Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O socialismo morreu, mas os civis afegãos, não

 

LEITURAS DE VEJA

Jonas Medeiros (*)

Stephen Kanitz, em sua coluna intitulada "Verdades absolutas e tolerância", na revista Veja n.? 1.723, de 24/10/01), escreve que "um dos flagelos do mundo moderno é a crença em que alguns podem mudar o mundo, à nossa revelia, simplesmente porque acham que descobriram teorias que explicam e resolvem nossos problemas". O colunista acrescenta que "embora o mundo não seja como você gostaria que fosse, lembre-se de que o seu ideal de mundo talvez não seja o que outros estão almejando (…) ninguém sabe qual mundo é o melhor, por mais convicto que esteja".

Além de fazer uso do relativismo para fragmentar a sociedade em meros indivíduos ("A verdade, por incrível que pareça, é individual"), o autor prega o conformismo ? uma posição que Veja já defendeu outras vezes, em afirmações como "Não vivemos no mundo mais justo, mas é o melhor possível".

Desfile de conceitos

Em diversos textos, a revista faz uma campanha antimarxista. Vejamos:

1. Neste mesmo artigo de Stephen Kanitz, o autor ressalta que "mais pessoas morreram no último século em guerras ideológicas, como o fascismo, o nazismo e o socialismo". Primeiro, Kanitz equipara os três sistemas, sendo os dois primeiros de natureza bem diferente do terceiro. Ele esquece que a Primeira Guerra Mundial teve um caráter imperialista e capitalista muito forte, com a Alemanha exigindo a redivisão do mundo colonial, então nas mãos de Inglaterra e França.

2. Veja trata do assassinato do ministro israelense do turismo: "Zeevi foi morto a mando da Frente Popular para Libertação da Palestina (FPLP), um grupo que chegou a disputar com Arafat a liderança da resistência nas décadas de 70 e 80, mas acabou caindo na irrelevância em virtude da obsolescência ideológica (até hoje se definem como marxistas) e da concorrência do Hamas [um movimento fundamentalista]". O fato de Arafat ter conquistado a liderança da Autoridade Palestina é creditado ao fato de a ideologia da FPLP ter se tornado "obsoleta". O caso não é tratado historicamente, já que podem (e devem) ter havido outras razões para isso.

3. Estudantes viajando a Cuba e o turismo nos assentamentos do MST são tratados de maneira irônica, uma maneira implícita de criticar a ideologia contida nos dois casos, sem mostrar abertamente a opinião de Veja: "O MST fez as contas e percebeu que o turismo engajado pode render um dinheirinho razoável" e "Cuba sempre encontrou jovens dispostos a passar uma temporada de férias cortando cana de graça em troca da oportunidade de viver na pele a última grande experiência socialista no mundo". "Dinheirinho" e "última grande experiência? são indícios da ironia da revista.

4. Gustavo Franco fala em seu artigo "O bem e o mal" sobre o "fim trágico da utopia socialista", que trouxe mudanças no vocabulário esquerdista. "Burguês" teria caído em desuso e "neoliberal" virado um novo insulto, usado genericamente para se referir ao capitalismo, como se fosse um sinônimo.

O deus mercado

Veja a todo momento se remete ao livre mercado como solução para os problemas sociais do Brasil e do mundo. Exemplos:

1. Na "Carta ao Leitor", Veja escreve: "No passado, a maior parte dos investimentos na área [de energia] partia do Estado e se materializava na forma de gigantescas hidrelétricas. Agora, o dinheiro sai em parte do bolso da iniciativa privada e é utilizado para erguer principalmente pequenas e médias usinas termelétricas. São avanços que, se não afastam totalmente o fantasma da carência energética, mostram que a crise tem uma saída viável." Isto é retomado na reportagem "É cedo para festejar", sobre o racionamento de energia.

2. Paulo Roberto de Almeida (nas páginas amarelas) fala: "(…) a condição para que o Brasil se desenvolva, para que a população tenha um progresso social, uma melhoria no padrão de vida, um aumento na renda, é a inserção bem-sucedida do país no comércio internacional".

3. A revista critica a proibição de posse e venda de fitas e CDs no Afeganistão pelo Talibã: "Não é de espantar que, diante da proibição, as músicas de Madonna, Whitney Houston e Britney Spears sejam as mais requisitadas no próspero mercado negro de CDs em Teerã [capital iraniana]". Em vez de criticar a proibição da cultura afegã (como fez a Folha na entrevista "Músico prevê morte da arte afegã", em 21/10), Veja considera que o maior problema neste caso é o país proibir a entrada de produtos americanos, como a música pop.

4. Já na matéria sobre o programa Fome Zero, do Instituto Cidadania, a revista diz: "[o programa econômico] Erroneamente continua a defender a intervenção do Estado na economia (…) e maior proteção trabalhista".

Assunto recorrente

A mídia brasileira, a um ano das eleições presidenciais de 2002, já vive em clima de expectativa. A maior prova disso (além da recorrência do assunto e da publicação de pesquisas de opinião das quais pouco se pode tirar para uma análise consistente) é que jornais e revistas já consideram Luís Inácio Lula da Silva "candidato à Presidência da República". Veja, por exemplo, se refere a Lula assim por duas vezes nas páginas amarelas.

Lula sequer é pré-candidato pelo PT. Apenas Eduardo Suplicy (SP) e Edmílson Rodrigues (PA) se inscreveram nas prévias que o partido pretende fazer. O PT, como informou o Jornal da Record em 22/10, deu duas semanas para Lula decidir se participa ou não das prévias.

Por três vezes a revista insiste em desmoralizar a ideologia de Lula. Assunto recorrente que mostra a preocupação da revista em evidenciar possíveis falhas na sua (eventual) candidatura. Primeiro na entrevista com Paulo Roberto de Almeida (um sociólogo que só fala sobre o livre mercado e o comércio internacional), depois na seção "Sobe-Desce" e finalmente na matéria "A conta está errada".

Certezas, co com Lula

Para a revista, Lula "superfatura o número de miseráveis". O projeto Fome Zero do Instituto Cidadania estabelece como 44 milhões o número de miseráveis no Brasil. A revista afirma que "São vários os estudos dimensionando a população de miseráveis no Brasil. Os especialistas não chegam a um acordo em termos de um dado específico, pois há controvérsia sobre a metodologia a ser aplicada". Ora, a revista parte do pressuposto que há um método ideal que dirá o número absoluto de pobres. Mas a existência de métodos independentes que chegaram a resultados diferentes não os tornam necessariamente excludentes.

A revista diz que "a maior parte das opiniões se concentra nos números mais baixos", quando na verdade são 3 estatísticas (mais baixas) contra 2 (mais altas), portanto não pode haver consenso em que as mais baixas são mais verdadeiros. A conclusão da revista (colocada já de cara na reportagem) é mentirosa. Lula não "superfatura o número de miseráveis". Primeiro porque não foi Lula quem fez o projeto, foi a ONG Instituto Cidadania (da qual ele faz parte) e, segundo, porque não há consenso sobre este tal número de miseráveis, não se podendo afirmar qual é mais verdadeiro ou mais preciso que outro.

A ironia novamente é usada para esconder a visão de Veja, que considera a sua opinião uma verdade absoluta, uma ?obviedade incontestável? que o leitor deve necessariamente compartilhar com a revista. "Lula (…) propõe que o Brasil só exporte alimentos depois que os pobres estiverem sem fome", "como se fossem coisas excludentes". Este "como se" tem por trás a visão implícita de Veja, de que o país não pode ter autonomia, independência ou soberania para se preocupar primeiro com quem realmente necessita e não engordar os bolsos de grandes agricultores que exportam seus produtos.

A revista diz procurar apenas contar fatos, como encontros entre políticos, números e hipóteses. Não há certezas, como em relação a Lula, que sequer é pré-candidato, quando o assunto é o PSDB e a escolha do candidato governista. Mas dois artifícios da revista ajudam implicitamente o partido tucano:

Mais engodo

1. Veja escreve: "Na semana passada, [Serra] foi ao Rio de Janeiro para acompanhar de perto a realização de testes numa quantidade de pó branco encontrada no Aeroporto do Galeão. Ao pegar o avião rumo ao Rio, Serra já sabia que a substância não era anthrax. Isso não importava. O importante era estar lá para mostrar-se ágil na condução do problema." A revista não critica a posição do ministro José Serra; se o faz, critica com ironia de maneira pouco perceptível.

2. A revista não comenta a manifestação que contou com 200 participantes no Rio Grande do Sul na chegada de Fernando Henrique Cardoso ao aeroporto no meio da semana, contra a política econômica do governo tucano. Houve grande repressão da polícia, que isolou o local, deixando muitos feridos. Já é tradição de Veja esquecer dos movimentos sociais, como a marcha pela educação e as passeatas pela paz pelo mundo inteiro.

Como na edição de 17/10/01, Veja não informa aos leitores sobre mortes, uma espécie de autocensura que decorre principalmente da mídia americana. Este tipo de cobertura vem desde a seleção de imagens que evitavam mostrar corpos mutilados, ou pessoas se suicidando, no WTC em 11 de setembro, até o "pedido" que George W. Bush fez às redes de televisão e à mídia impressa para evitar colocar no ar o discurso de bin Laden por temor de "mensagens cifradas para outros terroristas". Um engodo, já que qualquer pessoa pode acessar na internet o discurso do saudita, no site da al-Jazira, e os EUA, de fato, simplesmente perceberam estar perdendo a guerra da propaganda para imagens impactantes da suposta caverna onde bin Laden estaria se escondendo.

Guerra de informações

Em sua escolha para compor o "Especial" desta semana sobre a guerra no Afeganistão, Veja procura se esquivar do lado humano (refugiados, feridos e mortos). Os temas são conjunturais e periféricos: não fazem parte da cobertura fatos que lembrem a real situação dos afegãos. Antraz, Correios, proibições do fundamentalismo, a segurança em cartões postais mundiais e o processo de fanatização de jovens e crianças compõem as reportagens.

Na guerra que está realmente acontecendo, Veja considera que "o principal objetivo da campanha militar aliada na Ásia Central" é "a captura ou a eliminação dos mandantes das atrocidades de 11 de setembro nos EUA". Portanto, a guerra não deveria ser propagandeada como "contra o terror", já que as investidas militares não visam destruir as bases do terrorismo. Pretendem apenas a captura (ou morte) de bin Laden, um paliativo que serve para acalmar o povo e a opinião pública dos EUA.

Em nenhum momento a revista cita possíveis mortes de civis afegãos, apenas escreve que "Os Estados Unidos só precisaram de duas semanas para amassar a infra-estrutura do regime [talibã]". A milícia afegã afirma que os ataques mataram mais de 1 mil civis (Folha de S. Paulo, 23/10/01), informação que não pode ser confirmada por fonte independente, mas deve ser considerada, já que existe uma outra guerra paralela sendo travada, uma guerra de informações suspeitas, que servem de propaganda para os dois lados.

Omissões

Já na matéria "O eterno sobrevivente", Veja diz que "o cenário no fim de semana era desolador, mas a experiência indica que a agitação atual, no final, vai passar", referindo-se à ocupação e à ofensiva israelense no território da Cisjordânia. Segundo o Estado de S. Paulo (23/10/01), "em cinco dias de incursões do Exército em seis cidades, morreram 26 palestinos, dezenas ficaram feridos e um número indeterminado foi preso".

Veja reforça que "A agressividade de Sharon [premiê israelense] aumentou acidamente o nível de tensão, mas o fato é que ele não estava sozinho nas pressões sobre Arafat. O cônsul americano em Jerusalém e representantes de países europeus também pediram medidas enérgicas contra os criminosos (…)". O fato de a revista não falar abertamente do número de mortos pode decorrer da escolha editorial de Veja ou, então, pela falta de tempo. Antigamente a revista chegava às bancas aos domingos, enquanto hoje em dia fica disponível para a compra já no sábado, tendo de estar pronta na sexta-feira… E a edição assume como data a quarta-feira da semana seguinte!

Justificar uma ofensiva israelense por causa da "humilhação pública" que Sharon teria sofrido e sequer comentar as recomendações ocidentais para uma postura "moderada" por parte de Israel, depois do assassinato do ministro Zeevi, e dos pedidos para a retirada de tropas israelenses na Cisjordânia, é de uma parcialidade tremenda de Veja.

Outro fato a ser lembrado é que enquanto a revista fala que a nova intifada é um "movimento que soma resistência popular e atentados terroristas", não lembrando o leitor dos verdadeiros motivos (resistência a quê? É preciso explicitar) desta revolta, também esquece de mencionar que já morreram pelo menos 655 palestinos e 177 israelenses desde setembro de 2000, omitindo as faces humana e ideológica do movimento.

(*) Email: jsm_b_r@yahoo.com.br

    
    
                     

Mande-nos seu comentário