Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

MÍDIA & JUSTIÇA

"Combate à impunidade ou ao direito?", copyright Folha de S. Paulo, 9/10/01

"Algumas preciosas lições devem ser extraídas da atuação das instituições ligadas à Justiça nos últimos anos. A primeira diz respeito ao salutar movimento para redimir nosso passado, marcado pela impunidade das elites. Uma nódoa em nossa história.

Para os membros das elites, tradicionalmente o perdão, a complacência e a tolerância; para os demais, o rigor da lei e o castigo, mesmo contra a lei. A reação está sendo empreendida pelas autoridades responsáveis, impulsionadas pela vontade e pela grita de setores sociais, com a participação da imprensa e da parte sadia da classe política.

A segunda lição decorre da primeira. Ou melhor, é a antítese da anterior. Aplausos para a luta contra a impunidade. Protestos e veemente reação contra os exageros que estão transformando esse necessário e justo movimento em um verdadeiro macartismo caboclo. A passagem da impunidade para a fúria acusatória, fazendo de nossa época uma permanente estação de caça às bruxas, é, também, de grande nocividade. As duas situações conduzem à insegurança jurídica, ao desrespeito à lei e à violação da dignidade pessoal.

Há princípios a observar na apuração da responsabilidade penal e os direitos individuais devem ser observados. A dialética processual é fundamental, pois nos mostra que a verdade não pertence com exclusividade nem à acusação nem à defesa. E, permitam-me, nem à imprensa. Infelizmente parte dos veículos de comunicação tem transformado suas investigações e denúncias em instrumento de constante busca do sensacionalismo, do negativo, do destrutivo, sem nenhum compromisso com a ética jornalística, com a verdade e com o respeito ao próximo. Ao encestarem as suas baterias, máquinas e câmeras contra alguém, desejam condená-lo sem processo e sem defesa.

Lançam fatos aparentemente desabonadores, sob o sigilo da fonte, que viram verdades. Ao contrário do que ocorre na Justiça, os fatos não precisam ser provados. O tratamento dado à matéria não é imparcial. Noticia-se só o negativo. Prevalece um abominável maniqueísmo, onde o bom, o positivo e o edificante são esquecidos.

E tal imprensa não se limita a informar, acusa. Não admite defesa, condena. Não quer processo, deseja punição.

Por outro lado, segmentos responsáveis pela aplicação da lei -e até pela sua correta divulgação-, visando a compreensão do povo, estão desviando suas condutas dos compromissos inerentes às suas respectivas funções.

Alguns dirigentes da Ordem dos Advogados conduzem a entidade a posições parciais, olvidando-se que em todo conflito existem advogados exercendo o seu mister e que as suas prerrogativas devem ser respeitadas e defendidas pela entidade. O açodamento desses mesmos dirigentes na tomada de posições, sempre em consonância com o alarido da imprensa, representa a própria negação dos princípios pelos quais temos a obrigação indeclinável de pugnar: presunção de inocência; contraditório; devido processo legal; e direito de defesa.

Membros do Ministério Público -felizmente uma minoria- assumem o papel de acusadores obstinados, sistemáticos, presos ao inexistente compromisso de perseguir a condenação, seja lá em que situação probatória: com provas, sem provas ou contra as provas.

Promotores, pressurosos em mostrar diligência -muitas vezes exigida pela imprensa-, adotam providências, requerem medidas e dão declarações ainda não adequadas às circunstâncias do caso, muitas vezes sequer apuradas e desprovidas de amparo legal. Juízes, por seu turno, embora em pequeno número, rendem-se às pressões da mídia. Não agem com autonomia decisória. Aceitam as postulações do acusador. Estas, em não poucas vezes, constituem caixa de ressonância da imprensa.

Assim forma-se uma corrente indestrutível, uma barreira intransponível, que inevitavelmente conduz o pretenso autor de um crime à prévia condenação, ausentes a acusação formal, o processo, a defesa e a sentença judicial.

A sociedade, por outro lado, é um terreno fértil para que germine o escândalo, a maledicência, a acusação leviana e a execração. Perdeu o poder de crítica e aceita o que lhe é transmitido, especialmente se coincidir com os seus anseios de encontrar culpados para castigar.

Ademais, desconhece por completo os princípios que norteiam a administração da Justiça penal, a ponto de ser indiferente, melhor dizendo, avessa ao direito de defesa. Confunde a figura do advogado com a do acusado, vendo naquele o defensor do crime, e não o porta-voz dos direitos deste. Diga-se: direitos comuns a todos os cidadãos, se forem violados no caso concreto, poderão sê-lo de forma genérica, independentemente de atingir culpados ou inocentes. Aliás inocentes todos são, até que a Justiça declare o contrário.

Todas essas reflexões deveriam ser assimiladas e difundidas pela imprensa, bem como por aqueles que, por causa de suas funções, possuem inarredável compromisso com o direito e com a justiça. Não se deve esquecer que jornalistas, advogados, juízes e promotores vez ou outra também são levados às barras dos tribunais. Nessa hora clamam pela observância daqueles mesmos postulados que nem sempre fazem valer quando se trata de terceiros. (Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, 55, é advogado criminal. Foi secretário de Justiça e Segurança Pública e presidente da OAB-SP)"

    
    

                     

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