LEITURAS DE VEJA
Jonas Medeiros
Como já se tornou praxe, a Veja n.? 1.724, de 31/10/01), não menciona alguns fatos e aumenta outros, como veremos a seguir. O otimismo com o presente e o futuro econômico do Brasil, a concepção da história e a de que um aumento no número de milionários num país traz necessariamente melhores condições de vida para a população são reveladores da visão da revista sobre os problemas atuais.
A história, segundo Veja
A frase "(…) as engrenagens da História estão se movendo diante dos olhos de uma geração", sobre fatos que estariam mudando o mundo depois do 11 de setembro, ilustram a noção de Veja da história. Não se trata de seres humanos agindo e, sim, de homens sofrendo a história. O homem se torna um objeto, incapacitado de ir contra a maré: o que é imposto por "forças invisíveis" não pode ser negado. Os tais fatos seriam:
1. "Uma cultura e uma fé que viviam relegadas à periferia do mundo dito civilizado despertam agora um interesse voraz em pessoas que até outro dia dispunham de pouquíssimas referências sobre o universo islâmico." Se esta tomada de consciência a que Veja se refere depender dela mesma, os leitores estão perdidos. A revista confunde islamismo com fundamentalismo islâmico (assumindo o discurso do historiador inglês conservador Paul Johnson) e responsabiliza a religião muçulmana pela pobreza nos países de maioria islâmica ("Os pobres de Alá", 17/10/01).
2. "Na semana passada, o presidente americano George Bush visitou a China e obteve do rival asiático um inédito apoio irrestrito à luta contra o terrorismo." A própria Veja escreve, mais adiante, na matéria "A China e seus talibãs": "(…) como precisa da ajuda chinesa para combater os fundamentalismos islâmicos, Washington não pode mais reclamar da repressão chinesa aos uigures [minoria islâmica na China]. A lógica vale também para a Rússia e os separatistas muçulmanos da Chechênia. Todos podem ser tratados sem piedade, como expressões regionais do fanatismo talibã."
Primeiro a revista ignora, na matéria anterior, que o apoio chinês só se deve a esta "troca". A China apóia os EUA no Afeganistão e os EUA fecham os olhos para a violação dos direitos humanos em Xinjiang, onde os uigures vivem. E, segundo, em vez de reprovar firmemente a diplomacia dos EUA e a lógica tribal a que tanto a revista se refere ("o inimigo do meu inimigo é meu amigo"), que nunca é aplicada aos EUA por Veja, trata o assunto de maneira irônica.
3. "Pela primeira vez, o governo de Israel cedeu às pressões internacionais lideradas pelos americanos e começou a retirar seus tanques da Cisjordânia, que ocupara para vingar o assassinato de um ministro por militantes palestinos." Novamente a revista parece esquecer de seu suposto conjunto, das ligações entre as diferentes matérias. Vide a reportagem "O nome dele é problema", sobre Ariel Sharon: "(…) Sharon põe os tanques de volta nas áreas sob controle da Autoridade Palestina e, enquanto lhe foi conveniente, ignorou todos os apelos americanos para retirar a tropa." É verdade que os últimos acontecimentos têm mostrado que a tendência é a retirada israelense, efetivada em duas das seis cidades ocupadas. Mas há um complicador: o atentado cometido no dia 28/10 em Hadera, por integrantes da Jihad Islâmica, que deixou cinco israelenses mortos.
4. "A idéia de criar um Estado palestino saiu em poucos dias da classificação de inaceitável para a de inevitável." Quatro fatos não podem deixar de ser lembrados:
a) A própria revista afirma: "O primeiro-ministro [Sharon] age assim porque tem por objetivo torpedear a hipótese de retomada nas negociações de paz nas bases em que existiam antes ? ou seja, qualquer processo que conduza à criação de um Estado palestino minimamente autônomo (…)";
b) O Estado palestino seria criado como "obviedade histórica", ou seja, um consenso, ou como estratégia (parecendo uma imposição imperialista), seguindo o que o premiê inglês, Tony Blair, anunciou: o objetivo seria "criar um ambiente no qual não existam gerações que usem a causa palestina como desculpa para o terrorismo";
c) Tony Blair faz referência ao uso que Osama bin Laden faz da causa palestina. Um engodo, que serve para aglutinar apoio nos países muçulmanos à causa do fundamentalismo islâmico da Al Qaeda, organização terrorista do saudita, baseada no Afeganistão;
d) Os civis mortos na semana seguinte ao assassinato do ministro israelense chegam a mais de 60 palestinos, além de seis israelenses, fato esquecido na edição de 24/10 na matéria "A guerra real ao fanatismo", mas lembrado rapidamente na reportagem sobre Ariel Sharon.
Além de uma visão coisificante do homem no processo histórico, Veja pondera sobre a imparcialidade na história e na mídia: "Os analistas começam agora a se perguntar que tipo de mundo vai emergir do pós-guerra ao terror. Não existem respostas simples. Até porque se está no epicentro do turbilhão transformador. É quase impossível enxergar os eventos com imparcialidade e distanciamento." Primeiro a revista considera "quase impossível" alcançar a neutralidade numa análise no momento atual sobre os fatos que estão acontecendo ? quando, nem a longo prazo, isto é possível, já que o próprio historiador está sujeito a contar uma interpretação dos fatos, não os próprios fatos.
Veja continua: "Mas algumas tendências muito fortes estão emergindo de forma distinta. A mais interessante delas é a constatação de que pode estar ocorrendo a mais justa de todas as guerras, aquela que pela primeira vez vai cuidar da distribuição mais eqüitativa da renda, da saúde, da educação e da democracia." Uma "nova ordem" está em voga, uma ordem em que os países ricos se preocupam com os pobres e com a melhoria de vida destes países de Terceiro Mundo, sendo necessário que se passe por um processo de "modernização".
Esta idéia de "guerra justa" não procede. A guerra em si não tem fins nobres, já que procura deixar a parte adversária da forma mais debilitada possível, tanto no âmbito da infra-estrutura quanto dos seres humanos (mortes de militares e civis), fato que nunca foi revelado por Veja até agora. Listo agora os possíveis erros dos EUA que teriam deixado mortos civis na guerra no Afeganistão (fonte: Folha de S. Paulo, 27/10/01):
** 9/10 ? Escritório da ONU ? quatro vítimas em Cabul.
** 11/10 ? Mortes em Coram ? o Talibã afirma que houve 160 vítimas.
** 16/10 ? Depósitos da Cruz Vermelha ? dois prédios foram destruídos.
** 22/10 ? Hospital de Herat ? não é certo se era um hospital civil (como disse o Talibã), militar (segundo a ONU) ou um asilo (segundo os EUA): 100 pessoas teriam morrido.
** Bairros de Cabul ? área residencial atingida: dezenas de mortos.
** 24/10 ? Vilarejo de Herat ? ONU diz que nove pessoas morreram.
** 26/10 ? Depósitos da Cruz Vermelha ? mais três depósitos destruídos.
No mapa "O alvo é Cabul", a revista mostra as "áreas atingidas pelos bombardeios americanos", nas quais apenas alvos militares e governamentais são evidenciados, esquecendo da Cruz Vermelha e do escritório da ONU. Segundo Veja, "a guerra real ao fanatismo" é o combate à pobreza, mas a revista esquece que a realidade que estamos vivendo atualmente é o ataque dos EUA ao Afeganistão, não uma ajuda humanitária vinda dos países ricos. Nada se pode dizer sobre o futuro, se será tenebroso ou próspero. Contar a história não é fazer previsões, é interpretar o passado para entender o presente.
Otimi$mo
A Veja escreve na coluna Sobe-Desce: "Soletur ? Com uma dívida de 30 milhões de reais, a empresa, uma das maiores operadoras de turismo do Brasil, declarou falência na semana passada." A notícia é relegada a uma pequena nota. Por outro lado, mereceram destaque: o lançamento do ERJ 170, novo jato da Embratur (com uma matéria própria: "Ele é um avião", e na Carta ao Leitor: "Boa notícia no ar"); e a "Nova ordem no turismo", reportagem que conclui que o turismo internacional na América Latina deve crescer. Todos os outros cantos do planeta (América do Norte, Europa, Ásia, África e, em menor proporção, a Oceania) estariam com as viagens sendo canceladas e a procura diminuiu muito desde o 11 de setembro.
A visão otimista com o futuro e o presente da América Latina continua na matéria "Bilionários latinos". A revista escreve: "Dez anos atrás só havia oito latino-americanos na relação [publicada pela revista Forbes, listando os homens mais ricos do planeta], e sua fortuna, somada, mal ultrapassava 10 bilhões de dólares. Hoje são 29 e seu patrimônio chega a 68 bilhões de dólares. Esse é um indício das mudanças que ocorreram na região em uma década (…) A América Latina é, hoje, um ambiente democrático (…) "O aumento do número de milionários é um indicador de que a riqueza está crescendo nos países", diz Renato Baummann, diretor do escritório no Brasil da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal)."
Veja esquece de dois complicadores nesta visão sobre a possível relação entre o número de milionários e a riqueza de um país:
1. O tal "ambiente democrático" que a revista cita só se torna verdadeiro se esquecermos que:
** Até o ano passado, o México vivia numa falsa democracia, com eleições que não expressavam a vontade do povo e apenas um partido no poder durante quase um século. Em 2000, foi eleito o atual presidente mexicano, Vicente Fox.
** O Peru viveu nos últimos 10 anos sob o comando de Alberto Fujimori, que foi reeleito duas vezes, acusado de corrupção nas eleições e no governo. Recentemente deposto, foram convocadas novas eleições e um governo de transição coordenou o país até que chegasse ao poder o novo presidente, Alejandro Toledo.
** A Argentina vive um momento delicadíssimo, sua situação financeira é das piores possíveis, sendo considerada por investidores o país mais arriscado para se colocar dinheiro do mundo. Nosso vizinho vive dependente de empréstimos do FMI e corre o risco de perder a soberania sobre sua moeda se dolarizar o peso argentino.
** Na Colômbia, a intervenção militar dos EUA deve ser reforçada após o 11 de setembro. Uma possível ligação entre o IRA (Exército Republicano Irlandês) e as Farc (a guerrilha marxista colombiana) é mais um pretexto para aumentar a influência dos EUA na região da Amazônia.
2. Ao relacionar indivíduos milionários à riqueza de um país, a revista se esquece de algo chamado desigualdade. Homens ricos não necessitam necessariamente de um povo rico. E o bem-estar da população deveria ser o alvo da atenção da mídia e dos governantes, não casos pessoais de bilionários latinos. É muito fácil para Veja falar de uma "revolução silenciosa", na qual "a desigualdade entre ricos e pobres vem, lentamente, sendo reduzida", pois não sofre com a pobreza, a fome ou a marginalidade.
Só para se ter uma idéia de como Veja distorce os fatos, enquanto o número de bilionários latinos cresceu de 10 para 29 em 10 anos, neste mesmo intervalo de tempo (1990-2001) a colocação do Brasil, da Venezuela e do México (países mais citados na reportagem) no ranking do IDH da ONU desceu de 60? para 69?, de 44? para 61? e de 45? para 51?, respectivamente. Ou seja, o crescimento do número de fortunas não influi diretamente na melhora da vida do povo (como vemos nos países do Oriente Médio que têm petróleo em seu território), assim como o crescimento por si só não significa distribuição de renda.
Talvez a revista assuma o ponto de vista de Sérgio Abranches, colunista de Veja para quem "o Brasil tem um dos maiores índices de desigualdade do mundo, [mas] também tem uma das maiores taxas de mobilidade social do mundo", como se a "mobilidade" anulasse o mal da desigualdade.
Morre peça-chave de um futuro governo afegão
Mais uma vez o prazo da revista influi no que vai ser publicado. O assassinato de Abdul Haq, líder da frente de oposição ao Talibã que foi capturado e executado pela milícia afegã, ocorreu no dia 27/10, um sábado. A revista se diz de 31/10. Supostamente deveria incluir o fato em suas páginas, mas não o faz porque seu prazo terminou na sexta, dia 26/10. Cinco dias antes da data oficial de publicação. A notícia tão essencial não pôde ser publicada
O líder antitalibã seria muito importante nas articulações de um futuro governo afegão, pois pertencia à etnia pashtu, maioria entre os afegãos e os integrantes da milícia hoje no poder, ao contrário da Aliança do Norte, principal opositora aos fundamentalistas, composta por minorias.
A figura do chefe e do funcionário
A todo momento, Veja se refere ao leitor diretamente: "Você odeia seu chefe? Como conviver com aqueles que transformam sua vida num inferno." O tratamento informal e direto parte do pressuposto de que todo leitor da revista é empregado de uma multinacional, como os entrevistados (funcionários de empresas como Nikon, Yahoo!, Banespa/Santander e outras que não são tratadas pelo nome).
Pela primeira vez depois do 11 de setembro, a capa de Veja não foi dedicada ao atentado ou a assuntos relacionados a ele ("O império vulnerável", "Guerra ao terror", "O vírus anti-EUA", "Fé cega e mortal", "O profeta do terror" e "Anthrax, o mal invisível" foram as últimas matérias de capa). Esta reportagem foi dedicada especialmente ao leitor, supostamente um gerente de multinacional, de cunho pseudo-psicológico, com dicas de como escapar do chefe perseguidor (simbolizado na capa como o diabo) e casos de pessoas que já passaram por isso, tema que foge completamente aos assuntos da semana.
É triste notar que a dita maior revista semanal do Brasil não é dedicada à cobertura política e à contribuição para a consciência social dos leitores e, sim, a matérias baseadas em casos pessoais, como o dos gerentes demitidos e dos bilionários latinos, uma elite minoritária destacada em reportagens que procuram mostrar apenas um lado da história.