GLOBO vs. SBT
"A mansão dos indigentes", copyright Folha de S. Paulo, 11/11/01
"Há de ter sido Paulo Francis quem escreveu, faz tempo, que a indústria cultural, antes dirigida ?às? pessoas sem nenhuma cultura, passou a ser dirigida ?pelas? pessoas que não têm cultura nenhuma. É isso o que mais transparece após duas semanas do programa ?Casa dos Artistas?. Transparece tanto que não há como deixar de comentá-lo uma vez mais -antes que ele seja devolvido ao lixo de onde saiu.
O programa veio para proporcionar ao público a esbórnia inculta, às vezes simbólica, às vezes física. Simbólica é a esbórnia que se realiza por meio das palavras, naquele dialeto híbrido, formado pelo cruzamento das gírias criminais com os gemidos pré-verbais. As inconfidências machistas, no dormitório masculino, são um bom (porque mau) exemplo disso. Há também as ?insinuações? pornográficas, com olhares arregalados à meia altura, tão sutis quanto um estupro, e há ainda as poses proto-explícitas, prenunciando a dimensão física da coisa. Os ?artistas? ensaiam trocas de carícias no sofá e, em seguida, amontoam-se, em trajes mínimos, dentro dos quartos ou na piscina. Quase nada sobre o corpo. Nada dentro da cabeça.
?Casa dos Artistas? invoca no telespectador o que ele tem de mais baixo. É bruto e brutal, sem arte nem refinamento erótico. Só é o sucesso que é porque somos uma sociedade de miseráveis afetivos. O miserável afetivo é aquele que, ao sofrer um esbarrão no meio da rua e, depois, ao ouvir o apressado pedido de desculpas, responde em pensamento: ?Desculpar de quê? Foi um prazer.? ?Casa de Artistas? é um esbarrão frontal num público de pedintes sexuais. O que, de resto, é óbvio. O dado menos óbvio, e mais embaraçoso, é que os diretores do programa parecem ter, em comum com o público, o mesmo perfil psíquico. Orgulham-se de tal maneira do seu novo campeão de audiência, anunciam-no em jornais com tal estardalhaço, que realmente devem gostar daquilo. Ao menos, não se envergonham. Assim, a televisão vai demonstrando que a cultura de massas, antes fabricada para aqueles que se desenraizaram de sua cultura popular de origem e não têm acesso à cultura erudita, é agora confeccionada pelos incultos, cujo ideal de excelência é a estreiteza. Dirigentes da TV não se cansam de dar sinais de que são a mais crua tradução da mais ignara das platéias. E isso sem drama de consciência.
Será que os donos desse programa seriam capazes de recomendá-lo a seus filhos, sobrinhos ou netos? Será que aconselhariam alguém da própria família a passar seis semanas dentro daquele cenário? É chocante, mas talvez em alguns casos a resposta seja sim. A nossa classe A econômica é a nossa classe D cultural. A classe Z na escala ética. Ela goza encenando o grotesco. Feios, sujos e malvados não são mais os excluídos -são os burgueses incultos que mandam em boa parte da televisão. A mansão dos tais artistas (então aquilo lá é que é artista?) é o retrato involuntário da mentalidade da burguesia iletrada. Sílvio Santos declarou que a casa em que estão confinados os ?artistas? (uma ?mansão?, segundo ele) custou R$ 5 milhões aos cofres essebetistas. É um palacete, sim, um palacete que tem tudo, menos uma biblioteca. Nem para efeito de decoração. Lombadas de livros já não figuram nas mansões da classe A, uma classe culturalmente indigente e economicamente autofágica, exatamente como os prisioneiros da ?mansão? que, sem entender nada do que se passa ao redor, dedicam-se a eliminar o próximo. ?Casa dos Artistas? não é, como alegam, a expressão daquilo que o povão gosta de ver -antes disso, é a exata medida daquilo que a cúpula do SBT foi capaz de conceber. Talvez porque seja esse o gênero de coisa que a diverte, que a excita. Dá até medo. Ou, pior, dá até saudade da liderança da Globo."
"Qual é a parada, bróder??", copyright Veja, 12/11/01
"Mexer nos equipamentos: advertência. Entrar em dupla na parte do banheiro onde não existem câmaras: advertência. Sair no tapa com os companheiros: expulsão. Essas são algumas das regras impostas aos participantes do Casa dos Artistas, exibido pelo SBT desde 28 de outubro. Mas nenhuma norma é sagrada se for para incrementar o ibope da emissora. Na quarta-feira passada, o próprio Silvio Santos rasgou os regulamentos ao permitir que o ator-empresário-modelo-fisiculturista-funkeiro-ex-senhor Cláudia Raia-e-nome-de-macarrão-num-restaurante-de-São-Paulo Alexandre Frota, que abandonara as gravações, retornasse ao programa. Três dias antes, durante uma conversa ao vivo com os participantes do Casa dos Artistas, Silvio havia cutucado Frota. Reclamou dos palavrões que ele costuma usar e revelou a estratégia do moço na competição para os outros concorrentes (ou melhor, para as outras, que eram seu maior alvo). O ator utilizou essas farpinhas como pretexto para anunciar sua saída do jogo. Feito um Jânio Quadros marombeiro, ele calculou que poderia renunciar para retornar depois com vantagens. No seu caso, deu certo. Silvio chegou à conclusão de que Frota ajudava a movimentar a atração, armando intrigas, provocando os colegas e divertindo o público com frases indecifráveis como ?Se liga na pressão que eu vou bater pra ti que o bróder tá só passando cerol?. Na terça-feira, chamou-o para uma conversa no SBT, relatada assim por uma testemunha:
– Pô, Silvio, você me pôs na fogueira.
– Bobagem, Frota. Você é a alma do programa.
– Isso é verdade. O povo está gostando, eu não tinha essa popularidade desde Roque Santeiro, na Globo.
– Então, vamos acertar a sua volta.
– Mas qual é a parada?
A ?parada? acabou sendo a seguinte, bróder: Frota conquistou um extra de 100.000 reais e a promessa de que o SBT examinará a possibilidade de criar uma atração estrelada por ele. É de supor que algum jeitinho vão dar para que ele não seja eliminado tão cedo. Como seu cachê já era de 130 000 reais, no total o grandalhão vai embolsar 230.000 reais – isso se não ganhar a competição, cujo prêmio é de 300.000 reais. ?Com esse dinheiro, o Alexandre vai comprar um apartamento. Ele me mandou procurar?, diz a sua namorada, Daniela Freitas, de 22 anos, que é ajudante de palco do programa Super Técnico, da TV Bandeirantes. O Brasil, como se vê, é mesmo uma terra de oportunidades. Um sujeito como Frota consegue ter várias fontes de renda. Atualmente, ele agencia modelos, posa nu para revista gay e produz shows de funk, com dançarinas que de vez em quando se rebelam contra os modernos métodos de administração do empresário. Numa briga recente com uma dessas Isadora Duncans, ele chegou a pedir que ela devolvesse o silicone implantado à sua custa.
Antes da saída de Alexandre Frota, os outros participantes do Casa dos Artistas tinham cachês entre 10.000 e 30.000 reais. Eles também receberam aumento: agora todos vão ganhar 60.000 reais. Silvio Santos tomou essa decisão porque o Casa dos Artistas é um tremendo sucesso de audiência. Na primeira semana, deu média de 20 pontos. Na semana passada, chegou aos 26. Uma semana antes de sua estréia, a Globo vinha conseguindo 45 pontos de média com a novela O Clone, de segunda a sábado, entre as 21 horas e as 21h30. Já na quarta passada, a novela de Glória Perez caiu para 37 pontos no mesmo horário. Parte da audiência da Globo migrou para o SBT. Aos domingos, o Casa dos Artistas conseguiu um feito ainda mais impressionante: bater, por duas vezes seguidas, a liderança que o Fantástico sustentava havia quase três décadas. Pelo menos por enquanto, não existe risco de o programa precisar sair do ar. A Globo está bancando uma briga na Justiça para provar que o Casa dos Artistas é plágio do show holandês Big Brother, cujos direitos de exibição lhe pertencem. Na semana retrasada, a emissora carioca conseguiu uma liminar contra o SBT, derrubada dias atrás, numa decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Outra dificuldade enfrentada por Silvio Santos também foi afastada. A prefeitura de São Paulo ameaçava embargar as gravações, porque a casa onde elas são feitas fica em área exclusivamente residencial. O SBT impetrou mandado de segurança e conseguiu prazo de sessenta dias para fazer a mudança – tempo mais que suficiente para terminar o programa.
Além dos artistas que ficam diante das câmaras, a produção do programa conta com cerca de 100 profissionais nos bastidores, que se alternam em três turnos. Trinta e três câmaras, espalhadas por todos os cômodos, são monitoradas continuamente. A cada duas horas o material gravado é editado. No fim do dia, com cerca de uma hora de imagens armazenadas, os trinta minutos que irão ao ar são escolhidos. ?Às vezes, acabamos o trabalho apenas dez minutos antes da exibição?, diz o superintendente do SBT Alfonso Aurin. Alguns temas são vetados: por exemplo, todas as perguntas feitas ao roqueiro Supla sobre sua mãe, a prefeita de São Paulo, Marta Suplicy. Também não foram ao ar as reclamações da modelo Bárbara Paz pela falta de um ?baseadinho?. Por outro lado, todos os tipos de exibicionismo são muito bem explorados. Nesse quesito, ninguém ganha da sambista Nana Gouvêa. Até seus companheiros de programa acham que ela exagera. Em sua mala, Nana conta com um estoque de microcalcinhas e camisolas transparentes. Consta que o modelo Taiguara já tentou tirar uma casquinha da sambista, mas não conseguiu nada. E continua intacto o pacote de camisinhas colocado pela produção na despensa. Outra participante polêmica é Núbia Ólive – ex-Núbia de Oliveira. Ela é uma espécie de Alexandre Frota de saias (ou sem saias, na maior parte do tempo). A senhorita também faz intrigas, agita o programa e solta pérolas, como ?Esse negócio de luxúria é horrível. A pessoa fica rica e logo compra sete Cherokees?. Falar bobagem é o único direito que os famosos do Casa dos Artistas exercem ininterruptamente, e com muito gosto.
"Janela indiscreta", copyright IstoÉ, 12/11/01
"Com seu jeito punk e debochado, o platinado roqueiro Supla empunhou o violão e, ajudado pelo coro de seus 11 companheiros de acampamento televisivo, entoou os versos preciosos: ?Mais um dia aqui/sem poder sair/dentro desta prisão/Silvio Santos vem aí/com muito ibope ele vai sorrir.? O refrão, que soava como o tilintar de moedas para o extasiado dono do SBT, dava o tom da guerra de audiência travada no domingo 4. ?Ibope/sobe! sobe! sobe!?, gritavam os participantes ?quase famosos? do polêmico programa Casa dos artistas, que vai ao ar diariamente pelo SBT, às 21h. Enquanto rolava o rock improvisado, a gincana eletrônica atingia picos de 43 pontos na medição do instituto, tornando-se assim a mais nova pedra no sapato da Rede Globo, que, em 28 anos, nunca havia sido atingida tão violentamente na sua liderança dominical noturna com o Fantástico.
Além da vitória na audiência, Silvio Santos também guarda outros motivos para soltar sua célebre risada. O departamento jurídico de sua emissora derrubou a liminar impetrada pela Rede Globo, que impedia o reality show de ir ao ar por dois dias. Façanha repetida na quinta-feira 8, quando a Justiça não acatou novo recurso da emissora carioca. A Globo alega que Casa dos artistas é um plágio do original holandês Big brother, exibido em 33 países, cujos direitos foram adquiridos pelo canal de Roberto Marinho em agosto passado. Estava previsto que a versão brasileira iria ao ar em março de 2002. Indignado, o diretor da Central Globo de Comunicação, Luis Erlanger, considera a investida do SBT um ato de pirataria. ?Pode parecer uma briga por audiência, mas trata-se de algo muito mais grave. É uma questão de saber se a propriedade intelectual vai valer no Brasil. Se não há respeito nesse aspecto, então os valores vão por água abaixo.?
A Globo não está sozinha na guerra. A seu lado no front encontra-se a empresa holandesa Endemol, detentora da marca Big brother. Juntas, criaram a Endemol Globo, que vai vigorar através de um contrato de seis anos. Não bastasse o contra-ataque da dupla gigante da mídia, o SBT vem sendo solapado em outros flancos. Como a residência-estúdio, vizinha da casa de Silvio Santos, no bairro paulistano do Morumbi, zona sul da capital, localiza-se na chamada zona 1, estritamente residencial, a equipe de produção do programa e suas dez estrelas remanescentes correm o risco de ser despejados a qualquer momento. Quem cuida da confusão é a Administração Regional de Campo Limpo, depois da denúncia do empresário Hassib Nastas, 78 anos, que mora em frente ao estúdio improvisado de 500 metros quadrados. ?Este programa é um lixo colocado a 40 metros de minha casa?, esbraveja Nastas.
Móveis de grife – Quem passa em frente ao número 482 da rua Antônio Andrade Rabello, no entanto, não nota nada de anormal além da profusão de antenas no teto da casa branca e cinza, de linhas modernistas. Mas basta o alto portão eletrônico se abrir a cada meia hora para a entrada de vans vedadas com cortinas pretas, para se ver a movimentação intensa no hall tomado por seguranças, bombeiros, faxineiras e médicos. Ao todo, 100 pessoas lá se revezam durante 24 horas para manter o interesse voyeur pela residência estrelada, cujo ponto privilegiado é uma sala espaçosa, repleta de móveis de grife. É o recanto preferido dos famosos, que desfilam seus corpos esculpidos metidos em trajes sumários. Com algum constrangimento e intimidade estudada, Supla, Alexandre Frota, Bárbara Paz, Mari Alexandre, Mateus Carrieri, Núbia &OOacute;live, Patrícia Coelho, Marco Mastronelli, Nana Gouvêa e Taiguara Nazareth – Alessandra Iscattena foi eliminada e o cantor Leandro Lehart abandonou o barco – também transitam pela cozinha, pelos dois quartos e pela dispensa. Detalhe importantíssimo: há apenas um banheiro comum para os confinados, que – jura a produção – não mantêm nenhum contato com o mundo exterior.
Claro que a decisão do banheiro comunitário é estratégica. Querendo imprimir um certo clima erótico, num dos episódios Núbia Ólive foi tomar banho com Supla, mas o roqueiro saiu pela tangente. Outra estratégia para mostrar ao público os detalhes da convivência dos amigos-rivais da gincana, que premiará o vencedor com R$ 300 mil, foi instalar 33 câmeras, boa parte delas escondida atrás de espelhos, e 40 microfones que captam diálogos de puro êxtase. Êxtase de bobagens e completos equívocos. Núbia, por exemplo, confundiu luxo com luxúria e Frota não consegue articular uma frase sem a gíria ?parada?. Frota, aliás, protagonizou um episódio que soou pura armação. Na segunda-feira 5, ele desistiu da empreitada. Dia seguinte deu uma entrevista coletiva falando sobre o assunto e à noite já estava de volta à casa, pressionado, segundo ele, pelo próprio Silvio Santos. Como um pombo correio anabolizado, ele entrou com seus 100 quilos e 1,88m trazendo recados dos familiares da turma enclausurada. O choro comunitário tentou convencer os espectadores.
Golpe de mestre – Mas há quem não leve a sério o que se passa entre as quatro paredes monitoradas. A estudante Thaisa Peralta, 17 anos, que resolveu visitar a Casa dos artistas com os amigos Gustavo Ferreira, Marília Pasculli e Alexandre Chad, está entre os incrédulos. ?Assisto só para ver a palhaçada dos famosos.? Verdade ou não, Silvio Santos deu um golpe de mestre. O projeto orçado em R$ 5 milhões foi gerado e nasceu cercado de sigilos. Mateus Carrieri – que está morrendo de saudade de seus cachorros Thor e Jack – só comunicou à mulher, Andrea Agulha, que iria participar da gincana dois dias antes de seu início. Ela diz acreditar na fidelidade do marido, mas fica apreensiva. ?Ali eu não ponho a mão no fogo por ninguém. Toda vez que o programa vai começar sinto um frio na barriga.?
É esta promessa de surpresas e insinuações que mantém a audiência da Casa dos artistas. Afinal, todos são bem desinibidos e as cenas levadas ao ar são editadas com a sutil intenção de mostrar que lá dentro pode acontecer mil e uma noites de carícias. No melhor estilo bateu-levou, Frota esclareceu ?a parada?. ?Nem se quisesse, aqui não dá pra dar.? Mesmo assim, o empresário Rogério Gherbali, marido da apresentadora Alessandra Iscattena, se sentiu aliviado com a eliminação dela, tida como calculista pela turma. ?Conheço a mulher que tenho. Ela tem uma imagem limpa, é muito íntegra?, afirma ele, confiando no ambiente interno. Pelo que se sabe, preservativos não estavam no kit sobrevivência de cada um. Entre as curiosidades individuais, Supla, que topou participar para divulgar seu novo disco O charada brasileiro, à venda nas bancas a partir da quinta-feira 15, levou fotos dele mesmo e o livro Mate-me, por favor, de Legs McNeil e Gillian McCain, sobre os bastidores do movimento punk americano. Leandro Lehart não esqueceu do perfume Bulgari e do gel de cabelo. Mari Alexandre preferiu carregar um par de chinelos brancos com o personagem de desenho animado Piu-Piu junto com o livro Ninguém é de ninguém, de Zibia Gasparetto. Do lado de fora, acompanhando a movimentação da Casa dos artistas como qualquer espectador comum, Vavá, ex-vocalista do grupo de pagode Karametade e namorado de Mari, foi aconselhado pelos executivos da gravadora Sony Music a não se pronunciar sobre o programa. Estão certos. Falar o quê?"