Em grande parte, as argumentações, pistas e interlocuções aqui apresentadas têm como ponto de partida algumas idéias do ensaísta, escritor e professor universitário Silviano Santiago que, em entrevista para o caderno ‘Pensar’ do jornal Estado de Minas, tempos atrás, ao ser perguntado pelo também escritor e jornalista Carlos Herculano Lopes se via alguma transgressão na literatura brasileira atual, afirmou o seguinte:
‘Está acontecendo uma coisa que por um lado é muito positiva e, por outro, discutível. Houve um desbloqueio da noção da literatura, daquela grande literatura do século 19, e isso se deu em função do mercado. Hoje, quase não se fala mais em literatura, mas em produção textual. E essa produção, atualmente, está muito variada, como a que se refere à questão das minorias, por exemplo, onde a transgressão é menos formal e se dá mais no plano do que tradicionalmente se chamava de conteúdo. Exemplo: hoje temos uma literatura negra interessantíssima, uma outra que fala da questão indígena, dos gays, das lésbicas e assim por diante. Tudo isso é uma literatura com uma vertente popular muito forte, sem que seja necessária aquela outra, com L maiúsculo. Nisso a música popular também se enquadra. Scripts de filmes, que ninguém julgava como literatura, hoje ganham força. Outro dia li o Deus e o Diabo na Terra do Sol e só então me dei conta de que aquilo é um romance maravilhoso. Existem ainda as peças de teatro e, mais recentemente, os blogs, a literatura infanto-juvenil, e assim por diante. Então, esse desbloqueio da noção de literatura é fascinante.’
O reino da pluralidade
Carlos Herculano Lopes insiste: e o problema?
‘É o da qualidade, que infelizmente não tem sido bem resolvido pelos teóricos. O romance e o conto continuam fortes, mas hoje já não são mais imbatíveis. Basta ver que as edições estão cada vez menores. Acho que estamos passando por uma fase em que teremos também de dialogar com as formas canônicas do saber, como a filosofia, a história, a sociologia, pois só assim iremos perceber que a literatura é um diálogo extremamente rico.’
Num desdobramento das palavras de Santiago, chama a atenção na contemporaneidade a intertextualidade, as várias interfaces e uma constatação: um contexto dinâmico, em que pequenas e recentes editoras espalhadas pelo Brasil afora – além dos portais, sites e blogs na internet – incrementam a publicação de uma vasta gama de textos e autores de qualidade, poucos conhecidos, analisados e divulgados pelas mídias hegemônicas. Por outro lado, observa-se também um aumento do número de revistas impressas e virtuais especializadas na divulgação da literatura, teatro, música e artes plásticas, bem como os cadernos semanais culturais e literários nos jornais diários e os antigos suplementos literários já existentes.
Acompanham, do mesmo modo, vários projetos comunitários de bibliotecas, boas adaptações de obras brasileiras para o cinema e a TV e um contínuo fomento à divulgação dos livros, realizado por ONGs, institutos e algumas universidades preocupadas com as questões sociais. É este reino, o da pluralidade, que espreita o alcance de um mercado mais amplo, um mercado que realmente torne público a leitura e a literatura em terras brasileiras. Principalmente, a literatura escrita por autores nacionais.
O livro: caro e dispensável
Entretanto, dentro desta inigualável variedade de publicações, em seus diversos suportes e veículos, reina em compasso de espera – desde que me entendo por gente, sempre escuto isso – a velha questão abordada de modo objetivo em artigo de 2004 – ‘Literatura na Escola’, no site Universia – pela professora Nelly Carvalho (Departamento de Letras da UFPE – Universidade Federal de Pernambuco):
‘A chance de integração cultural para um jovem é estudar a literatura do país. O que acontecerá nas universidades, se não se adquirirem, no secundário, os rudimentos de literatura?’
A pergunta vem a cabo na tentativa de refletir e apontar algumas constatações que são freios no alargamento de um mercado consumidor de livros e da literatura. Um dos fatores que emperram esta expansão, como bem observa a maioria das pessoas, ainda está na questão educacional. Aqui parte da tentativa de uma resposta para aumentar o nível de qualidade e formação de leitores reflexivos e críticos passa pelo enfrentamento da questão da melhoria da qualidade dos ensinos fundamental e médio como motivação para a criação literária. Uma questão leva a outra, não há como negar. Como também não há como negar a pífia parcela do orçamento da República Federativa do Brasil destinado à educação.
Alguns argumentam que falta uma política cultural objetiva e realista por parte dos governos pós-ditadura, especialmente voltada para a questão do livro didático e da produção literária. Já existem algumas bolsas de criação literária para quem está no ramo, cujos critérios para escolha dos contemplados são bastante discutíveis, em detrimento das várias regiões do país. Ademais, como é de conhecimento de todos, o livro no Brasil é caro e objeto dispensável na hora de incrementar o bolo econômico.
Abrindo espaço para os mais novos
Outros, igualmente, altercam com o velho discurso de que a culpa é da televisão, como fator que enfraquece a leitura. Ou a alegação de que grande parte dos jornais, revistas, portais, sites e blogs nas feituras de suas produções textuais, no corre-corre do cotidiano, criam subprodutos substitutivos da leitura integral dos livros – resumos de obras, resenhas facilitadoras, críticas descompromissadas, viciadas e marqueteiras ligadas às grandes editoras, ensaios redutores etc., ajudando pouco na informação – ou informando mal –, formação e estímulo de um público cativo e em potencial, especialmente para quem está tomando os primeiros contatos com a literatura.
Ou ainda no uso discrepantes de autores estrangeiros nos ensinos fundamental e médio. Ou nos diálogos, interfaces e estudos de literatura comparada, em que os autores estrangeiros estão presentes em número considerável. Ou na falta de incentivos de determinados autores nacionais ‘consagrados’, pelo farto espaço que usufruem na mídia e a força que têm junto ao público em geral. Boa parte destes autores prefere os canônicos, ou sequer leram algum outro autor contemporâneo.
Até hoje, não entendo o receio de parcela destes ‘consagrados’ de falar de novos e bons autores, que estão no limbo. Será que eles vêem estes novos escritores como concorrentes em potencial!? Ou seria também um outro tipo de ‘discurso’ camuflado pelos interesses das grandes editoras!? As quais, na sua maioria, através de campanhas intensas de marketing e suas publicidades hiperbólicas, ofertam aquilo que dá retorno, aquilo que consideram ‘qualificável’ e vendável. Aqui, a Lei do Mercado – a oferta cria a sua própria demanda – dita a questão da rentabilidade: não esqueçamos que vivemos num mundo capitalista e suas escolhas ‘dirigidas’. Mas, ainda bem que existem exceções entre os autores ‘consagrados’. Receberam a mão quando começaram, e estendem os braços, abrindo espaços para os mais novos.
Incômodos e miopias
Ou, como afirma de modo enfático Santiago na mesma entrevista: ‘A boa literatura incomoda. Queiramos ou não, ela traz em si isso que hoje eu acho um pouco ridículo, mas que também não podemos jogar na sarjeta, a questão da qualidade. E o brasileiro, de certa forma, nunca soube trabalhar bem esta questão. É como se tivesse um complexo de inferioridade em relação àquilo que lhe é apresentado como bom. Então, ele só passa a aceitá-lo quando esse algo de qualidade se torna canônico. Eu acho isso muito estranho no temperamento do intelectual brasileiro. O caso clássico é o de Guimarães Rosa. Quando ele publica Grande Sertão Veredas, em 1956, Ferreira Gullar disse que não tinha conseguido passar das primeiras 40 páginas, pois aquele era um livro para filólogos.’
Emerge aqui a questão do tempo. Tempo de aceitação, firmamento e maturação de determinados escritores, de acordo com as predileções, visões acadêmicas e da mídia, que ditam os agendamentos do mercado. Como também vêm à tona os incômodos e miopias que rondam as salas de aulas e algumas exclusões impostas por uma excessiva publicidade de quem não precisa, não merece. Primeiro pela ‘qualidade’ da escrita capsulada pelas editoras de grande porte e suas linhas editoriais. Segundo, ainda pelo grande desprezo de grande maioria das bancas acadêmicas pelos autores novos e de qualidade.
Desejos de mudanças
O reflexo disso tudo está nas salas de aulas dos ciclos formadores – primeiro e segundo graus –, nos quais os professores carecem de mais reflexão no diálogo da literatura produzida hoje – os novos – com os autores canônicos – os antigos. Essa ponte pedagógica deve ser feita com cuidado e ousadia. Ela passa pelas academias, universidades, escolas, mídia, escritores e o próprio mercado, se é que todos queiram realmente alargar os espaços da leitura em interlocuções mais firmes e arrojadas.
Valorizar os bons escritores contemporâneos da literatura com as suas afinidades de cada região, onde passam/passaram parte de suas vidas, ou livros temáticos e segmentados de acordo com os seus públicos-alvos – livros com qualidade – é um dos princípios para integrar, formar uma demanda e fomentar um tipo de inclusão em que os novos possam existir sem serem ofuscados pelos antigos. Vislumbrando horizontes de comunicação, leitura e reflexão de um tipo de cultura educacional que cria possibilidades e esforços para que algumas rupturas aconteçam e revigorem os desejos de mudanças.
Em tempo: vale conferir o portal Literafro, cujo intuito é divulgar e estimular a reflexão sobre a produção literária e as histórias dos escritores brasileiros afrodescentes. Vai de Abdias do Nascimento, passando por Cruz e Souza, Edimilson de Almeida Pereira, Lima Barreto… até chegar em Waldemar Eusébio Pereira. São mais de 100 nomes. Uma bela iniciativa que contempla os novos e os antigos.
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Jornalista, pesquisador e ensaísta, autor de Pavios Curtos (Anomelivros, BH, MG, 2004) e co-autor de O Achamento de Portugal (Fundação Camões, Lisboa, Portugal e Anomelivros, 2005) e Pequenos Milagres e Outras Histórias (Grupo Galpão, Editoras Autêntica e PUC-Minas, BH, MG, 2007); Belo Horizonte, MG