Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Joaquim Ferreira dos Santos

CASA DOS ARTISTAS

"Mary Alexandre vai à casa de Soninha", copyright no. (www.no.com.br), 29/11/01

Chamar o que está acontecendo de fuga da realidade seria incorrer na mesma ingenuidade comunista dantanho de acusar a TV de ópio do povo. Pode parecer apenas um bricabraque semântico, mas é a realidade que está em fuga. Mudou-se. Talvez para o Afeganistão. Procura-se desesperadamente. Com certeza não está na televisão brasileira. Que realidade é essa em que o filho-punk-da-prefeita-perua transa com a caseira-hippie na piscina dos fundos?

De um lado, Soninha puxa seu fuminho e nem assim, coitada, dropa e foge da realidade. O barato da droga era a maneira que ela, dona de casa, mãe de três filhos, encontrava de se ajustar à realidade. Mas eis que esta se lhe foi entre os dedos. Demitida, Soninha ficou só com a evasão do baseado – a realidade do emprego se mandou. Do outro lado, domingo passado, 50% dos brasileiros ligaram a televisão para queimar seu fuminho legalizado: o buraco da fechadura da tal Casa dos Artistas, do SBT. Queriam encontrar a realidade e comparar com as suas. Há outras atrações na casa do Morumbi, e não exatamente a Mary Alexandre se ensaboando no banheiro. Mas também não há nenhuma realidade morando nela, casa (na Mary moram uns silicones muito bem ajustadinhos).

A realidade se mandou. Quando os artistas entraram ali, 30 dias atrás, achavam-se vistos apenas pelos gatos pingados do SBT. E tome remela e bocejo, qual o problema?, se ninguém que importa está vendo? A realidade se mandou no dia em que o próprio Silvio Santos, repetindo a Veja, disse que havia mais de 20 milhões de voyeurs de olho em cima do que rolava embaixo do ededrom do Supla e da Bárbara. Foi o que bastou. O bad-boy-Frota mudou a sintonia das maldades do botão da cafajestice para o botão da maluquice. Trancou o pitbull na garagem. Um doidão simpaticamente descerebrado pode ser que renda personagem de anúncio mais tarde. A realidade da Casa dos Artistas mudou-se para bem longe e deixou no seu lugar uma grande pose.

Ninguém sabe direito o que vai acontecer quando acabar o contrato de locação desses inacreditáveis condôminos que passaram a coabitar com os brasileiros nos últimos 30 dias. Mas a televisão ficou irreconhecível. A Globo torce para que essa nova realidade seja como a da fumaça da Soninha. Ilusória. Como o Taiguara, a Globo finge-se de morta. Prepara um reality-show também, o verdadeiro Big Brother, mas comporta-se como o negão do SBT. Permanece na sua. Estão tramando sua morte no quarto ao lado, mas ela, Taiguara-marrenta, nem aí. É verdade que os dois primeiros blocos de O Clone foram colados, o intervalo foi jogado para depois que a Casa já saiu do ar. Suprimiram-se também os créditos dos artistas e abertura. Tudo para que o controle remoto não dê aquela piscada nervosa rumo às imitações da Rogéria pela Patrícia Coelho. Mas é pouco para a artilharia global.

A realidade fugiu – e entrou outra no lugar. O palavrão está solto. O SBT colocou uma repórter inteiramente nua num campo de nudismo. A RedeTV passa hoje de tarde a Casa dos Artistas que o SBT exibiu ontem de noite e argumenta, olho por olho, que Sílvio Santos também não pagou direitos aos holandeses inventores do jogo. Os comerciais qualificados chegaram ao horário nobre do SBT. O presidente da Citroen anunciava lá na quarta-feira e parecia firme com o que via do outro lado do tubo: a audiência do Matheus Carrieri não é a mesma dos miseráveis do Ratinho. Bacanas vêem a Casa. A internet não fala em outra coisa.

Até a TV fechada está atrás da realidade. Seja qual for. O GNT comprou um reality-show, o The Human Zoo, apresentado como uma versão científica, ah bom!, do zoológico sensacionalista do SBT. É uma daquelas curiosidades nacionais. A TV fechada existiria, por princípio, como opção de programação à TV aberta – mas aqui tudo caminha, como as vergonhas do Pero Vaz, para a uniformidade saradinha. A TV fechada copia, é mole?, a TV aberta a quem devia acompanhar pelo avesso do espelho. A DirecTV chegou ao cúmulo de vender um novo pacote pay-per-view. Um festival de filme afegão? Todo o teatro de Shakespeare pela BBC? Não. A Casa dos Artistas ao vivo, durante 24 horas. Eu tenho uma amiga que pagou. Acorda de madrugada e vai ver na sala se o Alexandre Frota está pegando a Patrícia Coelho na sala da mansão. Não é a realidade dela, não é a realidade dos artistas, não é a realidade da TV paga que não tinha nada que estar ali. Mas o que é real neste Natal?

Certa está a Mary Alexandre. No meio de toda essa confusão aplica-se gotas de florais de Bach – só quem tem a DirecTV sabe – e não chora mais. Imediatamente pianinho, imediatamente cravo temperado, Mary ajusta-se equilibrada aos movimentos dessa realidade em tresloucada – e nem um pouco bachiana – fuga."

 

"Voto e privacidade na ‘Casa’ do SBT", copyright O Estado de S. Paulo, 2/12/01

"Programa não é pior que seu rival, ‘No Limite’, agora destronado do posto de fenômeno

Quando a Rede Globo comemorou o sucesso de No Limite, no ano passado, repórteres e comentaristas de todo o País apontaram a violência a que eram submetidos os participantes: dieta de poucas calorias, alimentos asquerosos, tarefas extenuantes, etc.

Numa reportagem do Estado, o professor de filosofia da Universidade de São Paulo Renato Janine Ribeiro apontou ‘como pode ser assustadora a democracia quando dela só temos a forma, isto é, a decisão pelo voto, sem o conteúdo, sem o que lhe dá vida, isto é, o respeito intenso ao outro’, ao comentar o processo de eliminação dos concorrentes.

Casa dos Artistas, do SBT, é um programa da família de No Limite, o reality show, uma fórmula que pode ser resumida na invasão da privacidade de um grupo de pessoas, durante um determinado tempo, aliada a um processo eleitoral para que o próprio grupo, aos poucos, se desmonte (pelo menos nos casos de maior sucesso, até o momento). A identidade entre os dois programas provocou críticas semelhantes, nem sempre com a devida nuance. Se não se pode dar o rótulo de ‘programa democrático’ para Casa dos Artistas, talvez faça algum sentido apontar diferenças – que levam à conclusão de que a ideologia por trás do programa é menos autoritária que a de seu rival da Globo.

Primeiramente, Casa dos Artistas não exige de seus participantes nenhuma capacidade física especial – nem práticas alimentares enjoativas. E o nível de conforto da casa está muitíssimo acima da média da realidade brasileira.

Se compararmos os programas com presídios, poderia-se dizer (aproveitando-se do fato de No Limite 3, agora no ar, ser filmado em Marajó) que o da Globo é uma ilha de degredo, enquanto a Casa dos Artistas é uma prisão especial.

O fato de os participantes serem subcelebridades também ameniza o tom dramático: a disputa, na realidade, nem é tanto pelo prêmio, mas pela presença no vídeo. Derrotar os demais concorrentes não é mais importante que demonstrar simpatia – e o sucesso de vendas do disco de Supla é o melhor indicativo disso.

Por último, e talvez mais importante, a votação na Casa dos Artistas não é exatamente igual à eliminação, como ocorre em No Limite. Isso porque, no domingo seguinte, o escolhido para deixar a Casa reaparece, conversa com os outros participantes, manda beijos, abraços, arrependimentos, notícias.

Continua participando do programa, apenas sai do jogo. Assim, chamar Casa dos Artistas de gincana é mais preciso do que utilizar essas mesmas palavras para No Limite.

Claro que nenhum dos dois programas pode ser chamado de construtivo, que nenhum dos dois é uma celebração de humanismo, que nenhum dos dois parece ajudar a reforçar ideais de solidariedade e liberdade. Mas, numa cidade repleta de câmaras como São Paulo, que fiscalizam de infrações no trânsito a entrada de visitantes nos prédios, como se queixar do fato de Supla e Bárbara terem de ‘construir’ um quarto privativo com varaus e cobertores? O grande mal na Casa dos Artistas é o fato de o programa reforçar a ideologia de um mundo praticamente sem espaço para o privado. Seja como for, foi a Globo, com No Limite, quem abriu a porteira – por onde Silvio Santos faz passar sua boiada."

 

"As privacidades invasivas", copyright Folha de S. Paulo, 2/12/01

"Se a ética de imprensa fosse uma fábula infantil, e às vezes a gente tem a sensação de que é, eu poderia começar a escrever esta coluna com a seguinte expressão: ‘Era uma vez a invasão de privacidade’. Então eu contaria a breve historieta de um vício antigo, que acontecia ‘há muitos e muitos anos’, naquele ‘reino distante’ do jornalismo apelativo, e que consistia em espionar o quintal com piscina das atrizes de Hollywood, em escutar conversas picantes pela extensão do telefone, em perguntar para a noiva de um príncipe qualquer se ela dorme abraçada a um urso de pelúcia. Invasão de privacidade era isso. Era publicar fotos de Jackeline Onassis nua, em preto e branco, sem nitidez nenhuma, segurando uma toalha branca. Era uma travessura inocente, ainda que mortal. E Lady Di jaz na condição de mártir da curiosidade pública. E nem além do cemitério Lady Di encontrou refúgio; seu corpo se desfez mas a sua intimidade jamais descansou em paz.

Agora: se a ética de imprensa fosse um filme de terror, e às vezes a gente tem a sensação de que é, este pequeno artigo iria remexer o cadáver liquefeito da invasão de privacidade. O que restou dele? Já que estamos num filme de terror, é lícito que se diga: restaram o mau cheiro e uma lápide com seu nome ali gravado, em mármore imundo. Mais nada. Não existem mais as esferas íntimas indevassáveis. A própria idéia de privacidade é uma idéia defunta. Foi tornada defunta pela civilização da imagem e pelo primado da TV. Já não há um segredo de alcova que, uma vez revelado, derrube um governo. Já não há uma adolescente que core quando seu sutiã se deixa ver num outdoor ou num programa de horário nobre. A propósito, já não faz sentido se falar em ‘invadir’ a privacidade de alguém, pois toda ‘invasão’, nessa matéria, além de consentida, é cobiçada, almejada, implorada pelos donos da suposta privacidade. O problema, atualmente, é o oposto: as privacidades alheias é que nos invadem, nos tomam de assalto, chovem sobre nós feito os sapos mortos do filme ‘Magnólia’.

Há quem se espante com a indústria das intimidades nos auditórios, nos programas de fofoca, no telejornalismo. Ora, espantar-se por quê? A intimidade é isso mesmo, um bem de consumo. As celebridades se mostram na cozinha, no banheiro, na cama, no confessionário, dissecam-se numa linha de montagem. No instante do sexo, no instante da morte. O câncer dos famosos consome-os em rede nacional. Tomografias computadorizadas, ecocardiogramas e testes de DNA elevam os índices de audiência. A intimidade religiosa se escancara numa compulsão furiosa, a um ponto tal que rezar um terço na TV insinua-se como uma prática obscena, quase como um striptease do espírito. A TV é a feira furiosa das palpitações mais recônditas. Genitálias voadoras se chocam em pleno ar com santinhos e amuletos. A glória de todos está em devassar-se, tanto na alma quanto no corpo. O prazer do telespectador está em deglutir o que se desnuda diante de si. Os olhos têm dentes.

Até dentro de casa, para consumo doméstico, a intimidade é mera encenação que imita a vida das celebridades. Basta ver as cerimônias de casamento. Já não se casa mais diante de Deus, nem do padre, nem da sociedade. Casa-se, como num filme, diante das luzes do cinegrafista contratado. Os padrinhos choram aos solavancos quando a câmera chega perto e, tão logo ela se afasta, põem-se a fazer sinal para o filho que está na primeira fila buscar o carro no estacionamento. O espaço íntimo já não é aquilo que está protegido do mundo exterior; é apenas um teatro ridículo.

Antes, o desafio era solicitar às câmeras que respeitassem a privacidade alheia. Hoje, o desafio é tirar da frente das câmeras o lixão das intimidades oferecidas, que mal pipocam e já viram detrito. Somos seres invadidos pelas privacidades ‘prêt-à-porter’."