Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"A frase e o seu contexto", copyright Diário de Notícias, 18/11/01

"A jornalista Diana Andringa solicitou a opinião da provedora sobre a maneira como, primeiro, o jornal Público e, depois, o colunista do DN, Luís Delgado, se referiram à sua intervenção num debate organizado pela Associação 25 de Abril, sobre o tema Terrorismo como ameaça global, no qual, além da jornalista, participaram como oradores, o director do DN, Mário B. Resendes e o general Loureiro dos Santos. A notícia do Público possuía como título Afinal, quem deitou abaixo as torres? e, na abertura, a seguinte frase proferida por Diana Andringa nesse debate: ?Ainda hoje não estou certa que as torres não foram deitadas abaixo pelos próprios americanos para, a seguir, se atirarem ao Afeganistão?.

No dia seguinte, Luís Delgado transcrevia as citadas palavras e, segundo Diana Andringa, ?como se as tivesse ouvido, sem citação da fonte? que, entretanto, fora ?corrigida?, acrescentando-lhe a expressão, ?Meu Deus…?.

Dois dias após ter noticiado o caso, o Público publicou uma carta de Diana Andringa, na qual a jornalista protestava contra a ausência de ?contextualização das frases escolhidas? e esclarecia que ?não se tratava de uma declaração, mas sim da resposta? (que pretendeu ?bem humorada?) à ?provocação? de uma participante na tertúlia.

O caso foi objecto de numerosos comentários na imprensa, quase todos ignorando o esclarecimento de Diana Andringa sobre o contexto em que proferiu a frase. Inconformada, a jornalista questiona ?esta forma de passar para os jornais, sem contextualização, o que é dito numa sala fechada, em conversa solta e em determinado contexto?.

Não seria eticamente correcto a provedora de um jornal opinar sobre um texto publicado noutro jornal, para mais quando esse jornal – no caso, o Público – deu voz à jornalista queixosa, publicando na íntegra a carta em que ela explicava o contexto em que a frase fora proferida.

Também não compete à provedora comentar opiniões expressas no DN. Contudo, Luís Delgado não quis deixar de explicar a sua reacção ao caso, afirmando que ?de tal maneira foi dada importância (pelo Público)? à frase de Diana Andringa, que essa frase faz parte do lead da peça. Luís Delgado refere, também, que quando escreveu não tinha conhecimento de que a frase tivesse sido corrigida – o que, aliás, veio a acontecer no dia seguinte, motivando de Luís Delgado o seguinte comentário: ?(…) A frase, mesmo que em resposta a uma provocação, tem um juízo impensável perante os acontecimentos de 11 de Setembro.?

Tendo também participado no debate, o director do DN afirma não ter dúvidas de que Diana Andringa ?pretendeu fazer humor?, o que considerou ?uma tentativa mal conseguida e de gosto mais do que duvidoso?, acrescentando ?entender as reacções de alguns (poucos) dos presentes e, obviamente, o espanto de Luís Delgado?.

A polémica suscitada pela cobertura jornalística da frase proferida por Diana Andringa proporciona uma reflexão sobre questões pertinentes, como seja saber se ?o que é dito numa sala fechada, em conversa solta e em determinado contexto pode ser passado para um jornal sem contextualização?.

Em primeiro lugar, o jornalista é, por definição, um observador. Pela sua acção, torna perceptíveis e significativos acontecimentos que, sem a sua intervenção, apesar de se manifestarem fisicamente, passariam despercebidos.

É o discurso jornalístico que os dota de sentido, ao integrá-los num contexto socialmente inteligível. Reportar um facto, ainda que ele seja apenas do domínio das palavras, implica descrevê-lo, explicá-lo e referir as reacções que provocou. O bom repórter consegue captar as nuances e os significados de uma frase, de uma palavra, de um sorriso e, mesmo, de uma tentativa de humor, ainda que falhada. (No caso presente, teria sido possível questionar, directamente, Diana Andringa sobre o significado das suas palavras).

A segunda questão diz respeito ao ?espaço? e às condições em que decorreu o debate, que Diana Andringa descreve como uma ?sala fechada, em conversa solta e em determinado contexto?. Contudo, o debate possuía uma dimensão pública inegável, só assim se compreendendo a presença, na assistência, de (pelo menos) o jornalista do Público. Aliás, a iniciativa, da Associação 25 de Abril, de organizar um debate sobre um tema de grande actualidade, convidando para ele figuras mediáticas, como era o caso dos já citados jornalistas e do general, corresponde a uma prática (legítima) adoptada por muitas instituições que consiste na criação de eventos que, através de uma boa cobertura jornalística, lhes dêem visibilidade, notoriedade e influência.

Ora, a transformação dos espaços fechados de debate entre ?pessoas privadas? em espaços públicos mediatizados, confere às actuações e ?falas? individuais e colectivas, ocorridas nesses espaços, uma dimensão pública, o que significa que essas actuações e ?falas? deixam de estar confinadas ao espaço fechado em que são produzidas, tornando-se susceptíveis de ser conhecidas e discutidas pelos ?consumidores? da informação fornecida pelos media. Ser notícia é, aliás, condição de sucesso dessas iniciativas, o que neste caso aconteceu graças à cobertura efectuada pelo Público e aos múltiplos comentários que se lhe sucederam.

Bloco-notas

Valores – Num texto publicado em 1997, intitulado Repensar os valores jornalísticos, o Instituto de Valores Jornalísticos (JVI), criado no seio da Associação Americana de Editores de Jornais (ASNE), definiu seis ?valores? como intemporais e estruturantes da profissão. O documento resultou de discussões sistemáticas realizadas no âmbito de seminários em que participaram editores e repórteres de jornais de várias regiões dos EUA e representa, segundo os seus autores, uma ?nova maneira? de olhar os princípios que orientam o jornalismo na ?idade dos novos media?.

Captar o ?tom? – Entre esses valores, encontra-se a exactidão (accuracy), apresentada como a descrição rigorosa dos factos, a apresentação do seu background, contexto e perspectiva, o que implica captar o ?tom?, interpretar as palavras, as experiências e as emoções das pessoas envolvidas.

Os outros cinco valores referidos no documento são: 1) o equilíbrio – ligado à equidade e ao pluralismo -, definido como a captação das várias vozes e pontos de vista, soluções e problemas da sociedade, abrangendo o banal e o extraordinário, o bom e o mau; 2) a capacidade de salientar e enquadrar temas importantes para a sociedade, através de uma cobertura jornalística que estimule a discussão dos problemas que preocupam os cidadãos, de modo a ajudá-los a encontrar soluções; 3) a acessibilidade, isto é, a criação de laços entre o jornal e o seu público, e entre os membros do público, através da cobertura de assuntos que lhes digam respeito; 4) a credibilidade – presente na base e no topo do sistema – resultante da apreciação feita pelos leitores sobre a maneira como os jornalistas se interessam e cobrem os problemas que afectam a comunidade; 5) a apreciação (judgement) feita pelo jornalista do que deve ser seleccionado, enquadrado e definido como importante e significativo para a sociedade.

É o ?regulador do sistema?, actuando como o filtro através do qual fluem todos os valores.

?Ecossistema? – Os valores jornalísticos actuam como um ?ecossistema?, diz o documento do JVI. Num primeiro olhar, os elementos terra, ar, água e natureza parecem muito simples.
Contudo, interagindo e operando como um conjunto, os elementos dão origem a uma complexa e matizada ?paisagem?. Esses seis valores, estruturantes da profissão, devem ser abordados como um sistema, isto é, praticados, não independentemente uns dos outros, mas em simultâneo.

Para os autores do documento, o sistema de valores jornalísticos não constitui uma ?táctica? ou um ?truque?.

Trata-se, sim, de uma ?lente? através da qual os jornais e os jornalistas podem aferir, permanentemente, a sua prática profissional quotidiana.

É essencial que os jornalistas discutam esses valores, dizem os autores do documento."