Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Depoimento de um carregador de piano (ilegal, claro!)

DIPLOMA EM XEQUE

Carlos Eduardo Entini (*)

Caros jornalistas e não-jornalistas, tenho acompanhado atentamente as discussões sobre o fim ou não do diploma, pois tenho muito interesse: sou ilegal há 9 anos! Assim como muitos que trabalham ao meu redor.

Por isso não consigo manter um tom ameno e deixar de lado o cinismo. O diploma é uma exigência ridícula. Para aqueles que têm preocupação sindical devo dizer que uma categoria não se faz pelo diploma, mas por aqueles que exercem a atividade. Engraçado, nem posso me sindicalizar, eles estão perdendo um "nicho" de mercado!

Para os que têm preocupação com a "qualidade editorial", o canudo, ou sua ausência, não salvará a imprensa, pois o senso crítico é pequeno frente ao interesse de mercado, do público-alvo.

Vou deixar o tom pomposo de lado, e descrever de forma singela o que é ser um não-diplomado da perspectiva daqueles que carregam o piano nos meios de comunicação. Para isso contarei minha história profissional-ilegal.

Em 1992, quando cursava o curso de Sociologia e Ciência Política, vi em um mural um anúncio de estágio em grande jornal na área de arquivo. Fui. Chegando lá, qual a surpresa? Só apareceram dois. Mas nenhum jornalista! Outra surpresa, fui informado de que o anúncio havia sido colocado nas faculdades de Comunicação, porém, não obtiveram nenhuma resposta.

Primeira lição: arquivo? Isso não é coisa para jornalista! O negócio é ficar em evidência, em cima da carne-seca! Mas só jornalista pode trabalhar nisso! Tá na lei!

Então tá, aceitei o estágio. Devo dizer, sem vergonha, que é uma área muito interessante, pesquisas em várias fontes, armazenamento de informações, livros, hemerotecas, anos e anos de história e informação ao meu lado… E num instante posso solver uma grande dúvida, ajudar na criação de uma pauta, na checagem etc..

Em 1999, resolvi fazer a faculdade. Cansei da ilegalidade. Fui. Uma particular, considerada nota "A" pelo MEC. Legal, paguei o que tinha que pagar, ganhei um crachá para poder entrar e sentei para assistir às aulas. Foi surreal, não agüentamos dois bimestres, eu me minha conta-corrente. Tinha aulas do software Page Maker. Primeira aula: como abrir e salvar um arquivo! Tinha aulas de História da Comunicação com um senhor "de amplo conhecimento da imprensa" que lia um papel amarelo e nos contava como os homens se comunicavam, desde os tambores até hoje. Pena não ter chegado à web, parei no papiro!

A faculdade tinha, também, a preocupação de dar uma "visão humanista" aos pagantes. Na disciplina de Língua Portuguesa, que pensara eu que se ateria à gramática, o babado era mitologia grega! Depois caiu a ficha, a professora tinha um mestrado nesta área, juntando com a preocupação de dar a carga humanista deu no que deu. A tal da "multidisciplinaridade". Tá na moda.

Mas tudo bem, fiz o trabalho e escolhi o mito de Prometeu. Coincidência, não?

Aulas de Jornalismo mesmo, uma ou duas. Bastava tirar cópia de um textinho miúdo, três ou quatro páginas e discutir na classe. Baba do boi, para quem estava acostumado com textos densos.

Um belo dia, um garoto-pagante pediu para ir ao banheiro; eu, já formado e acostumado a respeitar as minhas necessidades acima de tudo, estranhei a requisição! O professor, o mesmo que ensinava "dos tambores à web", literalmente disse não, que aquilo era a falta de respeito para com o mestre.

Foi a gota d’água! Saí.

Segunda lição: a faculdade, e não só essa em que estive, quer tapar um buraco na formação deficiente dada ao ser-pagante no curso secundário. Mas qual educação humanista? É muito relativo, não é? O interesse da pessoa por assuntos da humanidade não pode ser enquadrado em disciplinas, conhecimento não se compra, mas está sendo conseguido com o diploma. Não é isso que acontece? Só para complementar: ética não se obtém com diploma. Polyanas, Polyanas…

Vamos voltar ao arquivo. Depois de trabalhar no jornal fui chamado para uma grande editora. Um belo trabalho de documentação, muito bem-organizado, como é até hoje. Mas uma coisa era idêntica: arquivo, blargh! Isso não é coisa para um jornalista. Tanto não é que sempre pergunto aos com-canudo se algum dia eles tiveram aula de tratamento de informação, de busca de informação, enfim de arquivo. A resposta é sempre a mesma: não. Apesar do desconhecimento, o arquivo é fundamental para o jornalismo Ctrl+C-Ctrl+V que se pratica hoje na maioria das redações. Uma mão na roda, pois o mercado-jornalístico não busca mais a investigação, a crítica, mas sim a reprodução de notícias exaustivamente. Quanto menos jornalistas, melhor!

O piano é maior

Bom, mas é uma atividade de jornalistas, está na lei, isso pertence a vocês.

Na lei pertence, mas a prática é outra coisa. O trabalho que desenvolvemos vai além de áreas pré-demarcadas pelos cursos formais, o dia-a-dia extrapola o conhecimento formatado, trabalhamos com conceitos de biblioteconomia, história e jornalismo, economia e outros. Somos plurais como o conhecimento, e isso vale para a profissão de jornalismo como um todo! Por isso o exigência do diploma é estranha. Não nego que haja um conhecimento específico para o jornalismo, mas é um conhecimento técnico, que uma especialização pode suprir. E também não nego a vontade de estudar o jornalismo em si, suas técnicas, sua história. Por que não uma especialização para habilitar o profissional?

Para terminar a última lição: o trabalho de jornalismo é muito mais amplo do que escrever, editar, envolve outras áreas que um simples curso não pode abarcar. O piano é muito maior!

Com este texto faço uma pequena homenagem a Elio Gaspari, com quem tenho aulas de Jornalismo duas vezes por semana, sem custo adicional, só prazer

(*) Formado em Sociologia e Ciência Política, e não-sei-o-que-lá da imprensa, mas com certeza ilegal