Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tradição e originalidade

PIERRE BOURDIEU (1930-2002)

Giovandro Marcus Ferreira (*)

Pierre Bourdieu ocupa, com força e vigor, durante décadas, a cena do campo intelectual francês. Ele faz parte de uma linhagem de intelectuais preocupada na intervenção do debate público, que no passado teve como personagens intelectuais como Victor Hugo, Emile Zola, e mais recentemente, Jean-Paul Sartre e Michel Foucault. Uma forte herança do meio intelectual francês, marcada pela busca de s?attirer em várias frentes de combate. Sartre foi visto criticamente por Bourdieu como uma espécie de "intelectual total" e, no final dos anos 90, a respeitada revista francesa Magazine Littéraire dedicou um de seus números (o 369) a Bourdieu, intitulado "Pierre Bourdieu: intelectual dominante?".

A força simbólica de Bourdieu, primeiramente no meio acadêmico, tem como base sua produção teórica. Originário da Filosofia, estudante de Raymond Aron (ironicamente, uma espécie de antítese de Sartre), Bourdieu inicia sua carreira como professor na Argélia, antiga colônia francesa e, sob a influência desta região do Magreb, surgem suas primeiras publicações. Nos anos 60, torna-se professor da, então, Escola Prática de Altos Estudos, hoje, Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais.

Uma das contribuições mais destacadas de Bourdieu, no campo das ciências sociais, é a importância dada às estruturas simbólicas na leitura do mundo social, e a abrangência em usar sua teoria nos mais variados fronts: educação, cultura, arte, literatura, entre outros. O campo de produção simbólico suscita a relação de força entre os agentes, que por sua vez, leva à relação de sentido. Nesta perspectiva a violência simbólica é um tema central nos diversos estudos de Pierre Bourdieu.

Tal violência não é fruto da instrumentalização pura e simples de uma classe sobre a outra, mas ela é exercida através dos jogos engendrados pelos atores sociais. Aqui vemos uma originalidade em Bourdieu em relação a certas abordagens dualistas, que desassociavam as estruturas das ações dos indivíduos. Sua abordagem denominada por ele mesmo de "construtivismo estruturalista", explora uma outra vertente, que podemos associar aos trabalhos de Peter Berger e Thomas Luckmann, que enfatizavam que a sociedade é uma produção humana. A sociedade é uma realidade objetiva. O homem é uma produção social. Assim, Bourdieu analisa o mundo social através de um processo de causalidade circular que articula níveis diferentes da realidade separados precedentemente pela micro e a macro sociologia. Duas noções são bem exploradas nos seus trabalhos na articulações das duas instâncias que sustentam o mundo social: campos sociais e habitus. A relação entre estas duas instâncias faz com que as estruturas se tornem corpo, mas igualmente que o corpo se faz estrutura.

A partir desta perspectiva e armado com outros conceitos, como legitimidade, estratégia, classe social, interesse, capital simbólico, Bourdieu avança em vários domínios da sociedade, campos sociais, e faz seu combate sociológico. Entre os vários campos sociais analisados podemos destacar dois, o campo de produção intelectual (homo academicus) e o campo de produção jornalístico.

Refutando dogmas e mitos acerca daqueles que analisam a realidade, Bourdieu investe no sujeito da ciência como parte do objeto da ciência, afastando a ilusão de "intelectuais sem laços nem raízes", uma forte ideologia arraigada no mundo intelectual. Sua análise infiltra-se no interior da dinâmica acadêmica e busca caracterizá-la pelos interesses específicos (postos acadêmicos, contratos de edição, reconhecimentos e gratidões), na maioria das vezes imperceptíveis aos olhos daqueles que não fazem parte deste universo.

Bourdieu ressalta num olhar amplo sobre este campo que "os intelectuais são, enquanto detentores de capital cultural, uma fração (dominada) da classe dominante, e muitas de suas tomadas de posição, em matéria de política, por exemplo, devem à ambigüidade de sua posição de dominados entre os dominantes". Tal afirmação pode encontrar ricos estudos de caso, seja no Brasil, na França, na Rússia como na China. Esta ambígua relação de poder faz com que muitos intelectuais se apropriem da competência que extrapola seus limites de competência, fazendo apelo aos títulos escolares, num resgate similar aos títulos de nobreza de outrora, ou melhor, eles se tornam os títulos da nobreza de hoje, transformando-os, com freqüência, em passaporte para se tornarem a "Nobreza do Estado" contemporâneo. Esta apropriação é acompanhada por um outro tipo de usurpação, o que o torna uma autoridade acerca de temas que extrapolam a competência técnica de certos intelectuais. "Essa usurpação está no próprio da ambição do intelectual à moda antiga, presente em todas as frentes do pensamento, detentor de todas as respostas."

Nestes meandros, Bourdieu vai tecendo o jogo realizado pelo homo academicus e evidenciando o vai-e-vem de estrutura-corpo, possuído-possuidor, história-presente, relação de força-relação de sentido. Sua crítica se torna ainda mais tenaz quando ele visualiza certos intelectuais seduzidos, em suas produções supostamente científicas, por temas da moda: "Os que dão a impressão de dominar sua época são muitas vezes dominados por ela, terrivelmente datados, desaparecem com ela… Há alguma coisa mais patética na docilidade com que ?intelectuais livres? se apressam em adaptar suas dissertações aos temas obrigatórios do momento, como são hoje o desejo, o corpo ou a sedução? E nada é mais fúnebre que a leitura, vinte anos depois, desses exercícios impostos de concurso, que são reunidos, em um conjunto perfeito, nos números especiais das grandes revistas ?intelectuais?."

No jornalismo

Um outro campo social trabalhado por Bourdieu nos últimos anos foi o campo de produção jornalístico. A preocupação com este campo toma visibilidade pública na sua démarche a partir da publicação da revista que ele dirigiu por vários anos ? Actes de la recherche em Sciences Sociales ? de 1994, número 101/102, intitulada "A influência do jornalismo". Mais tarde ele apresenta duas emissões televisivas em forma de aulas magistrais, que vão dar origem à publicação do livro "Sobre a televisão". Neste mesmo tempo, o grupo de pesquisadores que gravita em torno dele aplica conceitos de sua sociologia para pensar uma sociologia das práticas jornalísticas (Alain Accardo), a relação entre meios de comunicação, política e opinião pública (Patrick Champagne), ou mesmo a formação de centros e escolas de Jornalismo, como a ESJ ? Escola Superior de Jornalismo de Lille.

No campo de produção jornalístico, a contribuição maior de Bourdieu será a importância adquirida no espaço público da discussão acerca dos meios de comunicação em geral, da televisão e da produção jornalística em particular. Ele faz uma ressalva na introdução do livro "Sobre a televisão": que a abordagem ali realizada é marcada por "simplificações e aproximações". Apesar da carência de produzir novos conceitos neste campo específico, (pois ele articula sua teoria dos campos sociais com abordagens sociológicas que têm história no estudo do jornalismo, como newsmaking, ou então certos postulados já levantados por abordagens sobre os meios de comunicação pelo viés da crítica à sociedade de massa), Bourdieu soube aproveitar seu espaço acadêmico e mediático para lançar a discussão em torno da produção jornalística, demonstrando como um instrumento de democracia se converte num instrumento de opressão simbólica.

O alerta acerca do papel dos meios de comunicação em geral e da atividade jornalística em particular visa o bom funcionamento das esferas culturais, da democracia e da política. Numa de suas intervenções dirigidas aos responsáveis dos grandes grupos mediáticos, intitulada "Questões aos verdadeiros senhores do mundo", ele afirma: "Este poder simbólico que, nas mais diferentes sociedades era distinto do poder político ou econômico, está hoje reunido nas mãos das mesmas pessoas, que detêm o controle dos grandes grupos de comunicação, isto é, do conjunto dos instrumentos de produção e difusão dos bens culturais".

No tocante à produção jornalística, Pierre Bourdieu busca caracterizar as propriedades do campo jornalístico (o furo, a uniformidade da oferta, o tempo de produção, a relação entre os profissionais), os efeitos deste campo, até chegar à questão da ética jornalística. A indagação acerca da ética busca ultrapassar os velhos preceitos estóicos (sobrecarregando pessoas de responsabilidades desmedidas) para propor a construção de ambientes propícios para a efetivação de ações consideradas éticas. Tais situações devem levar as ações virtuosas, como dizia Aristóteles, a uma prática de aisance. Caracterizando a falta de autonomia como uma das principais propriedades do campo de produção jornalístico (fruto da interferência das fontes, dos anunciantes e da política), Bourdieu propõe criar um curto-circuito através da "lei do meio", a crítica mútua que se pratica nos vários campos de produção cultural e sobre a qual repousam os diferentes progressos da ciência, da literatura, da arte.

Com uma espécie de sistema de críticas cruzadas, Bourdieu almeja nas suas análises que o coletivo dos jornalistas construa instâncias eficazes de julgamento crítico capazes de se opor às imposições das pesquisas de audiência, criando assim sua legitimidade específica. "Os jornais não publicam a quinta parte das informações que eles têm de seus concorrentes, e é muito raro que no meio jornalístico se engendrem polêmicas que, ao meu ver, fariam progredir a autonomia, e pelas quais se inventaria e se exercitaria uma verdadeira deontologia prática (e não teórica e programática)." Eis aqui um terreno que muito pode ser trabalhado!

Como salta aos olhos, Pierre Bourdieu sabia fustigar e provocar os diversos agentes dos campos sociais em questão. Esta sua atitude me faz retornar ao ponto de partida deste pequeno artigo, relacionando Bourdieu a uma certa linhagem intelectual francesa. Terminarei me apropriando de suas próprias palavras, quando ele prestou homenagens póstumas a Michel Foucault; agora, tais palavras servem para ilustrar e coroar seu percurso: "Ele sabia melhor do que ninguém que os jogos de verdade são jogos de poder, e que o poder e o privilégio, juntos, fazem parte de um mesmo esforço para descobrir a verdade dos poderes e dos privilégios…".

(*) Doutor em Ciências da Informação e professor de Teorias do Jornalismo na Facom, UFBa