GUERRA & TERROR
"Uma consciência torturada", copyright O Globo,
24/10/01
"Para o leitor exausto de ler que a verdade é a primeira
vítima a tombar nas guerras, eis a versão nacional,
curta e grossa: ?Em tempo de guerra, mentira é como terra.?
Philip Knightley, belamente entrevistado por Maria Luiza Abbot
na semana passada (?Valor?, 18/10), conta o caso espantoso da filha
do embaixador do Kuwait nos Estados Unidos que se disfarçou
de refugiada de guerra para empulhar um bando de senadores americanos
sobre atrocidades cometidas por soldados iraquianos. Na Segunda
Guerra Mundial, tivemos (pelo menos num filme, que me garantiram
ser história verdadeira) o homem que nunca existiu. Foi um
cadáver vestido de oficial inglês que deu às
costas da Espanha com documentos sobre falsos planos de Churchill,
que os franquistas logo fizeram chegar às mãos da
Gestapo – que acreditou.
Mais recentemente, na Guerra do Golfo, o Pentágono orquestrou
com raro brilho a cobertura da imprensa, que acreditou piamente
nas bombas inteligentes que não matavam civis, e passou anos
até descobrir um punhado de histórias não edificantes
sobre o comportamento das forças americanas.
Em suma, guerras são sujas, e assim como não existem
ateus nas trincheiras, faltam santos nos estados-maiores. De qualquer
país, em qualquer época. É necessário
levar isso em conta – de preferência sem torcer o nariz, porque
não adianta coisa alguma – quando os meios de comunicação
decidem se comportar na cobertura de guerras.
Jogar o conflito no colo do espectador ou leitor, como se fez no
Vietnam? Ser um cachorrinho do Pentágono, como no Iraque
(ou no Panamá ou em Granada)? Note-se que a escolha só
existe nas democracias.
É por isso que os EUA assumem o papel de presumível
vilão desta história. É nas democracias, afinal
de contas, que a censura é vista a olho nu, destoando da
paisagem como um tiranossauro no Central Park. Como falar de censura
em Bagdá, por exemplo, onde só existe uma verdade?
Não se inveje o leque de escolhas à frente da mídia
americana. Deve-se censurar as entrevistas de Bin Laden porque podem
ocultar instruções em código? Ou porque defendem
as posições do terrorista, e não interessa
que sejam divulgadas?
Digamos que se descarte, por artificial demais, a primeira hipótese.
Logo surge a segunda: é jornalismo imparcial divulgar uma
retórica que é apenas propaganda?
Como um exemplo da sutileza da situação, não
faltaria lógica à decisão de quem se recusasse
a dar publicidade aos discursos do líder, mas considerasse
necessário – como parte do dever de informar – não
perder uma só das entrevistas de seu embaixador em Islamabad.
Situação complicada. Inclusive porque, repetindo
o que já foi dito, chefes militares censuram ou tentam censurar
informa&ccediccedil;ões de dois tipos: aquelas que dariam ajuda
estratégica, tática e moral às tropas inimigas,
e aquelas que deixariam expostos erros, abusos e toda sorte de pecados
cometidos pelo lado de cá. Aceitar a censura no primeiro
caso é praticamente inevitável. Ceder na segunda hipótese
é rasgar a carteirinha de jornalista.
E o pior é que, no chamado calor da hora, é freqüentemente
impossível distinguir águia de urubu.
Que o deus das guerras se apiade da segunda vítima de todas
as guerras modernas: a torturada consciência do jornalista."
Cora Rónai
"?Ave, midia, morituri te salutant?", copyright O
Globo, 29/10/01
"Passados quase 50 dias do ataque às torres gêmeas
de Nova York, há poucas coisas mais tristes no universo dos
atentados do que ouvir, nos gigantescos dossiês que aos poucos
se vão formando na internet, os recados que as pessoas que
estavam nos aviões ou no WTC deixaram nas secretárias
eletrônicas de maridos, mulheres, pais, amigos. Com a cobertura
asséptica que a mídia optou por dar aos ataques, eles
continuam sendo os raros vislumbres de humanidade que temos da catástrofe,
mais ou menos como os patéticos cartazinhos espalhados por
Nova York com os retratos dos desaparecidos; mas os cartazinhos,
já desbotados e lavados por chuva e vento, são entrevistos
apenas en passant , como pano de fundo de matérias mais ou
menos genéricas.
Numa ânsia hipócrita de não chocar o público
(?somos decentes, não estamos faturando em cima da miséria
alheia?), as redes de televisão e mesmo os jornais furtaram-se
de mostrar os resultados mais grotescos e pungentes do massacre,
o sangue, os corpos despedaçados. Se a mídia popular
sempre exagerou na vulgaridade ao exibir detalhes mórbidos
dos piores crimes e acidentes, desta vez a chamada grande imprensa
exagerou na… elegância.
Foi uma decisão questionável, que deixou ao espectador
ou leitor a difícil tarefa de chegar ao varejo através
do atacado: tivemos que extrair da visão espetacular das
torres moribundas as milhares de tragédias individuais que
aconteciam naquele exato instante. Ficamos chocados com o horror
e perplexos com as dimensões da grande tragédia, mas
só nos sentimos genuinamente emocionados e tocados como seres
humanos quando vimos ou ouvimos as pequenas tragédias, quando
conseguimos identificar, em meio aos escombros das grandes tragédias,
os nossos semelhantes, os nossos irmãos.
Esta foi, também, uma decisão que pode custar muito
aos Estados Unidos em termos de apoio emotivo, digamos assim.
Ao longo das últimas semanas, desde que o Talibã
convidou a imprensa estrangeira a entrar no Afeganistão,
começamos a ver as primeiras imagens geradas diretamente
do país. Não há nada remotamente parecido com
o ataque ao World Trade Center em Cabul. O que as câmeras
vêm encontrando, até aqui, são as ruínas
de casas e edifícios paupérrimos, hospitais inacreditavelmente
sujos, crianças macilentas, vítimas perplexas. Sem
escolha, as emissoras estão começando a se ver obrigadas
a nos mostrar cenas que cortam corações, que já
nos ferem a alma de forma mais dolorosa do que qualquer Boeing cinematográfico
atingindo os edifícios mais altos do mundo.
O pior é que a batalha mal começou, e faltam algumas
semanas para o inverno.
E o que é que a CNN ou a NBC vão fazer quando o estrago
chegar ao auge? Tirar do arquivo as imagens verdadeiramente chocantes,
verdadeiramente dolorosas, do ataque às torres gêmeas?
Esqueçam. Ou muito me engano, ou estamos a ponto de ver
mais um gol contra dos EUA nessa guerra suja em que só há
bandidos e perdedores."
FSP
/ Painel do Leitor
"Lamentável", copyright Folha de S. Paulo
Dia 24/10 – "existem
6 bilhões ou mais de pontos-de-vista diferentes sobre os
atentados nos EUA e suas consequências, e cada um deles define
seu interlocutor. A coluna do ombudsman anda restrita a comentários
técnicos, sobre se as notícias estão de acordo
com o ?manual?, como se fosse o Alcorão. Ele compara a Folha
apenas aos outros jornais brasileiros, como se o mundo fosse só
o Brasil. A Folha retruca o pedido de censura feito pelos EUA, mas
nada comenta do policiamento ideológico em que está
mergulhada. Se fizer uma análise comparativa com mídias
internacionais, provavelmente se colocará ao lado da Al Jazeera.
A postura antiamericana é descaradamente visível,
os editores não conseguem (ou não querem) ocultar
seus ressentimentos de revolucionários fracassados, trazidos
dos tempos de estudante. A falta de comentários do ombudsman
a respeito da disseminação de desinformação
é denunciadora. Nesta nova ordem mundial, a mídia
tem papel principal. É nestas páginas que ocorre a
verdadeira guerra e cada veículo tem que arcar com sua parte
da responsabilidade. A mídia não está acima
do bem e do mal, pois é feita por seres humanos. Portanto,
ao não esclarecer a realidade, publicar factóides
em manchetes garrafais, deixar as entranhas acadêmicas influenciarem
a opinião pública, a Folha se coloca como colaboradora
do terrorismo. É lamentável.?
Jorge Feffer (São Paulo, SP)
Resposta do Ombudsman, Bernardo Ajzenberg – Respeito a opinião
do leitor, mas esclareço que: 1) nenhum dos seis textos que
publiquei até o momento sobre os atentados do dia 11 menciona
o ?Manual da Redação?; 2) eles comentam, sim, a imprensa
internacional e a guerra de propaganda (desinformação).
Basta lê-los novamente."