TELEJORNALISMO
Paulo José Cunha (*)
Desde a semana passada venho tentando mudar de assunto, mas o pavor daquelas torres em chamas continua me perseguindo, e não só a mim, mas a centenas de analistas, comentaristas, poetas e escritores pelo mundo afora. No entanto, é preciso fugir à ditadura do tema único, na feliz expressão do historiador Ronaldo Costa Couto. É preciso sair da frente da tevê e ir à cozinha, ver o feijãatilde;o antes que queime. É preciso varrer o quintal, molhar as plantas, pagar a conta da luz. Mas não dá para saltar para um novo tema assim, de supetão. Decidi, então, usar um truque da própria televisão: o plano de corte (também conhecido como plano intermediário ou de ligação), empregado quando é preciso subtrair um pedaço da fala de um entrevistado, irrelevante à edição, e se quer evitar que a emenda apareça produzindo um "pulo" na imagem. Por isso é que de vez em quando a gente vê nas entrevistas um detalhe da mão, o rosto do repórter, um broche de lapela do entrevistado, coisas assim. São planos de corte.
Vou usar como plano de corte para fazer a transição ao tema que pretendo enfrentar na semana que vem algumas minicrônicas de Eduardo Galeano ("Mulheres", L&PM, 2000, 180 págs). Que o autor não me venha cobrar direitos autorais pela citação, pois é uma homenagem a ele. Reconheço sem um pingo de vergonha que o recurso à citação encobre um tanto de preguiça e falta de vontade para comentar o que quer que seja. Fica pra semana que vem. Hoje passo a palavra a Eduardo Galeano:
A cultura do terror/1
Sobre uma menina exemplar:
Uma menina brinca com duas bonecas e briga para que fiquem quietas. Ela também parece uma boneca porque é linda e boazinha e porque não incomoda ninguém. (Do livro Adelante, de J.H. Figueira, que foi livro escolar no Uruguai até poucos anos atrás.)
A cultura do terror/2
Ramona Caraballo foi dada de presente assim que aprendeu a caminhar. Lá por volta de 1950, sendo ainda menina, ela estava como escravazinha numa casa de Montevidéu. Fazia de tudo, a troco de nada.
Um dia, a avó chegou para visitá-la. Ramona não a conhecia, ou não se lembrava dela. A avó chegou vinda do interior, do campo, muito apressada porque tinha que regressar em seguida. Entrou, deu uma tremenda surra na neta, e foi embora.
Ramona ficou chorando e sangrando.
A avó tinha dito, enquanto erguia o rebenque:
Você não está apanhando por causa do que fez. Está apanhando por causa do que vai fazer.
A cultura do terror/3
Pedro Algorta, advogado, mostrou-me o gordo expediente do assassinato de duas mulheres. O crime duplo tinha sido a faca, no final de 1982, num subúrbio de Montevidéu.
A acusada, Alma Di Agosto, tinha confessado. Estava presa fazia mais de um ano; e parecia condenada a apodrecer no cárcere o resto da vida.
Segundo o costume, os policiais tinham violado e torturado a mulher. Depois de um mês de contínuas surras, tinham arrancado de Alma várias confissões. As confissões não eram muito parecidas entre si, como se ela tivesse cometido o mesmo assassinato de maneiras muito diferentes. Em cada confissão havia personagens diferentes, pitorescos fantasmas sem nome ou domicílio, porque a máquina de dar choque converte qualquer um em fecundo romancista; e em todos os casos a autora demonstrava ter a agilidade de uma atleta olímpica, os músculos de uma forçuda de parque de diversões e a destreza de uma matadora profissional. Mas o que mais surpreendia era a riqueza de detalhes: em cada confissão, a acusada descrevia com precisão milimétrica roupas, gestos, cenários, situações, objetos…
Alma Di Agosto era cega.
Seus vizinhos, que a conheciam e gostavam dela, estavam convencidos de que ela era culpada:
Por quê?- perguntou o advogado.
Porque os jornais dizem.
Mas os jornais mentem ? disse o advogado.
Mas o rádio também diz ? explicaram os vizinhos. ? E a televisão!
A televisão
Rosa Maria Mateo, uma das figuras mais populares da televisão espanhola, me contou esta história.
Uma mulher tinha escrito uma carta para ela, de algum lugarzinho perdido, pedindo que por favor contasse a verdade:
Quando eu olho para a senhora a senhora está olhando para mim?
Rosa Maria me contou, e disse que não sabia o que responder.
(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>