Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Thomas Ferenczi

PIERRE BOURDIEU (1930-2002)

"Pierre Bourdieu, o sociólogo de todos os combates", copyright Le Monde, 24/2/02 ? tradução Marinilda Carvalho

O pesquisador e intelectual engajado contra o neoliberalismo morreu na noite de quarta-feira no Hospital de Saint-Antoine, em Paris, em conseqüência de um câncer.

Antigo professor do Collège de France, ao qual chegou em 1981, tinha 71 anos. Diretor de Estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), reuniu a sua volta uma escola sociológica cuja vitrine era a revista Actes de la recherche en sciences sociales, fundada em 1975. Para seus discípulos, sua teoria do mundo social constitui uma "revolução simbólica".

As controvérsias suscitadas pelas intervenções públicas de Pierre Bourdieu ao longo dos últimos anos às vezes obscureceram a imagem do homem largamente reconhecido como um dos grandes pensadores da sociedade contemporânea. Um de seus discípulos, Louis Pinto, lembrou há dois anos, no livro Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social [Editora FGV], como o trabalho do sociólogo representou "uma revolução simbólica", análoga às que encontramos em outras disciplinas, como a música, a pintura, a filosofia e a física.

O que Pierre Bourdieu trouxe à sociologia, explicou Louis Pinto, foi antes de tudo uma "maneira nova de ver o mundo social", emprestando "uma função maior às estruturas simbólicas". A educação, a cultura, a literatura, a arte, seus primeiros alvos de estudo, pertencem a este universo. Mas as mídias e a política, que Pierre Bourdieu transformou, no fim de sua vida, em seu principal campo de investigação, se aproximam igualmente desta visão. O que caracterizou de "campos de produção simbólica", segundo Louis Pinto, é o fato de que as "relações de força entre os agentes" só se apresentam na forma transfigurada e eufemizada de relações de sentidos". Dito de outra forma, a "violência simbólica", tema central dos trabalhos de Pierre Bourdieu, não se analisa como puro e simples instrumento a serviço da classe dominante, ela é exercida também no jogo dos atores sociais. É, sem dúvida, esta vontade de superar as "falsas antinomias" da tradição sociológica ? entre interpretação e explicação, entre estrutura e história, entre liberdade e determinismo, entre indivíduo e sociedade, entre subjetivismo e objetivismo ? que dá originalidade à sociologia de Pierre Bourdieu.

De Os herdeiros ? Os estudantes e a cultura, um de seus primeiros livros, publicado em 1964 com Jean-Claude Passeron, a Estruturas sociais na economia, em 2000, passando por A distinção, em 1979, e a obra coletiva A miséria do mundo [Editora Vozes], em 1993, para citar apenas alguns dos cerca de 25 livros que publicou, ele abriu um caminho de grande riqueza. Ao conceder a Bourdieu sua medalha de ouro em 1993, o CNRS [Centro Nacional de Pesquisa Científica] lhe rendeu justa homenagem. Pierre Bourdieu, considerou o CNRS, "restaurou a sociologia francesa, associando o rigor experimental à teoria, fundada sobre grande cultura em filosofia, antropologia e sociologia". Mas Pierre Bourdieu não era apenas um pesquisador excepcional, reconhecido por seus pares mundo afora; ele era também um intelectual preocupado em interferir no debate público, segundo a tradição francesa de Zola a Sartre. Ele lutou muito, nos anos 90, para dar grande visibilidade ao movimento social e encarnar o que chamava de "esquerda da esquerda", ou seja, uma esquerda que recusa os compromissos consentidos, segundo ele, pelo Partido Socialista.

"Dez anos de poder socialista resultaram em seu fim", nos disse em 1992, "na demolição da crença no Estado e na destruição do Estado-Previdência, efetivadas nos anos 70 em nome do liberalismo". Diante do silêncio dos políticos, ele apelou à mobilização dos intelectuais. "O que defendo", explicou na mesma entrevista, "é a possibilidade e a necessidade do intelectual crítico". E acrescentou: "Não há democracia efetiva sem um verdadeiro contrapoder crítico. O intelectual é um contrapoder, e de primeira grandeza."

Ao combate ao neoliberalismo sob todas as formas Pierre Bourdieu consagrou suas últimas forças. Ele se esforçou mais e mais para combinar a postura de sábio à de militante, colocando seu conhecimento científico a serviço de seu engajamento político.

"Fui instado pela lógica do meu trabalho", assinalou numa de suas últimas obras, (Contrafogos 2 ? Por um movimento social europeu) [Editora Jorje Zahar], a ultrapassar os limites que me impunha em nome de uma idéia de objetividade que me parece uma forma de censura". Ele se dizia preocupado em "tirar os sábios da cidade da sabedoria", a fim de oferecer sólidas bases teóricas àqueles que tentam compreender e mudar o mundo contemporâneo.

Esta luta pôs em xeque também as mídias, que Pierre Bourdieu julgava submissas a uma lógica comercial gritante e às quais reprovava por dar a palavra a "ensaístas tagarelas e incompetentes". Numa de suas últimas intervenções, em 1999, ele se dirigiu aos responsáveis pelos grandes grupos de comunicação. Em "Perguntas aos verdadeiros senhores do mundo", afirmou: "Este poder simbólico que, na maioria das sociedades, era diferente do poder político ou econômico, está hoje nas mãos das mesmas pessoas, que detêm o controle dos grandes grupos de comunicação, quer dizer, do conjunto dos instrumentos de produção e de difusão de bens culturais."

Ele se levantou contra a globalização, recusando a escolha entre a mundialização concebida como "submissão às leis de comércio" e ao reinado do "comercial", que é sempre "o contrário do que se entende mais ou menos universalmente por cultura", e a defesa das culturas nacionais ou "tal ou tal forma de nacionalismo ou localismo cultural". Distante destes "soberanistas", ele ao contrário pregava, incansavelmente, o universal.

Pronunciando-se pelo "movimento social europeu", como primeira etapa de um internacionalismo bem compreendido, defendia este ideal fiel a seu papel de intelectual crítico.

Defendia ao mesmo tempo sua concepção de sociologia tal como expôs, em 1982, em aula inaugural no Collège de France. "A sociologia não é um capítulo da mecânica, dizia, os campos sociais são campos de forças mas também campos de lutas para transformar ou conservar estes campos de forças". E acrescentou: "A relação prática ou pensada que os agentes mantêm com o jogo faz parte do jogo, e pode estar no princípio de sua transformação". Contra todos os que o acusavam de atribuir peso excessivo às estruturas e de se apoiar num determinismo desmobilizador, ele proclamava sua crença na liberdade do homem. Sua vida e sua obra estão aí como testemunhas desta forte convicção.

Dados biográficos

1930: nascimento em Denguin (Pyrénées-Atlantiques) em 1? de agosto, de pai funcionário. Estudou em Pau, depois em Paris (Louis-le-Grand e Escola Normal Superior). Graduado em Filosofia.

1955: estréia na carreira de professor, no liceu de Moulins, depois em faculdades de Argel, Paris e Lille.

A partir de 1964: diretor de Estudos da Escola Prática de Altos Estudos.

A partir de 1968: depois de pertencer à unidade de pesquisas dirigida por Raymond Aron, cria o Centro de Sociologia da Educação e da Cultura, laboratório associado ao CNRS, que dirigirá até 1988.

A partir de 1975: diretor da revista "Actes de la recherche en sciences sociales".

A partir de 1981: titular da cátedra de Sociologia do Collège de France.

1993: Medalha de ouro do CNRS.

1995: apóia os grevistas de dezembro contra o "plano econômico Juppé". A partir daí, assume posições políticas com freqüência, em textos publicados notadamente por sua editora, Líber/Raison d?Agir.

A partir de 1996: preside, em 24 de novembro, em Paris, os "états généraux du mouvement social" [debates em defesa da união das forças críticas e progressistas européias].

Obras principais

1958: Sociologie de l’Algérie (Sociologia da Argélia)

1963: Travail et travailleurs en Algérie (Trabalho e trabalhadores na Argélia)

1964: Le Déracinement et Les Héritiers (O desenraizamento e Os herdeiros)

1966: L’Amour de l’art (O amor à arte)

1968: Le Métier de sociologue (O of&iacuteiacute;cio de sociólogo)

1972: Théorie de la pratique (Teoria da prática)

1979: La Distinction (A Distinção ? Crítica Social do Julgamento)

1982 : Ce que parler veut dire (O que falar quer dizer)

1984: Homo Academicus

1988: L’Ontologie politique de Martin Heidegger (A ontologia política de Martin Heidegger)

1989: La Noblesse d’Etat (A nobreza do Estado)

1993: La Misère du monde (A miséria do mundo)

1997: Méditations pascaliennes (Meditações pascalianas)

1998: Contre-feux (Raison d’agir éditions) e La Domination masculine (Contrafogos [Jorge Zahar] e A dominação masculina [Editora Bertrand]

2000: Les Structures sociales de l’économie (As estruturas sociais da economia)

 

"Bourdieu, razões e paixões", copyright Le Monde, 25/1/02 ? tradução Marinilda Carvalho

É possível encontrar na obra imponente e abundante de Pierre Bourdieu uma intenção única, constante, obstinadamente perseguida? Ao primeiro olhar, o leitor se arrisca a desistir. Pois o trabalho considerável deste sociólogo de grande envergadura assumiu formalmente diferentes aparências. Na vintena de volumes por ele publicados, encontramos tanto pesquisas de campo como análises conceituais, tanto intervenções curtas sobre questões pontuais como longas reflexões. Para não simplificar, a diversidade de assuntos abordados é extrema! De rituais de Cabila ao sistema escolar, das instituições de pesquisa ao casamento, de gostos culturais à dominação masculina, dos altos funcionários à língua, de Heidegger à televisão, os objetos de investigação são tão numerosos e parecem tão discordantes que a saída preguiçosa seria fragmentar a obra, considerando sempre uma faceta de cada vez. Obteríamos assim todo tipo de perfil, dando a cada um uma coerência aceitável. Mas sua reunião continuaria problemática.

Há entretanto uma unidade profunda em Pierre Bourdieu. Apesar de sua evolução, apesar dos períodos e das etapas que sugerem um estudo detalhado de seu percurso, sua reflexão gira em torno de uma única interrogação primordial. Ela vem de uma herança muito antiga, que Bourdieu renovou, perturbou. Essa questão, velha como a filosofia, é a identidade. Conhecer-se a si mesmo foi injunção já imposta a Sócrates. Quem sou eu, quem somos nós, o que sei? Bourdieu retoma essas perguntas, remanejadas numerosas vezes ao longo dos tempos. Mas ele as trabalha e as transforma de uma forma muito singular. Pois ele não se interroga, como o fizeram classicamente os filósofos, sobre a natureza ou a condição humanas. Para ele não se trata mais de saber em que consiste a essência do homem em geral, mas de compreender como é produzido tal sujeito em particular, como se engendram seus gostos, sua visão de si mesmo, suas estratégias.

Mas para se conhecer assim é inútil contemplar-se a si mesmo. É ao redor, ou atrás, ou debaixo que se deve olhar. O exterior, o detalhe, ao mesmo tempo visível e escondido, do funcionamento social. O conhecimento de si mesmo não é o resultado de uma introspecção, mas de uma objetivação. Você acredita ter uma natureza artística, fica maravilhado com seu dom? Indique antes data e local de nascimento, a profissão de seus pais e seu currículo escolar. Estes detalhes pouco nobres permitirão sem dúvida apreender mais sobre seus supostos talentos do que autoriza seu próprio sentimento.

O desvio que leva ao conhecimento de si mesmo tem pouco em comum com a psicanálise. Não são os conflitos psíquicos que permitem captar a formação do sujeito. Como em Freud, o indivíduo segundo Bourdieu não está mais "no centro dele mesmo", mas, desta vez, o que o produz, e até sua intimidade, é a exterioridade social.

Eis por que o indivíduo não saberia ser transparente para si mesmo. A menor de nossas tendências é resultado de um jogo complexo de códigos e de distinções que são tudo, menos naturais. A ambição do trabalho sociológico, tal como Bourdieu concebeu e aperfeiçoou, é de desvendar em detalhes o jogo às vezes microscópico e sua reprodução implacável. Para explicar esse mecanismo escondido, ele forjou novos conceitos: habitus, campo, violência simbólica, por exemplo. Sua contribuição aqui é de uma amplitude e de uma força tais que é o caso de se perguntar, ainda, como Luc Ferry e Alain Renault, no triste panfleto em que tentaram se livrar do "pensamento de 68", puderam ver nesta obra sutil e forte apenas uma "variante diferente do marxismo vulgar".

A questão de fundo, aqui, é evidentemente a da libertação tornada possível pelo conhecimento. Esta não é, em Bourdieu, uma questão retórica, geral e abstrata. Concreta e detalhada, a sociologia pode se tornar "um instrumento de auto-análise extremamente poderoso, que permite a cada um entender melhor o que é, dando-lhe uma compreensão de suas próprias condições sociais de produção e da posição que ocupa no mundo social".

A possibilidade existe, mas sua realização nunca é certa. Nada garante que iluminar os determinismos sociais seja suficiente para quebrá-los. Pois os dominados, como Bourdieu mostrou muitas vezes, interiorizam sua própria dominação, e acabam assim por reconduzir a si mesmos à opressão. A violência simbólica cumpre essencialmente esta função. Aqui também, mas em outro sentido, a transparência se revela impossível.

Parece então que só resta uma saída. Ela exige esforços contínuos, uma ação caso a caso. Trata-se de desfazer a ilusão de transparência onde quer que ela subsista. Exemplo: os alunos de uma grande escola se dedicam à reflexão, e acham isso natural e normal. Deve-se perguntar: quais são as condições sociais e históricas na existência do indivíduo cuja atividade se apresenta unicamente como livre uso da razão humana? Por quais desvios se chega a considerar natural, universalmente humano, autenticamente espontâneo um sítio escolar muito artificial, minuciosamente construído, cheio de bibliotecas, cercado de códigos, saturado de regras e símbolos?

Recusando as abstrações desencarnadas, Bourdieu desconfiava dos mecanismos reducionistas. Ele fez sua a fórmula de Pascal: "Dois excessos: excluir a razão, só aceitar a razão." Clausewitz sustentava que a guerra é a continuação da política por outros meios. A sociologia segundo Bourdieu, tanto em seus golpes de gênio como em seus limites, em mais de um sentido seria a continuação da filosofia por outros meios.

Mas, aqui também, a transparência parece impossível.