Saturday, 30 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Para as férias de verão

LEITURAS AO SOL

Antonio Brasil (*)

Dizem que quem assiste televisão não costuma ler. Mas também dizem que intelectual que se preza não vai à praia ou gosta de TV. Apreciar a programação da telinha e ler livros seriam práticas totalmente incompatíveis. Ainda mais se forem livros sobre… televisão. É verdade que esses livros costumam ser muito chatos ao insistir em bater sempre na mesma tecla. Televisão é um horror, faz mal à saúde, destrói a infância, induz à violência, vicia o jovem, perverte o velho mas, por algum motivo, ainda não muito claro, todo mundo assiste. Na discussão sobre os efeitos da TV, somos constantemente inundados com muita opinião e poucos dados.

De forma específica, os livros que falam sobre o segmento de telejornalismo costumam ser de interesse ainda mais restrito. Eles tendem a serem lidos somente pelos especialistas e estudantes. Profissional de televisão também não lê muito e alega estar sempre muito ocupado. Mas confesso que tive uma grata surpresa com a leitura recente de dois livros sobre telejornalismo.

E já que estamos em tempo de férias de verão, talvez valha a indicação para alguns ou, simplesmente, a sugestão ou a alternativa, para que outros evitem assistir tanta TV. A título de explicação, nunca é demais lembrar que, apesar do seu potencial, a televisão certamente não foi inventada para ser o único meio de informação e diversão de tantas pessoas no mundo e, ainda mais, no Brasil. Televisão deveria ser somente mais uma opção entre várias atividades possíveis. Mas dados recentes confirmam: os televisores de uma residência comum ficam ligados durante 7 ou 8 horas em média, e uma criança passa mais tempo na frente da TV do que em sala de aula. Nenhuma surpresa!

Decepções e algumas glórias

Mas para quem quiser saber mais sobre o maravilhoso mundo dos noticiários de TV aí vão as dicas. A primeira é de um livro lançado recentemente no mercado americano, A Few Marbles Left, de John Corcoran, Ed. Bonus Books. Apesar do jogo de palavras, o título poderia ser traduzido como "Ainda existe alguma sanidade" ou qualquer coisa no gênero. O estilo agressivo e sarcástico do autor se revela já na introdução: "Um closeup no telejornalismo e em toda a sua agonizante loucura e até mesmo nos seus ocasionais momentos de glória".

A outra dica é uma obra escrita em 1992 por um renomado educador e crítico feroz da televisão, Neil Postman. O livro é resultado de uma parceria com Steve Powers, outro experiente jornalista de TV, e tem título ambicioso: How to watch TV News ? "Como assistir aos telejornais", Penguin Books.

Apesar de ambos tratarem do mesmo tema ? o atual modelo de telejornalismo americano ?, são livros completamente diferentes em seus formatos e conteúdos. De certa maneira, essas diferenças se complementam. O contraste dos enfoques reflete, de maneira emblemática, a dificuldade de lidar friamente e de maneira isenta com o principal meio de informação da maior parte da população do planeta. Televisão apela sempre às emoções. Emociona em paixões até mesmo os jornalistas ou pesquisadores mais circunspectos. Estudar seriamente televisão não é pouca responsabilidade, e deveria merecer menos desprezo, mais pesquisas científicas e menos "achismos".

Então, vejamos. A few marbles left foi escrito por um velho "dinossauro" ? um daqueles inúmeros profissionais que nunca chegaram a ser estrelas de primeira grandeza no "circo do telejornalismo" mas que, mesmo assim, viram muito e têm ainda mais para contar. John Corcoran é um bom contador de histórias. Sua carreira está repleta de "preciosidades" mas, assim como muitos dos nossos colegas, sua trajetória profissional também é plena de "decepções e algumas glórias". Com muita ironia e realismo, ele confessa, logo na introdução: "Só mesmo alguém que já tenha se aposentado e jamais pretenda voltar a trabalhar em TV poderia ter escrito este livro". Que inveja!

Muita tecnologia, pouco conteúdo

E isso é só o começo. Crítico mordaz do telejornalismo atual americano, o autor não poupa ninguém, nem ele mesmo. Suas histórias descrevem uma coleção de erros inesquecíveis e testemunhos sensíveis de alguns momentos dramáticos de seu cotidiano. Ele não perde uma oportunidade de mostrar, em detalhes, alguns dos momentos mais ridículos mas, ao mesmo tempo, mais engraçados do dia-a-dia da prática do telejornalismo. Algumas dessas histórias impressionam pela recorrência. Ficamos surpresos em reconhecer passagens comuns na vida dos profissionais americanos e brasileiros.

Com um texto apurado e coloquial ? produto de muitos anos escrevendo para telejornalismo, ou seja, escrevendo do jeito que se fala ? o autor investe num humor cáustico e escrachado, quase negro. Cheguei mesmo a mostrar algumas das 75 crônicas a alguns colegas e, como reação, arranquei altas risadas. Um verdadeiro "casseta e planeta" do telejornalismo americano. Mas entre o relato minucioso de fatos importantes, velhas anedotas e ficção bem-humorada, ele se utiliza de todos os recursos típicos da profissão para criticar o telejornalismo de hoje. Assim como a televisão, ele apela sempre para a emoção e despreza a razão. Os fatos são mencionados como acessórios a suas críticas.

Logo no início, John Corcoran descreve o que seria "o mais curto boletim noticioso da história". Uma coletânea hilariante de temas-clichês do nosso telejornalismo, escritos de forma ainda mais previsível. Cada assunto tratado carrega o seu próprio vocabulário tão desgastado mas sempre obrigatório. Tudo para dizer que, surpreendentemente, naquele dia, absolutamente nada que sempre acontece aconteceu. Perdão! O mundo inteiro estava normal e o apresentador, então, recomendava a todos os telespectadores que desligassem os seus aparelhos e procurassem fazer alguma coisa de útil das suas vidas, tais como… ler um bom livro! Pausa para os comerciais ou para o próximo capítulo. O livro vale mesmo a pena, mas vou logo avisando, é muito americano!

O mais interessante, no entanto, é a insistência do autor em criticar os novos rumos do telejornalismo pós-moderno (sic) ? muita tecnologia, apuro no formato e pouco conteúdo ? tudo com numerosos exemplos locais. Os noticiários de TV teriam seguido por um verdadeiro "beco sem saída" ? excesso de matérias sensacionalistas que priorizam as emoções, a audiência ? em vez de contemplar espaço e tempo maiores para os verdadeiros objetivos jornalísticos. É claro que nunca saberemos exatamente quais são esses objetivos, mas algumas coisas não se explicam. De qualquer forma, tanto lá como cá os problemas com o telejornalismo, sem dúvida, se assemelham muito.

Baixa percepção

Hoje, o velho John Corcoran ? suas fotos na contracapa, que mostram como ele era no início da carreira e como ele está hoje, são hilárias, e revelam o profissional que ainda sabe lidar com as imagens ? se dedica a ser a voz da consciência que ainda resta no jornalismo de televisão americano. Os artigos do livro são provenientes de um site de monitoramento da mídia [ver remissão abaixo], onde ele segue investindo numa grande mobilização profissional. Ele procura atingir, pela rede, "os corações e as mentes" daqueles que ainda não desistiram de "fazer" uma boa televisão. Só pensar e escrever ajuda, mas não basta. O telejornalismo em crise de identidade, com índices decrescentes de audiência, competição inevitável com a internet, cortes de verbas cruéis e envelhecimento acelerado de seu público precisa urgentemente de renovação, de novas idéias e livros como esses insistem em apontar caminhos.

Já a segunda indicação, How to watch TV news, segue
por uma outra vertente. É um livro sério. Nada de
"tiradas" engraçadas ou pérolas do "humor
negro jornalístico". O livro segue dissecando a prática
dos noticiários de televisão em seus mínimos
detalhes num trabalho acadêmico consistente. Mas também
não se trata de mais um manual para "fazer" telejornalismo.
Muito pelo contrário. É um guia para assistir aos
telejornais de forma mais crítica. Um alerta contra a passividade
dos telespectadores que tendem a estar sempre insatisfeitos, inertes
e não sabem por quê? Mistérios da televisão.
O livro também é uma orientação para
todos aqueles que ainda se preocupam com a extensão do poder
e com os verdadeiros objetivos dos telejornais. Sem dúvida,
é muito bem escrito, repleto de dados, informações
e denúncias sobre essas "distorções e
manipulações" praticadas pelos donos do telejornalismo
americano. Não se trata de mais um trabalho simplista ou
panfletário, produto da velha "teoria conspiratória".
É a incursão de um especialista, herdeiro direto das
teorias de Marshall McLuhan no meio televisivo e nos bastidores
da produção dos noticiários.

O resultado dessa pesquisa aponta na direção das novas práticas editoriais do telejornalismo americano como responsáveis pelo nível cada vez mais baixo de percepção política e social do público em geral. Tudo sempre muito bem fundamentado e explicado, mas com uma parcela considerável de opiniões pessoais que refletem uma posição ideológica bem definida. Longe da isenção e do distanciamento acadêmicos tradicionais, os autores se colocam abertamente contra a corrente e o status quo vigente no telejornalismo americano contemporâneo. Ou seria pós-moderno? Tanto faz!

Diversos e complementares

Desde o seu livro de maior sucesso, o paradigmático Divertindo-nos até a morte, o professor Neil Postman, da Universidade de Nova York, se dedica a uma verdadeira cruzada contra os caminhos tomados pela televisão de seu país e em defesa de um público sedado pelo poder hipnotizante da televisão. Mesmo a reboque de outros autores, mas refinando e atualizando os dados particulares, temos muito a aprender com os erros e acertos dos "estudos culturais" americanos. Os novo herdeiros do velho McLuhan continuam engajados numa luta política e insistem em investigar tanto os meios como as mensagens.

Todas as pesquisas recentes confirmam que, apesar das origens comuns, as emissoras de TV dos Estados Unidos e do Brasil seguem modelos distintos, mas se aproximam muito no telejornalismo. Um bom livro sobre TV deveria saber conciliar a informação relevante e a denúncia apaixonada com uma certa dose de bom humor, mas sempre de uma forma bem objetiva. Desse jeito, alguns autores conseguiriam o que seria considerado impossível: seduzir com a leitura o mesmo o público condenado a gostar somente de televisão. E é o próprio Postman que adverte: "Qualquer pessoa que dispense os meios impressos [infelizmente o livro em questão é anterior à internet] e que confie somente nos telejornais como a sua principal fonte de informações e notícias corre o sério risco de se ver não só mal informado, mas ainda mais sujeito à manipulação. Ele, com certeza, se tornaria presa fácil para os novos agentes políticos e econômicos de plantão".

Insisto. Esses dois livros tão diversos, em verdade, se
complementam. Demonstram que bom humor e pesquisas bem fundamentadas
podem caminhar juntos, por que não? A tentativa de buscar
uma linguagem criativa para os bons livros que não afugente
a maioria televisiva é um caminho a ser mais valorizado.
A televisão séria e o público insatisfeito
têm muito a ganhar. Agora, vamos lá. Basta! Desliga
esse computador, a TV também, e vá ler um bom livro!

(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de TV e professor de Telejornalismo da Uerj, doutorando em Ciência da Informação do Ibict/UFRJ

Veja também

Site de John Corcoran