Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Leneide Duarte

DUAS ENTREVISTAS

"A TV precisa de um contrapoder", copyright Jornal do Brasil, caderno Idéias, 11/9/00

"Pierre Bourdieu, titular da cátedra de Sociologia do Collège de France, é um dos mais lidos e citados sociólogos do mundo. Com seu livro Sobre a televisão (Jorge Zahar Editor), ele abriu uma nova e polêmica frente de discussão ao estudar a cultura mediática e fazer uma crítica definitiva ao meio de comunicação mais controvertido da atualidade. Para ele, a tela da televisão tornou-se hoje ?uma espécie de espelho de Narciso, um lugar de exibição narcísica no qual querem se mirar os intelectuais (filósofos e escritores) mediáticos?, do qual fogem os eruditos e pensadores, evitando uma mídia extremamente superficial, própria a fast thinkers. Bourdieu acha que pouca coisa pode ser dita num veículo que impõe o assunto, o tempo irrisório e que tem interesses econômicos invisíveis e, muitas vezes, inconfessáveis. Tudo isso faz da televisão, segundo Bourdieu, um formidável instrumento de manutenção da ordem simbólica.

?Há imensos obstáculos… Penso que já seria importante que os intelectuais tomem consciência de que, em sua relação com a televisão, o que está em jogo não é apenas seu ego, sua notoriedade atual ou potencial, mas algo infinitamente mais importante politicamente: a possibilidade de instituir um contra-poder crítico eficaz, capaz de se exprimir em nome do maior número de pessoas, as conquistas mais sofisticadas e mais avançadas da pesquisa científica e artística ou, mais simplesmente, a possibilidade de oferecer a todos os homens e mulheres de todos os países um acesso mínimo aos produtos mais raros e mais nobres da reflexão humana.? Segundo Bourdieu, a construção deste contra-poder só pode ser feita com a cumplicidade e a participação ativa da fração mais esclarecida e mais independente dos jornalistas. Suas idéias foram criticadas tanto na França como em todo o mundo onde o livro foi publicado. Por isso, Bourdieu escreveu uma espécie de réplica, não por acaso intilulada Contra-fogos. Como a discussão está longe de acabar, no mês em que a TV brasileira comemora seus 50 anos, o Idéias voltou a Bourdieu para discutir seu tema mais polêmico: a mídia televisiva.

O jornalismo é importante demais para ser deixado nas mãos de jornalistas?

Pierre Bourdieu ? Se eu disse alguma coisa assim, em algum lugar, foi unicamente pelo prazer de fazer uma boutade. E é preciso evitar fazer tiradas sobre assuntos sérios: e o jornalismo é um assunto sério, muito sério mesmo. Porque o jornalismo, hoje, é efetivamente muito importante. O que eu quis dizer é que não se pode deixar unicamente aos jornalistas a total e inteira responsabilidade do trabalho jornalístico. Era o que queriam alguns jornalistas que pensam que são suficientemente grandes para se controlar e se criticar e têm sempre à mão, pelo menos na França, a referência à ?deontologia?. O jornalismo ? que se pensa como um ?quarto poder?, mas crítico ? é sem dúvida alguma um poder, que, pelo fato das pressões de todas as ordens que pesam sobre a atividade jornalística, sobre os jornalistas, portanto, não tem mais muita coisa de crítico e contribui muito para reforçar as forças mais conservadoras da economia e da política.

O senhor pode dar um exemplo?

Bourdieu ? Os jornalistas econômicos, que na sua maioria estão longe de serem grandes economistas, e os grandes editorialistas não cessam de retomar e orquestrar os argumentos mais deformados da vulgata neoliberal sem submetê-los à crítica mais elementar. Por acaso eles se perguntam, por exemplo, o que significam as taxas de emprego dos Estados Unidos e da Inglaterra e se a relação, freqüentemente lançada contra os defensores do Welfare State, entre a proteção social e o desemprego não repousa sobre um jogo com as definições, tanto da proteção social, quanto do desemprego e do emprego etc.? Os jornalistas influentes gostam de dizer que são escutados, temos de lhes dar razão. Quando se trata de economia, eles falam todos praticamente a mesma língua.

O jornalismo da TV é pior do que o da imprensa escrita dita séria?

Bourdieu ? Eu não colocaria a questão nesses termos. É verdade, para simplificar, que o jornalismo da TV (sobretudo nas grandes redes, de grandes espetáculos e grande público) está submetido a pressões (a da urgência, principalmente, ligada ao medo de entediar, isto é, de perder telespectador), uma coisa da qual o jornalismo escrito, o dos grandes jornais ditos ?sérios?, está livre. Mas, de fato, a concorrência no campo jornalístico ? incluídas todas as mídias ? faz com que as pressões e interesses que pesam sobre a televisão pesem também, por intermédio da televisão, sobre a totalidade dos jornais, mesmo sobre aqueles mais preocupados com sua autonomia. Patrick Champagne fez essa análise, num dos últimos números da revista Atos da pesquisa em ciências sociais, sobre a evolução da retórica jornalística do jornal Le Monde: os títulos da primeira página, por exemplo, estão sendo cada vez mais dedicados à política nacional e aos aspectos mais anedóticos dessa política ? por exemplo as relações de coabitação entre o presidente da República e o primeiro-ministro. E tudo o que os americanos chamam de ?agenda? ? os assuntos sobre os quais é preciso falar, os temas que devem ser debatidos ? é imposto, cada vez mais, pela televisão. Ou, então, os grandes jornalistas se empenham em ter um programa de TV ou em aparecer num, o que é bom para eles próprios, para sua notoriedade e seu ego, mas tamb&eaeacute;m para seu jornal e para as vendas. E isto tem como efeito contribuir para a unificação da problemática em curso no campo jornalístico e, ao mesmo tempo, ao fechamento deste campo sobre ele mesmo, totalmente centrado nos pequenos problemas de um pequeno número de pessoas que, do debate televisivo ao coquetel de imprensa, não cessam de se encontrar e de trocar suas pequenas idéias.

Em seu livro ?Sobre a televisão?, o senhor diz que a crítica da TV pelo discurso não é senão um último recurso, menos eficaz do que seria a crítica da imagem pela imagem. Pela reação da mídia, o senhor acha que se enganou?

Bourdieu ? Sim e não. É verdade que o discurso que eu desenvolvi para a televisão teve bem menos efeito do que a transcrição publicada sob forma de livro. Mas trata-se de uma crítica pelo discurso (e que foi ao ar em horas de audiência muito baixa, à noite) e não de uma crítica pela imagem como eu poderia ter feito com a ajuda de profissionais de cinema ? como Pierre Charles, autor de um filme intitulado Pas vu à la télé (Não passou na TV), que teve um enorme sucesso onde foi exibido -, ou simplesmente se eu tivesse podido mostrar na TV as imagens que eu comentava no meu discurso, ou construir todo um filme com exemplos de coisas vistas na televisão. Seria, pois, preciso servir-se dos recursos da televisão (e mesmo de todo o talento que certos publicitários desenvolvem a serviço da venda de produtos) para desmontar e criticar os abusos do poder cometidos a cada dia na televisão, não necessariamente de maneira intencional ou perversa, mas, mais freqüentemente, por ignorância ou por inadvertência. Você me dirá que, na televisão mesmo (não sei se vocês têm isso no Brasil), há programas que fazem isso. De fato, é uma falsa crítica, que não toca em nada de sério ? a prova é o fato de que o filme de Pierre Charles, que questionava a integridade dos grandes responsáveis da televisão e sobretudo suas conivências com os políticos, foi proibido na TV. Este simulacro inofensivo de crítica é destinado, uma vez mais, a criar audiência dando satisfação a uma demanda confusamente sentida pelo público.

O senhor escreveu que a TV é um lugar de exibição narcísica. Os intelectuais mediáticos não são bem vistos por seus pares? Os eruditos e ensaístas devem fugir da telinha? O senhor participa de programas de televisão?

Bourdieu ? É preciso esclarecer tudo isto. Infelizmente, o julgamento dos pares (falo dos eruditos sobre os eruditos, dos escritores sobre os escritores etc.) está cada vez mais ocultado e confundido pela interferência do julgamento dos ignorantes que são chamados a opinar, e estão em situação de expor julgamentos dotados de visibilidade e, daí, de uma certa autoridade sobre os profanos. Por exemplo, a gente verá vários jornalistas franceses apressarem-se em elogiar tal livro sobre jornalismo, que balança entre o banal e o medíocre e que tem como principal virtude, a seus olhos, dizer do jornalismo aquilo que os jornalistas eles próprios, ou ao menos os mais conformistas e os mais satisfeitos entre eles, diriam. Isto com a esperança de barrar (num sentido de censurar) todas as tentativas para falar cientificamente desse universo.

Seria preciso, por esse motivo, intervir na mídia?

Bourdieu ? É uma questão muito difícil. Os editores, mesmo os mais rigorosos, avançam com toda sua força, e nós podemos compreendê-los. Recusar a televisão não é apenas comprometer o sucesso de obras que mececem atingir um público maior; é também deixar espaço aos intelectuais mediáticos, que contribuem para a mistura da qual eu falava há pouco propondo obras do kitsch cultural (e penso no Sartre de Bernard-Henri Lévy) e que não podem se defender contra os questionamentos de que são objeto (apesar da extraordinária solidariedade de todos os intelectuais beneficiários), atacando, muitas vezes da maneira mais sórdida, os que resistem a seu domínio sobre a imprensa e a edição.

Explique melhor esses personagens.

Bourdieu ? Não sei se vocês têm como nós na França personagens que dominam, ao mesmo tempo, grandes órgãos de imprensa, como Grasset ou Gallimard, jornais (como o Magazine Littéraire, L’Express ou L’Événement du Jeudi) que são capazes de desencadear verdadeiras campanhas de publicidade em defesa de seus produtos ou dos de seus amigos; e, também, em casos mais excepcionais, campanhas de difamação contra os que se recusam a entrar no jogo ou que, mais simplesmente, têm a insolência de descrevê-lo. Volto à sua pergunta. É preciso fugir da telinha? Penso que seria preciso que artistas, escritores, eruditos e pensadores lutem individualmente e sobretudo coletivamente para conquistar a possibilidade de ter acesso à TV em boas condições, isto é, quando eles têm algo a dizer que merece atingir uma audiência maior e quando se lhes oferecem a oportunidade e o tempo necessário para dizê-lo. Creio que seria possível inventar novas formas de ação pela televisão que sejam capazes de envolver públicos mais vastos em torno de assuntos mais difíceis e mais importantes (como o futuro da economia mundial), mas sob a condição de mobilizar verdadeiramente todas as capacidades inventivas dos escritores, dos eruditos e, sobretudo, dos artistas, e especialmente dos cineastas. É este o tipo de tarefa na qual deveria se empenhar o intelectual coletivo tal qual o imagino.

Hoje, o que não aparece na TV corre o risco de não atingir a sociedade, tanto no bom quanto no mau sentido?

Bourdieu ? Efetivamente, é por isso que todos os que desejam agir sobre o mundo, ao menos o suficiente para contrabalançar ou combater a ação dos que o dominam, devem se questionar seriamente sobre a questão do bom uso das mídias. Não é o caso de recusar as mídias, mas de se perguntar como utilizá-las sem se deixar usar por elas. É preciso os pesquisadores irem à televisão, mas dentro de suas conveniências e suas condições. Há imensos obstáculos, que não enumerarei para não desencorajar ou desesperar os que tentam lutar. Penso que já seria importante que os intelectuais tomem consciência de que, em sua relação com a televisão, e mais genericamente, o que está em jogo não é apenas seu ego, sua notoriedade atual ou potencial, mas algo infinitamente mais importante politicamente: a possibilidade de instituir um contrapoder crítico eficaz, capaz de se exprimir em nome do maior número de pessoas, as conquistas mais sofisticadas e mais avançadas da pesquisa científica e artística ou, mais simplesmente, a possibilidade de oferecer a todos os homens e a todas as mulheres de todos os países um acesso mínimo aos produtos mais raros e mais nobres da reflexão humana. A construção deste contrapoder só pode ser feita, evidentemente, com a cumplicidade ou mesmo a participação ativa da fração mais esclarecida e mais independente dos jornalistas."

 

"A ciência do real", copyright Mais!, Folha de S.Paulo, 7/2/99

"Admirado ou detestado, Pierre Bourdieu, 68, professor no prestigioso Collège de France, em Paris, posiciona-se como o último dos ?maîtres à penser? no país onde o intelectual engajado Jean-Paul Sartre tornou-se o símbolo de uma época em que política e cultura deviam convergir para a realização do ?melhor dos mundos?. O tempo passou, as utopias entraram em crise e ficou a lacuna que o sociólogo tenta, segundo os opositores que o chamam de ?bourdivino?, agora preencher.

Defensor do caráter científico da sociologia, adversário do ensaísmo e inimigo dos ?intelectuais da mídia?, Bourdieu, nos últimos anos em luta contra o neoliberalismo, assumiu posições cada vez mais à esquerda, chegando a ser rotulado de demagogo e de populista. Seus críticos gostam de acusá-lo de determinista e de explorar temas requentados com ajuda dos artifícios da retórica sociológica.

Do outro lado, os seguidores do mestre vêem nele a voz da resistência científica num momento de relativismo geral. Crítico implacável dos privilégios garantidos e transmitidos por instituições, é autor de alguns dos livros sociológicos mais polêmicos dos últimos 40 anos, entre os quais Homo Academicus (1984), As Regras da Arte (1992), Sobre a Televisão (1996) e, recentemente, A Dominação Masculina (1998).

Diretor da revista Atas de Pesquisa em Ciências Sociais, uma das publicações mais respeitadas do mundo acadêmico, e criador da editora Liber/Raisons d’Agir, cujos pequenos livros, em forma de panfletos, vendem em média 300 mil exemplares, Pierre Bourdieu costuma atacar as instituições que lhe dão trabalho e distinção social. Assim, tentou desmontar os mecanismos elitistas e corporativos das principais instâncias de poder no mundo contemporâneo: educação, cultura, posição na esfera estatal e mídia.
A apropriação da cultura como símbolo de distinção é um dos temas favoritos por meio do qual pretende pulverizar os modismos, o esnobismo e o vazio das elites. Quanto mais ataca, mais é legitimado como último baluarte do purismo intelectual em oposição à vulgaridade da indústria cultural.

Criador ou disseminador de conceitos como ?campo? ou ?habitus?, Bourdieu vê os homens em luta permanente pelo prestígio e pela ascensão social. Segundo um crítico literário, o homem, para Bourdieu, não é o lobo do homem, mas o cão.

Incontornável, Bourdieu ocupa, atacando ou sendo atacado, as páginas dos principais jornais e revistas franceses. Recentemente, no jornal Libération, debateu com Daniel Cohn-Bendit, que desembarcou na política da França como cabeça de lista dos ecologistas para as eleições do Parlamento Europeu deste ano [1999]. Cohn-Bendit, o líder estudantil ?vermelho? de 1968, parece agora verde e rosa demais aos olhos do sociólogo. Em dezembro de 1998, Bourdieu foi o redator-convidado de Les Inrockuptibles, considerada a mais irreverente revista parisiense.

Na entrevista a seguir, Bourdieu retoma o percurso do combatente: revisita as estratégias de poder que sempre se apresentam como naturais e necessárias. Nada do que é humano lhe é natural. Para ele, cabe ao sociólogo destruir os mitos dos seus contemporâneos.

O senhor é considerado o ?intelectual mais poderoso da França?, conforme a recente manchete de capa da revista ?L’Evénément du Jeudi?, e, segundo outros, como o sociólogo mais importante do mundo. Numa época em que, para muitos, as ciências sociais estão em crise, o caráter científico da sociologia parece inegável ao senhor. Pode-se realmente demonstrar essa cientificidade?

Pierre Bourdieu ? Quero deter-me, antes de tudo, no conteúdo da questão. Que significa ?intelectual mais poderoso da França?? Com certeza, estamos no terreno do poder. Mas de qual poder? O poder universitário, tal qual o analiso no ?Homo Academicus?? Nesse caso, é fácil constatar que, pertencer ao Collège de France, onde, à época do meu estudo, se encontrava gente como Dumézil, Lévi-Strauss, Braudel ou Foucault, não garante praticamente nenhuma espécie de poder propriamente universitário. Entendo por isso um poder sobre as instâncias de reprodução do corpo docente e mesmo do científico. Os ?heréticos consagrados?, como eu os designava, são mais ou menos excluídos, apesar do prestígio, dessa forma de poder. E, sem dúvida, isso é uma pena para a qualidade da vida científica e para os jovens pesquisadores qualificados que nela querem se engajar.
Se se quer falar de poder sobre as instâncias de difusão, e em particular na mídia, pertencer ao Collège de France, pelo prestígio que isso confere, pode dar certa autoridade junto a editores e jornalistas. Acho, por exemplo, que meu amigo Michel Foucault tinha um ?poder? desse tipo. Mas esse poder baseado no prestígio é pouca coisa quando comparado ao que têm certos intelectuais da mídia, ligados por laços orgânicos aos meios da imprensa e da edição.

Os detentores desse poder característico da mídia, assim como os detentores do poder propriamente universitário, podem não ter um pouco disso que se chama ordinariamente de prestígio, isso que aparece quando se fala do ?sociólogo mais importante do mundo?, ou seja, o sociólogo que mais interessa aos sociólogos em todo o mundo. As duas espécies de poder que evoco, universitário ou de mídia, caracterizam-se primeiramente por ser nacionais, isto é, reduzidas aos limites da nação, francesa no caso, e da língua nacional. Por isso, para medir o ?prestígio? ou, mais precisamente, o capital simbólico dos pesquisadores estudados no Homo Academicus, considerei as traduções em língua estrangeira, o número de menções no Citation Index e em outros índices de reconhecimento internacional. Desse ponto de vista, os meus ?heréticos consagrados? distinguiam-se com clareza dos universitária ou midiaticamente poderosos.

Posso agora voltar à questão da cientificidade das ciências sociais e, particularmente, da sociologia. Devo salientar, antes de tudo, que a sociologia tem o triste privilégio de ser a única disciplina para a qual essa pergunta nunca pára de ser posta, quando, na realidade, ela nada tem a invejar, bem ao contrário, das outras ciências sociais; nem quanto aos métodos, modelização, uso da estatística, técnicas de coleta de dados, nem quanto aos conceitos e teorias, especialmente a etnologia e a história. A comparação com a economia exigiria uma análise mais complexa. Penso, de fato, que a sociologia é uma ciência cumulativa e nunca tive nenhuma pretensão à originalidade absoluta reivindicada, a meu ver de maneira bastante ingênua, por certos filósofos contemporâneos, principalmente os que são classificados com frequência na categoria dos ?pós-modernos?. Sempre tentei integrar, sem dúvida ao custo de grandes esforços, as aquisições de tendências tradicionalmente consideradas como antagônicas; além disso, a sociologia possui um instrumental teórico ao mesmo tempo mais complexo, mais unificado e mais ajustado ao real do que o das demais ciências sociais, inclusive a economia.

Os intelectuais traíram a vocação crítica ao aceitar como verdade a ideologia neoliberal?

Bourdieu ? Creio que, por preguiça intelectual, mas também sob o efeito do desencantamento ligado à melhoria das condições de existência das profissões intelectuais ? com os ?tours? de conferências e os rendosos cursos nos Estados Unidos, mais a colaboração regular com jornais ou hebdomadários- ou à queda do movimentos ?comunistas? internacional e nacional, os intelectuais, pouco a pouco, renderam-se à visão neoliberal. Com frequência, de maneira tão mais radical e total quanto mais ampla era a adesão à mitologia ?comunista?.

Entre os fatores que determinaram essa conversão coletiva de boa parte dos intelectuais franceses, embora a maioria dos países europeus tenha sofrido evolução análoga, não se pode esquecer a ação deliberada e organizada de um certo número de indivíduos e de instituições, ?think tanks? organizados e financiados pelas grandes fundações americanas, revistas, colóquios, seminários etc. O livrinho de Keith Dixon, Os Evangelistas do Mercado, que vamos publicar na coleção ?Razões de Agir?, descreve bem esse processo no caso da Inglaterra. Mas tivemos o equivalente a isso na França com o Congresso para a Liberdade da Cultura, com a revista Preuves e com Raymond Aron.

Seria necessário realizar uma pesquisa semelhante quanto à América Latina e, em especial, ao Brasil. Em geral, seria preciso descrever sociologicamente as vias, com frequência tortuosas e dissimuladas, tomadas pelo imperialismo propriamente cultural.

Alguns dos seus críticos acusam-no de populismo e demagogia. Qual a sua aposta: a construção de uma sociedade comunista ou um novo investimento no Estado de Bem-Estar Social?

Bourdieu ? Acho que o senhor leu demais as ?críticas? que me são dirigidas de todos os lados, as quais não se tornam mais verdadeiras pelo simples fato de ser incansavelmente repetidas pelos intelectuais jornalistas e pelos jornalistas intelectuais que passam mais tempo a ler uns aos outros do que a ler os autores dos quais devem falar. Marxismo, leninismo, estruturo-marxismo, quanto ao aspecto teórico, são algumas dessas tantas ?correntes de pensamento? das quais nunca parei de me dissociar, oralmente ou por escrito, em especial no tempo em que delas reclamavam muitos dos que hoje me colam etiquetas. O mesmo vale para populismo, irrealismo, utopismo, quanto ao aspecto político.

Eu poderia retomar cada uma dessas acusações ? pois se está em plena lógica do processo, mesmo se cada um se justifica com a necessidade de processar o suposto procurador ? e mostrar que já disse e escrevi explicitamente, inúmeras vezes, o contrário. É o caso, por exemplo, da acusação de populismo, repetida à exaustão por constituir, devido às suas conotações encobertas, o estigma mais infamante ? esquerda vermelha e esquerda parda, Partido Comunista e Front National, Lênin e Céline; em suma: racismo. Deixo de lado, não podendo supor que jornalistas e ensaístas tenham lido as análises críticas do populismo que desenvolvi longamente nas Meditações Pascalianas.

Ou então bastaria retomar o texto, transcrito em Contrafogos, do discurso que pronunciei na Gare de Lyon, em Paris, em dezembro de 1995, cercado de representantes de todos os movimentos sociais e de todas as associações militantes, na presença de uma massa tipicamente ?popular? de grevistas, ferroviários ou outros, ou seja, numa situação particularmente favorável à demagogia populista. O final dessa intervenção é consagrado a um alerta contra a tentação do populismo e a uma exortação aos intelectuais para que protejam a autonomia necessária ao cumprimento da função específica de analistas engajados.

O senhor denuncia de forma arrasadora o trabalho da mídia para impor a inexorabilidade da globalização e sonha com um Estado mundial capaz de enfrentar o universo do mercado. Como realizar essa utopia?

Bourdieu ? Em verdade, apesar do que dizem os fatalistas da liberdade, existe lugar para um utopismo razoável, protegido pelo conhecimento da coerção e das contradições sociais fornecido pelas ciências sociais.

Teria de repetir aqui tudo o que disse a respeito da economia do bem-estar e, mais precisamente, do que poderia ser um Estado europeu e do que ele deveria fazer para contrapor-se à lógica infernal dos mercados financeiros e à tirania dos bancos e dos banqueiros que favorecem a criação, tanto pelo ?laisser-faire? quanto por suas intervenções, das pressões do mercado que pretendem nos impor sob alegação de que se impõem a eles.

A mão esquerda do Estado, de acordo com a sua expressão, pode realmente enfrentar a mão direita sem recorrer a uma perspectiva revolucionária considerada ultrapassada mesmo por antigos partidos comunistas?

Bourdieu ? O utopismo razoável deve alimentar-se do conhecimento das tendências para se contrapor a elas. Por exemplo, as que conduzem as sociedades mais avançadas do Estado social ao Estado penal nada têm de fatalidade ou de inexorabilidade. Elas inscrevem-se numa política econômica baseada na ignorância ativa dos custos econômicos e sociais das ?economias? -no sentido da não-despesa- econômicas. Em resumo, o dinheiro que não é destinado para as escolas ou creches será, cedo ou tarde, destinado às prisões.

Com ?Sobre a Televisão?, o senhor desmantelou a lógica da mídia baseada na mercadoria, na circularidade dos temas, nos convidados intercambiáveis, na troca de favores no domínio literário. O mundo cultural é uma farsa em que os primeiros enganados são os consumidores de obras de alguns autores de referência criados pela marketing das editoras em associação com a imprensa?

Bourdieu ? A análise crítica do papel da televisão é um elemento capital da luta contra a imposição da visão dominante do mundo social e do seu devir. O mais importante consiste na influência que a televisão exerce sobre a totalidade do jornalismo e, por meio dele, sobre o conjunto da produção cultural. A lógica do comércio, simbolizada pelos índices de audiência, do sucesso comercial, da venda e do marketing, como meio específico para atingir esses fins puramente temporais, impôs-se aos poucos; em certos casos, por meio das editoras e dos produtores estreitamente associados à imprensa, como os filósofos e os escritores da mídia aos quais me referia; mas também por meio de outras vias.
Essa lógica se impôs em primeiro lugar ao campo filosófico, com os ?novos filósofos?, e ao campo literário, com os grandes best sellers internacionais e o que Pascale Casanova chamou de ?world fiction?, ou seja, em especial os romances acadêmicos à David Lodge ou Umberto Eco; mas ela atingiu também o campo jurídico, com os processos sensacionalistas arbitrados pela mídia, e o próprio campo científico, com a intrusão da notoriedade jornalística na avaliação dos cientistas e das suas obras.

O imaginário da mídia está anexando a literatura e as ciências humanas em nome da ?clareza?, da suposta vontade do consumidor e da rejeição à ?chatice??

Bourdieu ? Tudo isso corresponde a um dos efeitos, num campo particular, da invasão da televisão e da visão da mídia. De fato, vê-se cada vez mais o desenvolvimento de uma produção ?média?, no duplo sentido de intermediário e também de medíocre, entre a má ciência e o mau jornalismo, e não, como a boa vulgarização, entre os sábios e os que desejam aprender.

Os editores, guiados pelo interesse exclusivo do sucesso comercial, associam-se a autores ?da mídia?, os detentores de uma notoriedade adquirida previamente na mídia: jornalistas, ensaístas, painelistas de televisão etc.

Isso para cobrir as vitrinas das livrarias de obras que fazem circular os ?preconceitos? e os lugares-comuns da doxa semi-erudita. Em particular, o pequeno lote de falsos problemas partilhados pelo universo político-jornalístico ? Estado ou mercado, eutanásia ou obsessão terapêutica-, que serve também de pretexto às dissertações dos filósofos da TV.

O chamado ?pensamento único? é menos uma temática do que uma problemática comum. A dificuldade para estabelecer a comunicação com os jornalistas refere-se, em essência, ao pesquisador, à necessidade deste de não se perder na conversa fiada, de poder furar a proteção dos lugares-comuns, os tópicos e problemas generalizantes propostos, com toda inocência, pelo campo jornalístico.

Dito isso, tais processos conduzem à manutenção da ameaça crescente que pesa sobre a autonomia do pensamento ? científico, artístico ou qualquer outro. Quando não se tem a possibilidade de censurar pura e simplesmente o pensamento ?autêntico?, em nome das exigências da clareza e da simplicidade, denunciam-se, em razão do caráter inutilmente enfadonho, os textos e os autores que respeitam as exigências de suas disciplinas. Esse é apenas um dos exemplos desses abusos de poder simbólicos que ameaçam a autonomia indispensável à realização da lógica específica dos diferentes campos, como a importação peremptória de critérios de julgamento não-pertinentes.

Com a conquista da Copa do Mundo, falou-se muito numa vitória da França miscigenada. Estaria o esporte ajudando a enfrentar a atração pela extrema direita encarnada no Front National?

Bourdieu ? Não estou seguro de que se possa conceder ao esporte-espetáculo a capacidade de integrar, mesmo simbolicamente, uma sociedade ameaçada pela segregação. Creio, ao contrário, que a prática do esporte, em particular a do futebol, nos pequenos clubes amadores, preenchia, e continua a fazê-lo, mas cada vez com mais dificuldade, essa função de integração, especialmente pela oferta de uma via de ascensão social de substituição aos que, na falta de capital cultural herdado, não estão capacitados para tomar a via real proposta pela escola.

Mas, conforme mostrei num trabalho recente, a submissão crescente do esporte à lógica do comércio, por meio da comercialização do espetáculo esportivo televisionado, tende a cortar a ligação orgânica entre o esporte de alto nível e a prática esportiva de base; ou, de maneira mais precisa, no caso do futebol, entre os grandes clubes profissionais, cada vez mais transformados em empresas capitalistas, por vezes cotadas em Bolsa, e os pequenos clubes amadores, direcionados para objetivos pedagógicos e sustentados em grande parte por uma devoção militante. Assim, o verdadeiro percurso que poderia conduzir o garoto das favelas ou da periferia, desde a pequena equipe local ou da escolinha de futebol do clube grande, até a equipe nacional e a carreira internacional está cada vez mais ameaçado, tanto na realidade quanto nas representações.

Dito isso, o esporte é, junto com a escola, um dos terrenos em que as tentações racistas e xenófobas encorajadas pelo Front National podem ser combatidas de maneira eficaz. Seria preciso falar também dos mecanismos que favorecem o racismo e o sexismo, no mundo do trabalho e dos meios eficazes para combatê-los.

Em ?A Dominação Masculina?, o senhor diz que quase o mesmo comportamento -sorrir, baixar os olhos, aceitar as interrupções- é exigido das mulheres cabilas e das americanas ou européias. O feminismo não mudou realmente o Ocidente?

Bourdieu ? Por que simplificar a esse ponto o que eu disse? As coisas, evidentemente, mudaram, sob o efeito de diferentes fatores, entre os quais o mais importante certamente não é, sem dúvida, o feminismo, mas antes certas contradições do sistema escolar -especialmente nas suas relações com o mundo do trabalho-, do qual o próprio feminismo é, com certeza, por um lado, a expressão.

Certas coisas realmente fundamentais, nas estruturas sociais e nas estruturas cognitivas, perpetuaram-se, sob uma forma idêntica ou transformada. Por exemplo, as oposições entre o duro e o mole, o seco e o úmido, centrais na cosmologia mediterrânea, encontram-se no seio do mundo universitário ou mesmo científico sob a forma da dicotomia entre as disciplinas literárias e as científicas; estas, consideradas ?hard?, muito em especial a matemática, sendo tidas como pouco adequadas para as mulheres, fadadas ao ?soft?.
Muitas coisas mudaram, mas sem dúvida não tanto quando se possa crer, tomando por base indicativos superficiais, não necessariamente relativos aos pontos mais importantes. Além disso, as diferenças deslocaram-se e a distância tende a mantê-las como numa corrida de obstáculos. Tanto é assim que os trabalhos de historiadores como Michelle Perrot sobre a história das mulheres revelam a questão das condições da des-historiza&ccediccedil;ão da diferença entre os gêneros, por meio da própria história -no sentido de produto da história e não da natureza.

Mais uma vez, o senhor mostra a lógica da distinção, com a recusa da microssaia ou dos decotes muito generosos, como uma forma de impor um modelo de comportamento. No seu entender, a saia preenche uma função semelhante à da batina dos padres. O corpo das mulheres continua a ser adestrado para aceitar a dominação masculina?

Bourdieu ? O que denominamos de ?feminilidade? é o produto de um adestramento permanente do corpo e das incessantes chamadas à ordem, entre os quais o mais importante, por ser inerte e reificado, é a vestimenta. Seria preciso construir ou ler a história da roupa feminina, desde as formas caricaturais mais complicadas, a ponto de impedirem ou tornar difíceis os deslocamentos elementares, até as mais simples, como uma história do adestramento do corpo feminino, tratando-a como um capítulo da história da educação.

Ao citar Lucien Bianco, ?as armas do fraco sempre são armas fracas?, o senhor refuta qualquer idéia de dominação do homem pela mulher por meio da sedução ou de qualquer outro artifício ?feminino?. A originalidade do seu novo trabalho encontra-se no combate a esse tipo de noção cada vez mais em voga?

Bourdieu ? As astúcias da razão masculina são inumeráveis e bem que eu gostaria de ter analisado todas as razões e as racionalizações de que se arma o ?machismo?, neo ou paleo, para legitimar-se. Apresentei, parece-me, os princípios de uma análise da sedução capaz de ser, ao mesmo tempo, realmente compreensiva e objetiva na descrição da injunção em forma de ?double bind? continuamente dirigida à mulher: seja aberta e fechada, ofereça-se e recuse-se, seja acessível e inacessível, prometida e proibida.

O intelectual deve caracterizar-se pela rejeição às zonas de sombra e pela busca das Luzes?

Bourdieu ? Sim, creio nas Luzes, mas a nova ?Aufklärung?, que tem a minha admiração, só pode realmente esclarecer se ilumina a si mesma. Quero dizer com isso que a razão argumentativa, capaz de nada deixar na sombra, deve ser também capaz de voltar-se para si mesma a sua lucidez crítica e de compreender que um certo racionalismo pode, por vezes, ser fator de obscurantismo. [Juremir Machado da Silva é escritor e doutor em sociologia, autor de ?Anjos da Perdição ? Futuro e Presente na Cultura Brasileira? (Editora Sulina) e de ?Visões de uma Certa Europa? (EDIPUCRS), entre outros]."