Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Trato justo? Só com conversa clara

GREVE NAS UNIVERSIDADES

Deonísio da Silva (*)

A Folha de S. Paulo vinha sendo acusada pela Associação
Nacional de Docentes (ANDES) de ignorar a greve dos professores
das universidades federais. Alguns líderes do movimento chegaram
a dizer que o jornal se transformara num porta-voz do governo.

Como respondeu o matutino paulista? Não foi desta vez que
o jornal fez a reportagem clássica, mandando repórteres
aos campi das universidades em greve, onde poderiam atestar
que a luta dos docentes ultrapassa reivindicações
salariais e quer a correção de problemas como laboratórios
abandonados, professores comprando estantes, mesas, cadeiras e,
principalmente, livros com recursos próprios, para emprestar
aos alunos e eles fazerem fotocópias (ilegais, aliás!),
porque os acervos bibliográficos jazem como cemitérios
onde não há entra um morto novo há anos.

"Nós que aqui estamos por vós esperamos",
um dístico que encima várias entradas de cemitérios
e dá título a recente filme brasileiro, sintetiza
o descaso do MEC para com as bibliotecas das universidades. Os livros
velhos esperam, mas os novos não chegam. Temos educação
de qualidade quando a biblioteca é uma ilha de excelência
cercada de docentes qualificados e alunos dispostos a aprender.
Este é o bê-á-bá de qualquer escola que
se preze.

Mas a Folha, se não foi aos campi, foi à
fonte pagadora, o próprio MEC, por meio de Marta Salomon,
secretária de redação da sucursal de Brasília,
e mostrou as coisas como as coisas são, isto é, qual
é o salário dos professores. O artigo abria com uma
clareza dolorosa para o ministro: "Mais da metade dos quase
70 mil professores das universidades federais ganha menos de R$
3.000. Dados do Ministério da Educação sobre
o perfil salarial nas universidades mostram que 16,8% dos professores
em atividade (que não estão aposentados) ganham menos
de R$1.000".

Em reunião com o presidente Fernando Henrique Cardoso, o
ministro da Educação dissera que a maioria dos professores
universitários recebia entre R$ 4.000 e R$ 5.000. Não
é o caso de incluir o retrato do ministro junto ao personagem
Pinóquio, do romance homônimo de Carlos Collodi, pseudônimo
de Carlo Lorenzini (1826-1890), porque é preciso reconhecer
que, por seu passado, o ministro pode ter-se enganado, mas não
mentido. Cada vez que Pinóquio mente, cresce-lhe o nariz.
Paulo Renato Souza não mentiu ao presidente, mas errou o
diagnóstico. A falha é grave porque seus relatos vinham
sendo o pilar das recusas governamentais em rever a situação.
Tanto é verdade que no caso dos servidores (funcionários
que não exercem docência), o ministro teve a humildade
de reconhecer que trabalhava sobre dados equivocados. E a greve
deles acabou.

Não é foi a primeira vez que os assessores conduziram
o ministro por caminhos tortuosos. Eles o levaram de roldão,
e ele levou o presidente a embarcar na mesma canoa furada.

Boletim de ocorrência

O corte dos salários em plena fase de negociações
foi outro equívoco. Os docentes continuaram trabalhando por
boa vontade. O ministro, que é professor, sabe que, além
das aulas, os professores fazem pesquisa e extensão. E muitas
dessas atividades não foram suspensas, mesmo porque algumas
delas, se fossem suspensas, teriam um triste fim.

A matéria de Marta Salomon levou o ministro Paulo Renato
Souza a dar explicações em extensa carta que enviou
à redação. A emenda foi pior do que o soneto.
A Folha manteve as informações publicadas.
Ia fazer o quê? A fonte tinha sido o próprio MEC.

A qualidade das informações obtidas mudou o rumo
das conversações. É verdade que há salários
superiores a R$ 30.000 entre os docentes. Dois professores (aposentados)
num quadro de 69.864 docentes recebem esta quantia, que é
vergonhosa para eles e para seus colegas, e deveria ensejar um B.O.(boletim
de ocorrência). A desculpa de terem chegado a esses salários
por meio de chicanas judiciais não se sustenta. E a ética,
onde fica? As universidades precisam explicar também o motivo
de 504 docentes receberem salários superiores a R$ 10.000,
quando 69.360 ganham menos do que eles, muito menos, alguns dos
quais ? exatos 20.499 docentes ? ganham menos de R$ 2.000.

Nada como a conversa clara para se chegar ao trato justo. A matéria
produziu um bom recomeço nas negociações. E
a imprensa fez a sua parte: informou.

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São
Carlos, doutor em Letras pela USP; escreve regularmente
nas revistas Época e Caras, e em <www.eptv.com.br>.
Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros
do Campo
e De Onde Vêm as Palavras

    
                     
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