VISÕES DE MUNDO
Cláudio Weber Abramo (*)
Algo que sempre me impressiona quando viajo ao Velho Mundo é
a presença, invariável, de manifestações
da existência de uma consciência cultural. É
verdade que, quanto mais rico o país, mais diluída
resulta essa consciência. Na Europa, em geral não mais
se usam trajes tradicionais ? com exceções para gregos,
turcos, ex-iugoslavos (é mais fácil referir-se a estes
dessa forma, pois do contrário fica-se obrigado a mencionar
montenegrinos e macedônios e sérvios e croatas e kosovares
e albaneses e mais sabe-se lá quantos outros) e outros, os
quais, longe dos centros principais, muitas vezes ainda se vestem
como há cem ou duzentos anos. Música, literatura,
artes plásticas, tudo parece mais enraizado no Velho Mundo.
Quando se passa aos países mais pobres, na África
e na Ásia, o contraste se torna ainda mais agudo. As roupagens
africanas, por exemplo, são uma festa para os olhos. As pessoas
combinam os padrões e cores mais improváveis, enrolam-se
em mantas, vestem turbantes, passam faixas coloridas em torno das
ancas. O resultado, que teoricamente deveria lembrar mais uma porta
de bazar, é de uma elegância notável, ainda
mais contra aquela pele negríssima, que desapareceu destas
bandas.
Não se tenha dúvidas de que a cabeça daquelas
pessoas também funciona de forma diferente. Os conceitos
não são os mesmos, as impressões que o mundo
transmite são filtradas de outra forma. Por exemplo, em muitas
partes da África, como também na Ásia central,
o tecido social não se estrutura em torno do Estado; muito
mais importantes são as pequenas comunidades, comandadas
por chefes e conselhos de anciãos. Conceitos como eleições
livres, liberdade de imprensa, independência do Judiciário
e mais toda a parafernália da democracia liberal ocidental,
superpõem-se a um arcabouço cultural totalmente diverso.
O resultado não é uma mescla, mas um falso equilíbrio,
cuja fragilidade se reflete, com monótona regularidade, na
instabilidade dos regimes que se sucedem. Hutus contra tutsis, zulus
contra hutus, pashtuns contra uzbeques contra tadjiques contra hindis…
Anos atrás, a África tinha vários regimes
soi-disant socialistas. Só podia ser brincadeira.
Aquilo não podia dar certo. Do que não se deve deduzir,
aliás, que capitalismo possa dar certo. Nada do que se inventou
no Ocidente desenvolvido em termos de organização
política pode dar certo. O que talvez explique a eclosão
dos movimentos fundamentalistas muçulmanos: como nada dá
certo, que tal tentar o Corão?
Tudo errado
Ao assistir pela televisão às imagens do povo afegão,
aquelas pessoas no último degrau do desespero, sem comida,
sem nada ou quase nada, olhando para o céu de onde caem bombas
inteligentes; ao ver aquelas roupas incríveis, uma mescla
de lãs de vários animais diferentes, é inevitável
pensar: o que estará se passando pela cabeça daquela
mulher, cujo vulto nem se entrevê por trás de tantos
panos, do velho com o rosto tão marcado quanto as montanhas
no background, do miliciano talebã sem dentes, lança-granadas
à mão, da sua contraparte da Aliança do Norte,
um sujeito em tudo igual a ele, exceto pelo chefe a quem obedece?
Se fôssemos capazes de filmar o que se está passando
pela cabeça dos afegãos, dos quenianos, dos tanzanianos,
dos tadjiques, dos uiguros, certamente não entenderíamos
nada, como eles decerto não entenderiam patavina daquilo
que atravessa a mente de um parisiense, berlinense ou pequeno-burguês
paulistano.
Filmar o que se passa pela cabeça do estrangeiro, do diferente,
é uma das funções da imprensa, ou deveria ser.
Mas é uma função que ela não consegue
cumprir. Mal conseguimos entender como é possível
um menino de 14 anos ser capaz de trucidar seus desafetos na porta
da escola. Se é assim aqui do lado, como é que entenderemos
os motivos existenciais, socioeconômicos, culturais, psicológicos,
que induzem pessoas a se imolar num ataque suicida, levando milhares
de outras junto? Se não entendemos isso ? e os americanos
e ingleses certamente entendem ainda menos ?, como entender ações
e reações, movimentos e tendências?
Durante a guerra do Vietnã, os americanos não compreendiam
como era possível aos vietnamitas resistirem. Lançaram-se
milhares, talvez milhões, de toneladas de bombas sobre um
território minúsculo, queimaram-se florestas, destruíram-se
incontáveis campos de cultivo de arroz. Os vietcongues e
norte-vietnamitas, nada de ceder.
Quantas pessoas morreram naquela guerra? Cinqüenta e oito
mil, dirão os apressados. Nem de longe. Esses foram os soldados
americanos. Vietnamitas, foram dois milhões. Seus nomes não
estão escritos em nenhum monumento. No entanto, morreram
na mesma guerra, do mesmo jeito. (É como na Segunda Guerra
Mundial. A União Soviética teve 20 milhões
de mortos nessa guerra. E a turma fica pensando que tudo se passou
nas duas horas do Resgaste do soldado Ryan…)
A campanha contra o talebã não é a guerra
do Vietnã, e o comportamento de parte da imprensa americana
já dá mostras disso. Apesar de a CNN tender a funcionar
como porta-voz oficial, setores da imprensa já se mostram
bastante céticos a respeito da sensatez da operação.
Na própria CNN, o correspondente da Newsweek em Islamabad,
Ron Moreau, veterano de Saigon, desancava o governo americano, os
militares e sobretudo a lógica dos ataques aos afegãos.
A ponto de a locutora que o entrevistava perguntar: "Mas existe
alguma coisa que Washington esteja fazendo certo?". Resposta:
"Não".
(*) Secretário-geral da Transparência Brasil <http://www.transparencia.org.br>.
E-mail: <cwabramo@uol.com.br>