Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A voz e o silêncio de P.B

PIERRE BOURDIEU (1930-2002)

Ivo Lucchesi (*)

No decorrer de uma década, o pensamento francês e, por extensão a cultura ocidental, perde quatro de seus emblemáticos nomes: Félix Guattari, Guy Debord, Gilles Deleuze e, agora, o franco-argelino Pierre Bourdieu.

Ousaria afirmar que, a ter de destacar o profundo vazio inscrito pelo falecimento de Bourdieu, sua ausência se reveste de maior impacto e gravidade. Não se trata de uma preferência subjetiva, menos ainda por ser a perda mais recente. A explicação sobre o significado a envolver a saída de cena de Bourdieu constitui-se na razão maior deste artigo.

O intelectual interventor

De um modo ou de outro, os demais citados viveram basicamente para as obras vigorosas que escreveram. Essas permanecem iluminando e provocando o pensamento de quem a elas deseje recorrer, situação na qual também se inclui Bourdieu. Todavia, a ele algo de especial se foi somando ao longo da vida: o papel do intelectual interventor. Nesse sentido (e não em outros), Bourdieu se mostrou legítimo herdeiro do exemplo deixado por Sartre.

Outro traço peculiar fazia pulsar a presença interventora em Bourdieu. Nascido, como Albert Camus, na Argélia, o teórico jamais apagou em si as marcas de um ser ramificado nas vicissitudes do Terceiro Mundo. Como tal, conheceu os efeitos ambíguos da colonização. Seguramente, dessa origem filiada aos traumas de um cenário de pobreza e de opressão, tenha emanado seu intransferível compromisso com o discurso e a ação combativos, aspecto que, nas duas últimas décadas, Bourdieu ainda mais intensificara, deixando-o quase como voz solitária da resistência, na contramão da avalanche imposta pela Nova Ordem Mundial, ora na construção de seus textos, ora na ocupação dos espaços públicos possíveis, tanto na condição de entrevistado quanto na firmeza de seus discursos como membro do Parlamento europeu. Enfim, Bourdieu sempre esteve associado ao perfil da inteligência incômoda, intervindo nos limites alcançáveis por uma voz inquieta e insubmissa, a exemplo do que, no continente americano, Noam Chomsky é outra referência.

O intelectual da obra-mosaico

Em sua trajetória marcada, acima de tudo, pela ética retilínea, o autor de As regras da arte soube, como poucos, ao longo de seus 40 livros, construir um pensamento sinuoso, multifacetado, graças à versatilidade dos temas, razão pela qual seu nome não é confinável ao rótulo, por vezes estreito, de sociólogo. Na verdade, Pierre Bourdieu está consagrado e consignado na linhagem dos pensadores.

Abordagens incisivas sobre política, arte, economia, relações conflitivas entre cultura e mercado, e, mais recentemente, a ferocidade crítica contra a quase hegemônica cumplicidade a envolver aparelhos midiáticos e corporações do capital tornam o conjunto da obra um mosaico reflexivo acerca dos descaminhos e impasses da tensa hipermodernidade. Seu discurso é isento de evasivas. Vai direto à ferida. Seu estilo de escrita não embala o leitor. Impulsiona-o à reatividade. Não seduz pelo efeito de uma frase. Trata-se de um pensamento movido pela secura da razão, na justa medida do que pretende atingir e problematizar. É isto que o torna incômodo e interventor. Seleciono, a título de ilustração, uma frase de Bourdieu, colhida numa recente entrevista publicada no caderno Prosa e verso (O Globo, 12/1/02): "Berlusconi é um fascistóide, e a verdade é que o neoliberalismo só pretende conservar do Estado o exército, a polícia e as prisões", ou seja, corte a frio, sem direito a anestésico.

Em síntese, o ideário que norteia o autor de O poder simbólico prima por não fazer concessões nem agrados, menos ainda investiu em formulações exóticas com as quais pudesse faturar notoriedade no marketing cultural. Seus alvos sempre foram claros, como inequívocas foram as posições, o que o deixou, por muito tempo, à sombra dos holofotes.

O intelectual e a mídia

A luz midiática ? por si tímida ao focar a figura do intelectual ? sempre foi mais generosa com outros intelectuais contemporâneos do autor de Sobre a televisão, a exemplo de Umberto Eco, Jean Baudrillard, Alain Touraine, Paul Virilio, Michel Maffesoli (citemos apenas europeus). Sobre esses, sem demérito para as respectivas obras, paira uma atmosfera mais midiaticamente digerível. Sobre Bourdieu, dado o tom de seus enfoques, o tratamento midiático sempre realçou o confronto, sem esconder, entretanto, o desconforto, produto da própria exposição.

A diferença de tratamento e a quantidade de solicitações por parte da mídia oficial servem de indicativos do quanto o intelectual pode (ou não) ser assimilável e tolerado. No Brasil, principalmente, tal fato (o ostracismo do intelectual interventor) é quase infalível. Aliás, a mídia oficial tupiniquim tende a fixar dupla exigência ao intelectual: um discurso rentável e um figurino (ou modelito) esteticamente interessante. Na falta de um dos "ingredientes", é hábito privilegiar-se o segundo, ou seja, não se podendo reunir os dois requisitos, opta-se pelo falso intelectual. O charme se encarrega de sustentar a fragilidade reflexiva. A propósito, tal padrão é também extensivo à escrita, seja jornalística, seja acadêmica.

Enfim, a morte de Bourdieu impõe-lhe um silêncio irreversível. Fica, porém, a voz germinadora e disseminadora de ecos. Estes hão de dar continuidade, na esperança de que se multipliquem na qualidade e na quantidade necessárias ao embate inadiável, tão próximo quanto visível. A vida de Bourdieu deixou claro: de nada vale acusar o mal-estar, se unido não estiver à produção ativa do incômodo, sob pena de tudo transformar-se em mero registro de um lamento, de um ressentimento, ou, pior ainda, de inercial saudade. Obrigado, Pierre Bourdieu…

(*) Professor de Teoria da Comunicação, ensaísta, mestre em Literatura Comparada e doutorando em Teoria Literária pela UFRJ. Participante do programa Letras & Mídias, exibido mensalmente pela UTV.