Friday, 01 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O patronato e as novas "coalizões"

DIPLOMA EM XEQUE

Cláudia Rodrigues (*)

Ao me formar em jornalismo, em 1986, a turma toda entrou no salão de formatura gritando: "Pelo diploma! Pelo diploma!" Não gritei, era contra. Além de José de Alencar, clássico exemplo, conhecia outros bons profissionais do jornalismo, menos famosos, que estavam apavorados com a idéia de perder seus empregos. Achava, e ainda acho, que para ser jornalista e exercer a profissão não basta fazer um curso de jornalismo. O curso é o primeiro passo de uma longa e exaustiva jornada em busca do conhecimento.

Da mesma maneira, para ser um médico, um bom médico, não basta o curso de medicina. Há bons curandeiros que praticam uma medicina mais eficaz e menos invasiva do que muitos doutores. E há também uma quantidade significativa de charlatães que enganam os doentes com técnicas curativas de arrepiar. Pelo menos eles não respondem como médicos e quem os procura sabe que não está nas mãos de um médico, mas nas de curandeiros.

Médicos sem escrúpulos, sem talento, com uma ética muito mais voltada para o comércio do que para o bem-estar humano, também existem aos montes. E aí? Vamos abolir as faculdades de medicina por causa disso, em nome dos bons curandeiros que exercem uma medicina alternativa, bem executada e com menos efeitos colaterais? Certamente que não, tanto que nem está sob questão o diploma de médico. Tampouco os bons terapeutas alternativos estão fora do mercado. Há lugar para todos, até para os charlatães da cura.

No mercado das palavras todos podem escrever. Qualquer pessoa pode escrever um livro para expor suas idéias, qualquer empresa pode fazer seu jornalzinho interno. E cidadãos de outras categorias profissionais têm espaço para escrever como articulistas em jornais ou revistas.

Por que, de repente, cai a necessidade de diploma para os profissionais que tratam da notícia, os jornalistas?

Há quem fale do perigo do corporativismo. E, de fato, o ideal para se evitar qualquer risco corporativista seria abrir as portas das redações. Isso se o mercado fosse ético, se as empresas fossem éticas, se P. e A. (eximo-me de informar as iniciais completas), dois jornalistas competentes, entre os vários que conheço, não tivessem que se submeter a fazer textos ridículos, que os envergonham, para revistas da Abril e da Globo, por exemplo.

Mas será que, nesse momento, procede a não obrigatoriedade do diploma? Justamente agora, quando as empresas jornalísticas estão demitindo, reduzindo salários, aumentando a jornada? Nesse momento especial em que se estuda, com artimanhosos lobbies, a entrada de capital estrangeiro na área?

O que importa é o que há atrás do sim ou do não ao diploma.

Os motivos é que são elas

Nos últimos anos houve uma banalização dos conteúdos jornalísticos, executada por jornalistas, a mando das empresas, sob o crivo das áreas publicitária e comercial. Esse tripé bem montado ? empresa, comércio, publicidade ? tem subjugado os profissionais do jornalismo que passaram a atuar como peões, operários da notícia superficial, das matérias frias, da cópia exata de press releases.

E todos sabemos que o operariado serve melhor quanto menos informado for, quanto menos abrir as asinhas ou mostrar as garrinhas. Quanto mais servil e menos questionador, tanto melhor. Como dizia um diretor de jornal, "não quero questões, ponderações, quero soluções que vendam jornal".

Assim, a dispensabilidade do diploma pouco vai garantir acesso a bons profissionais que não possuam o canudo, mas vai, certamente, aumentar a chaga de uma mídia serviçal aos interesses econômicos do mercado da informação.

Há pouco espaço atualmente para bons profissionais do jornalismo na mídia e para a execução de um jornalismo digno. Com ou sem diploma. E esse espaço tende a se encurtar se unirmos a ausência do diploma, que de alguma maneira nutre futuros profissionais, à abertura do mercado para investidores estrangeiros. Uma coisa casa perfeitamente com a outra e aborta, de saída, o que poderia levar o nome de jornalismo.

Onde vive e onde morre o jornalismo

Essa morte do jornalismo, curiosamente, começou quando terminou a ditadura militar. Durante a ditadura a imprensa resistia no fundo dos porões, nos panfletos, nos jornais alternativos que saíam nas madrugadas assinados com pseudônimos. A respiração era abafada, contida e escondida, mas se respirava algum jornalismo.

Assim que a ditadura se foi, surgiu o neojornalismo, sob a batuta de uma filha caçula: a assessoria de imprensa. O crivo não vinha mais dos militares. Começava a vir dos conchavos entre donos de empresas jornalísticas e anunciantes, donos de empresas jornalísticas e governo, donos de empresas jornalísticas e setor comercial, donos de empresas jornalísticas e publicitários.

Os jornalistas?

Poucos se revoltam, aderem a greves, alguns são internados em manicômios para resolver as divisões e depois voltam ao batente com antidepressivos; outros partem para o cinema, o teatro, os livros. A maioria apenas debocha da própria sorte e se insere no sistema driblando uma gastrite aqui, uma dorzinha de cabeça ali ? afinal, há filhos para criar. Será que ainda existe algum jornalista satisfeito na atual conjuntura?

Uma coisa é certa: o jornalismo passou a ser uma grande encenação, e isso não se deve à obrigatoriedade ou não de um diploma, e muito menos ao conteúdo desenvolvido nas salas de aulas das universidades ? que deixam a desejar, em muitos casos, mas que também trazem luz, compreensão e alimento intelectual à vida profissional. Muitas profissões se desenvolvem na prática e o jornalismo não é exceção. Na faculdade pode-se não aprender como uma notícia deve ser distorcida por um interesse econômico, empresarial ou político. E também é possível que as faculdades consigam formar pessoas que sequer gostam de ler e escrever, duas balizas fundamentais para o exercício da profissão. É bom lembrar que, aos 18 anos, escolher a profissão inadequada é comum também em outras áreas. O fato de o mercado absorver maus profissionais, vindos de universidades que não pesaram o desempenho de seus alunos, é uma outra história e necessita de um outro tipo de revisão.

É decepcionante, para alguns formandos, o contato com a profissão do lado de fora da faculdade especialmente quando percebem que a submissão é o quesito mais importante para se manter um emprego ou um lugar no mercado. Já outros formandos, mais carreiristas, entram com a pilha toda nas redações, fazendo qualquer coisa para manter o emprego.

Lembro de quando recebi ordem para demitir uma jornalista de 27 anos, que tinha texto primoroso, menina viajada, fluente em francês e espanhol, estudiosa de cinema e com defeitos horríveis: sindicalizada, politizada e avessa a puxações de saco. A segunda ordem era admitir uma moça da mesma idade que cometia erros de grafia e concordância verbal, com pouquíssimo conhecimento de assuntos gerais. Suas qualidades mais gritantes eram a simpatia (ela estava sempre rindo) e uma incrível capacidade para agradar os chefes. Era servil, queria subir na vida e achava um "porre" aquele pessoal do sindicato. Ambas haviam saído da mesma universidade.

A pergunta que fica no ar é se realmente o mercado se interessa por uma massa de profissionais sérios, nem todos brilhantes mas éticos o suficiente para defender um bom jornalismo, ou se está contente com algumas exceções brilhantes, competentes, merecedoras de bons salários, e uma massa de profissionais subservientes, que tudo aceita, desde horas extras não-remuneradas até um salário de fome?

Formação e deformação

Não podemos deixar de defender e de nos preocupar com jovens que sonham com o jornalismo, leitores curiosos que tiram proveito dos quatro anos de estudos dedicados ao abecedáaacute;rio da profissão. No frigir dos ovos, a encenação em tempos de cátedra é mais real, mais ética e mais comprometida com as verdades do que a realidade dentro de uma redação. Na juventude, e o mercado demonstra que se interessa pelos jovens, quem sai de uma faculdade ao menos tem uma idéia da teoria que deveria ser praticada.

A encenação real da prática na mídia ? que tem como resultado a baixa qualidade ? se deve, antes de mais nada, a um mercado excessivamente preocupado em alimentar a voracidade da doutrina econômica. O jornalismo foi engolido por ela e agora, no auge das denúncias, das CPIs do Senado, do leite, do futebol…, quando ensaiava uma lufada de ar maior para oxigenar a cabeça dos leitores/espectadores, surge nova paulada.

Jornalistas há muito não são pagos para informar e muito menos para formar. A realidade precisa ser deformada, transformada em algo plausível à manutenção da estratégia econônica, esteja ela dando certo ou não, seja ela responsável ou não por misérias maiores do ponto de vista humano.

O dinheiro precisa rodar, o dinheiro precisa concentrar e, para isso, toda a manipulação é pouca. Só com muita ingenuidade ou por alguma arbitrariedade se pode acreditar que a não obrigatoriedade do diploma vai trazer benesses aos consumidores de notícias, ou melhorar a qualidade do ensino, ou dar chances ao ingresso de bons profissionais no mercado da mídia.

Hoje já é amanhã

O que se tem hoje é um desprezo enorme por parte das empresas jornalísticas em relação aos jornalistas. Salários atrasados, demissões, contratação de mão-de-obra barata e pouco qualificada, submissão aos setores de publicidade e marketing. Daí a necessidade do mercado em contratar profissionais de ética duvidosa e conseqüentemente de prática duvidosa. Porque talento, competência e ética andam juntos em qualquer profissão, em qualquer ofício.

O que se terá em futuro próximo, sem a obrigatoriedade do diploma, além de tudo o que já foi citado, que pode ser comprovado nos "melhores" jornais e telejornais: um enfraquecimento ainda maior dos sindicatos. É um marco histórico triste, que sepulta todas as conquistas trabalhistas que julgávamos ter alcançado.

A união não faz mais a força, se é que um dia fez. A palavra que faz a força agora é "coalizão", e ela não se aplica e nem pode ser praticada por operários, profissionais liberais, povo, povinho, povão.

Coalizão é coisa para tubarões.

O Aurélio explica: Coalizão. 1. Acordo de partidos políticos para fins comuns. 2. Aliança de nações. 3. Econ. Coligação de produtores da mesma categoria, que objetivam vantagens comuns ou lucros arbitrários, ou visam a proteger-se contra a concorrência desleal. 4. Jur. Consórcio, convênio, ajuste, aliança ou fusão de capitais, de caráter criminoso, para impedir ou dificultar a concorrência, visando o aumento de lucros arbitrários.

Vocês querem espernear, gritar, implorar direitos, fazer greves, movimentos, carregar faixas pelas ruas? Fiquem à vontade. Se foi o tempo em que esses gestos irritavam os patrões e davam algum resultado. Agora eles riem, fazem coalizões e fim.

(*) Jornalista

Leia também

? Alberto Dines

? A. D.

? Carla Abrantkoski Rister

? Luiz Weis

? Muniz Sodré

? Nilson Lage

? Luís Nassif

? Victor Gentilli

? Rosa Nívea Pedroso

? Iluska Coutinho

? Cláudio Buongermino

? Rogério Christofoletti

? Josenildo Luiz Guerra

? Angelo de Souza

? Iluska Coutinho

? Elias Machado

? Gerson Luiz Martins

? Tattiana Teixeira

? Alfredo Vizeu

? Nota oficial da Fenaj

? Beth Costa

? Ruben Dargã Holdorf