Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Edições para entorpecer leitores

CASO SONINHA

Deonísio da Silva (*)

No Brasil, como se sabe, as leis se dividem entre as que pegam e as que não pegam. Os instrumentos legais que garantem a liberdade de expressão não pegaram. As recaídas de censura são muito freqüentes. E o que tem sido apresentado como exceção ? a censura ? é norma.

Que mal pode fazer à sociedade o cidadão que chega em casa e bebe um trago de fim de tarde? Nenhum. Se ele traficar o álcool, eis a questão. Substitua-se o álcool pela maconha e temos um problema. Substitua-se a hipocrisia pela sinceridade e teremos dois problemas. O que a apresentadora de televisão Soninha deveria responder na entrevista quando lhe perguntaram se fumava maconha? "Fumei, mas não traguei" , ensinou um ex-presidente americano.

Talvez como nas brigas de marido e mulher, em que há o ponto de vista do marido, o da mulher e o correto, mas a esse último nenhum dos dois dá atenção no calor da refrega, também o caso Soninha traz confusões. O exagero tomou conta de tudo, a começar pela edição da revista Época. Que complexas e obscuras razões tiveram os editores para dar capa a personalidades que admitem fumar maconha? Evidentemente, se um tema é escolhido para principal, outros são descartados, sem contar que alguns outros parecem que jamais merecem ser tocados.

A imprensa precisa de mais leitores. Centenas de jornalistas estão perdendo o emprego. Se as tiragens fossem maiores, o quadro seria de desemprego? Como ampliar o público? Encartando dicionários, fascículos, chamando a atenção para temas e problemas que afetam a minoria que pode comprar um baseado e depois fazendo do factóide o tema e o problema da semana?

Por que demitir a jornalista? Porque falou a verdade? Se a verdade deve ser proclamada do alto dos telhados, por que não poderia estar na capa de uma revista? A pergunta que precisa de uma resposta mais complexa talvez seja outra. Por que, entre tantas verdades para aquela semana, a escolhida foi a da "esquadrilha da fumaça"? O leitor quer texto para ler. Por isso inclui em seu orçamento despesas com informação e formação num cardápio jornalístico cujo melhor espelho é o sumário. E suas divisões. Que melancolia as seções de livros, filmes, teatro, música na maioria de nossas publicações!

Se um escritor lança um livro, a obra por si só não merece o espelho da imprensa. E nas seções de livros em geral pontifica alguém que não tem preparação para o ofício, hoje altamente especializado. E é essa pessoa que tem o poder, não apenas de aprovar ou desaprovar uma obra, tudo na base da ciência que mais pratica, a "achologia", mas também a de decidir quais os dois ou três livros daquela semana que as livrarias do Brasil inteiro devem destacar em suas prateleiras. Que, aliás, não são tantas justamente porque também nossa imprensa não quer saber de livros. Às vezes, nem para consumo próprio.

Direito assegurado

O caso Soninha é uma soma de equívocos. Por exemplo: para que o distinto público mais jovem soubesse que Jorge Cunha Lima é autor de poemas, precisava aparecer como domínio conexo da transcedental formulação "fumar ou não fumar, eis a questão"? Tenham a santa paciência! Quando é que ele, Fernando Morais, Pedro Paulo de Sena Madureira e Anna Maria Martins, entre outros, serão ouvidos para falar de outros fumos, como os fumos das oficinas culturais, projeto que abriu mais vagas do que toda a USP, na capital e no interior de São Paulo? E que se continuasse com aquele ímpeto teria, entre outras vantagens, elevado o nível cultural do povo!

A confusão promete alastrar-se mais porque nossas apresentadoras de televisão são concebidas como professoras, consultoras, médicas, advogadas, conselheiras matrimoniais e, dependendo do horário, babás ou orientadoras públicas da vida privada dos cidadãos.

Nos anos 80, depois de fazer o levantamento preciso, título por título, dos 508 livros proibidos no Brasil pós-64, procurei a maior revista semanal de informação e ofereci o trabalho. Foi recusado por telefone. Quem evitou a censura branca sobre a censura escura foi o jornalista Carlos Costa que abriu espaço na revista Playboy para o caso mais emblemático dos livros proibidos, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, que teve sua condenação mantida em diversas instâncias judiciais e somente foi liberado, já em grau de recurso, em 1989, no TRF, por 2 x 1, placar apertado. A matéria obteve o primeiro lugar no X Prêmio Abril de Jornalismo, em empate deste colunista com o editor da revista que dissera não ser relevante a lista de livros proibidos. (Ele escreveu sobre outro assunto).

Uns erraram ao pautar a capa daquele jeito; outros pioraram perseguindo a cidadã que tem o direito, assegurado pela Constituição, de dizer o que pensa. E os brasileiros, que precisam saber por que as 52 universidades federais continuam em greve há três meses, por que o Banco do Brasil foi posto à venda, que implicações tem a entrada de capital estrangeiro nas empresas do mercado jornalístico, quais os desdobramentos da caçada a Osama Bin Laden no Afeganistão etc etc etc ? foram convocados a debater alguns baseados.

O projeto semanal era entorpecer os leitores?