Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O circo da Copa chegou

MÍDIA ESPORTIVA

Marcelo Mastrobuono (*)

Às vésperas de mais uma Copa do Mundo, a crônica esportiva televisiva cuida de fazer seu próprio espetáculo. A exemplo do baixo nível técnico que hoje temos nos gramados, a falta de talento já ocupa várias cadeiras nas mesas-redondas de debates sobre futebol. Nesse caso, o despreparo é compensado com uma boa dosagem de teatralização nas performances dos personagens. Diversão certa para o telespectador menos exigente em conteúdo e apreciador das polêmicas discussões de boteco. Afinal, nada mais engraçado que meia dúzia de vociferantes comentaristas defendendo aos berros sua opinião. É o circo eletrônico em plena forma.

Ocorre, entretanto, que, nesse picadeiro, os palhaços também querem ser leões, domadores, trapezistas e… pasmem, até jornalistas. Isso mesmo. Com o pretexto de estarem levando "informação" ao público, a crônica esportiva vem sofrendo um dos maiores atentados de banalização de sua história. Uma enxurrada de vulgaridade que ameaça levar abaixo todas as balizas de conduta ética, moral e profissional dos jornalistas de fato. Sem dúvida, uma epidemia fabricada em laboratórios mercadológicos, fecundada em rádios, fertilizada em programas de TV e agora pulverizada até nas páginas de jornais. É o verdadeiro vale-tudo na busca pela audiência.

Felizmente, algumas das vigas mestras do jornalismo esportivo permanecem intactas, o que nos alimenta a esperan&ccedccedil;a de que nem tudo está perdido. Profissionais como Armando Nogueira, Orlando Duarte, Alberto Helena Jr., Juca Kfouri e alguns poucos mais se tornaram exceções da escola por onde já passaram figuras ilustres como João Saldanha e Nelson Rodrigues, para citar apenas dois dos grandes mestres da crônica futebolística.

Nem sempre, porém, os remanescentes do bom jornalismo conseguem se manter imunes contra essa trupe pirotécnica que hoje domina os programas de debate esportivo. Juca Kfouri, por exemplo, é metralhado semanalmente ? juntamente com seus telespectadores ? pelo radialista Jorge Kajuru, cujas mandíbulas se flexionam muito mais que seus neurônios. Uma espécie de Ratinho da crônica esportiva. Apresentador de um programa diário na Rede TV!, não se cansa de se justificar como jornalista. O título lhe serve como uma "armadura" para atacar e defender a quem bem entende, quando, onde e como melhor lhe convém. É severo em suas críticas, muito embora na maioria das vezes lhe faltem argumentos. Suas entrevistas não são diferentes: servem quase sempre para reforçar seus pontos de vista, conhecidos e pré-estabelecidos. Pouco interessa o que o entrevistado tem a acrescentar.

De humilde, só o discurso de despedida que o tornou conhecido: "Gordo, feio e pobre, mas muito feliz". Um grande marketing contraditório de quem gosta de dar broncas no ar em sua equipe de produção e humilhar colegas, expondo-os a situações ridículas. Há poucos dias teve de justificar por que não mais chamaria um de seus assistentes para "pôr a cabeça em frente ao vídeo" para dar-lhe um cascudo, ou coque, se preferir. "Ele não gostou da brincadeira, afinal, na televisão só tem artista." E ele chama isso de programa jornalístico…

Milton, o Midas

Os "colegas" da imprensa também não saem ilesos da artilharia de Kajuru, o "paladino". Em um de seus programas recentes, para explicar por que Romário não é convocado por Luiz Felipe Scolari, afirmou que é comum jogadores, diretores e, inclusive, jornalistas levarem "garotas" para quartos de hotel durante as viagens. "Não vamos ser hipócritas, minha gente, todo mundo faz isso", defendeu. Mas também não vamos generalizar, jornalista Kajuru.

O apresentador da Rede TV! também protagonizou recentemente uma das grandes "barrigas" do jornalismo esportivo. Em matéria assinada na revista Lance a +, encarte dominical do jornal Lance! e da qual é colunista, se propôs a desvendar o mistério em torno da convulsão de Ronaldinho, na véspera da decisão contra a França. Com base em informações, segundo ele, fornecidas por um "amigo muito próximo a Ronaldinho", Kajuru sustenta que a convulsão teria sido causada por infiltrações de xilocaína no joelho do atleta. Bomba? Engano. O assunto que prometia ser um grande furo de reportagem não se sustentou mais do que o tempo de efeito da droga. Depoimentos de especialistas, entre eles o respeitado Osmar de Oliveira, enumeraram uma série de motivos médicos pelos quais isso era impossível de ter ocorrido. E ponto final.

Por essas e por outras, comenta-se que Jorge Kajuru está sendo sondado para se transferir para a Record, onde já se encontram outros "craques" do sensacionalismo. Um detalhe: o salário não será de jornalista, mas de "artista". Assim, o autodenominado gordo e feio apresentador está prestes a se tornar um ex-pobre, porém, feliz. Muuuuuito feliz.

Na Record, aliás, se hospeda outro fenômeno mercadológicos da imprensa esportiva dos últimos tempos. Talvez, até, o maior deles. O radialista Milton Neves é uma espécie de Midas, tamanha sua capacidade em transformar o futebol em negócio lucrativo, nem que para isso tenha que transpor as barreiras éticas da profissão. Bem articulado e com visão empresarial privilegiada, Neves conseguiu fazer no rádio (e agora na TV) o que os cartolas há tempo fazem nos bastidores: ganhar dinheiro, muito dinheiro. Pelo que se sabe, tudo lícito, porém, nem tanto ético na profissão. Na Jovem Pan, por exemplo, impôs um estilo pelo qual informação jornalística se mistura a publicidade. Assim, profissionais são obrigados a dar notas aos anunciantes, que sempre são nem mais nem menos do que 10. Ou seja, Neves simplesmente transformou a mensagem do locutor na do jornalista. Um efeito subliminar aos ouvintes, uma afronta a quem tem por princípios ficar isento de julgamento e envolvimento comercial. Kajuru poderia dizer que isso é hipocrisia. Jornalistas de verdade relutariam em defender que não.

Sobra diversão

Foi o que aconteceu no início, gerando inclusive protestos e afastamento de alguns profissionais. Hoje, o recurso foi absorvido por completo. Até figuras como Flávio Prado, professor universitário de Comunicação e apresentador do bom Cartão Verde, da TV Cultura, não se acanham em dar "10" a instituições bancárias e marcas de cerveja. Nem com os jogadores de destaque na partida Prado é tão benevolente. Suas notas de avaliação giram em torno de inexplicáveis "vírgula alguma coisa".

Com o êxito comercial que obteve no rádio, Milton Neves levou a fórmula de sucesso à televisão. Isso não foi difícil para quem tem agência de publicidade e carrega aonde for as contas de grandes anunciantes, como Schincariol, Lousano etc. A ética, entretanto, continua onde sempre esteve: longe de seu alcance. Para agradar aos patrocinadores, cria pérolas do tipo "Parque Schincariol", para se referir ao estádio do Palmeiras, conhecido como Parque Antarctica. Uma mistura de prepotência e desinformação aos ouvintes e telespectadores. Antes de chegar à Record, porém, o empresário-apresentador passou pela Bandeirantes, onde debutou com apresentador de TV em grande estilo, com o programa Supertécnico. O discurso é o mesmo do rádio, enroupado com bons ternos Armani, ao velho estilo Luxemburgo. Logo todos os participantes-convidados tiveram que assumir a gravata. Estava aberto o debate dos emoldurados. Ou melhor, os monólogos.

Para sua milionária transferência à Record, Neves tirou mais um coelho da cartola. O performático Cacá Rosset caiu como uma luva para show de asneiras sobre futebol. Com um nível cultural nitidamente acima de seus colegas de picadeiro, o dramaturgo Rosset achou o seu lugar na televisão. Familiarizado com os palcos, não foi difícil encontrar subsídios para montar seu personagem do Mundo da bola. Rosset interpreta um corintiano fanático, que usa gravatas de cores e desenhos exuberantes e que não dispensa uma boa polêmica. Canta, dança… enfim, faz seu show. Já apareceu até com um assistente anão. É ou não é circo? (Ééééééé… diria o próprio). Só não disse ainda que é jornalista, como Milton Neves, mas já virou garoto-propaganda da Lousano, como Milton Neves.

Outra obra do "genial" do radialista de Muzambinho atende pelo nome de Oscar Roberto de Godói, uma versão neveana (não entenda leviana) dos comentaristas de arbitragem da Globo, Arnaldo Cezar Coelho e José Roberto Wright. Isso sim, é reality show. Godói, o ex-árbitro que é jornalista formado, levou para a frente das câmeras todo o vocabulário do mundo futebolístico. O de dentro de campo, é bom que se diga. É capaz de repetir, sem o menor constrangimento, mais de três vezes uma palavra de baixo calão em menos de 30 segundos. Excepcional. Pior: o ex-juiz faz incitações claras à violência para milhares de telespectadores. Outro dia, quando se discutia o assunto, disse que a população não pode ser desarmada. "É o contrário: temos de distribuir armas. Imaginem um assaltante entrando num ônibus e, quando ele diz: é um assalto, 60 revólveres se voltam para sua cabeça. Queria ver a cara dele", sugeriu o caçula de Milton Neves. Rosset não perdeu a oportunidade: "Chamem uma ambulância do setor psiquiátrico". Todos riram. Afinal, quem é que leva a sério esse tipo de jornalismo? No futebol, o que vale é o espetáculo. Faltam talentos, é óbvio. Mas sobra diversão. Até Tóquio!

(*) Jornalista