa de "popularização" do conhecimento antropológico, até mesmo na Antropologia Visual. Esta populariza&cceccedil;ão sempre foi confundida com um simplismo pouco digno de uma ciência social. Imagem se limita à ilustração, e conhecimento se confunde com "curiosidades que só reforçam preconceitos".
Por outro lado, o jornalismo costuma encarar a antropologia como uma ciência obscura formada por um círculo de estudiosos altamente qualificados, capazes de grande conhecimento, porém bizarros, herméticos e sem nenhuma capacidade de comunicação com os interesses do grande público. Devido a características mais ou menos excludentes como estas se entende por que são poucos os profissionais que trafegam com desembaraço tanto no jornalismo como na antropologia.
Local e global
Esta "exclusão" ainda é mais evidente no noticiário de televisão. Mas se já podemos assistir a comentários pessoais de Arnaldo Jabor, no meio do intocável Jornal Nacional, com verdadeiras "pérolas de antropologia amadora", por que também não poderíamos sonhar com explicações mais sérias, melhores e aprofundadas sobre o Islã, o Afeganistão ou até mesmo sobre o mais novo demônio internacional, o Bin Laden, nos nossos telejornais, num futuro próximo? Na verdade, a antropologia e o jornalismo, apesar das diferenças de metodologia e profundidade, têm um objetivo em comum: ambos priorizam o saber sobre o homem, sua sociedade e sua cultura.
Em outros tempos, nos anos 60, nos mesmos Estados Unidos, outro presidente, o Kennedy, numa proposta bem diversa dos tempos atuais, parecia prever os perigos reservados pela ignorância e intolerância num futuro próximo ao declarar que "nosso maior desafio é fazer do mundo um lugar seguro para diferenças". E é pensando na riqueza dessas diferenças, num mundo globalizante pela uniformidade, que surge a necessidade de um conhecimento mais aprofundado que gere menos arrogância em relação à diversidade. É nesse campo que trabalha a antropologia. E também é dessa forma que deveria ser o jornalismo de televisão ou qualquer jornalismo. Mais voltado para nos ajudar não só a entender esse novo cenário, mas nos tornando mais aptos para influenciá-lo.
Após os ataques terroristas, não é só a política internacional que parece estar de cabeça para baixo. Antropojornalismo pode não soar bem, mas pode indicar um novo caminho para uma atividade que também está em crise há muito tempo, o jornalismo internacional. Parafraseando os ecologistas, talvez também seja a hora de o jornalista agir localmente, mas pensar um pouco mais… globalmente. Apesar da ironia televisiva do termo, é claro!
(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de vídeo
e professor de telejornalismo da UERJ e doutorando em Ciência
da Informação na UFRJ.