Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O dissidente que perturba os fundamentalistas

Nenhum dos nossos grandes veículos impressos, mesmo os avessos a obituários, deixou de comentar a morte do autor do Arquipélago Gulag. Visível, porém, a devoção e a ênfase dos articulistas de tendência liberal nos perfis do escritor que deu o grande safanão no stalinismo, em contraste com a algidez protocolar dos chamados ‘progressistas’.


A URSS acabou, a foice e o martelo foram substituídos pelas águias imperiais, Putin é um caudilho nacionalista, pragmático e oportunista como outro qualquer, mas os paradigmas autoritários do Kremlin permanecem intocados.


Aqueles que tiveram a coragem de levantar a cabeça para enfrentar o terror soviético eram agentes do imperialismo ianque nos anos 50-70 do século passado – e assim continuam estigmatizados até hoje.


Labirinto de teorias


Tanto os herdeiros da ‘linha justa’ moscovita como as várias facções que descendem de Trotsky, ao longo de mais de meio século jamais assimilaram a figura do intelectual movido pela força moral, a serviço da sua consciência.


Esquecem que o degelo da Era Khruschev foi o responsável pela publicação da primeira obra de Soljenitsin, Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch (1962). Preferem enquadrá-lo como aquele que se rebelou contra Leonid Brejnev e contrabandeou para o Ocidente o Arquipélago Gulag, que lhe valeu o Prêmio Nobel da Literatura em 1970 e a expulsão da URSS, em 1974.


Se o exílio escolhido fosse a Alemanha e Suíça (para onde se dirigiu em seguida à expulsão), ou se tivesse optado por Paris e Londres, Soljenitsin não teria enfurecido tanto as sucessivas gerações de stalinistas. Ao escolher os EUA, ainda que enfurnado no interior do estado de Vermont, sem falar inglês, verberando contra o consumismo, o sensacionalismo da mídia e o materialismo americano, Soljenitsin enquadrou-se no estereótipo abominado pela militância fundamentalista de esquerda.


Intransigente nos princípios, rústico nas escolhas, desatento aos rebuscamentos e comprometido principalmente com a denúncia contra a violência política, não conseguiu ser festejado nos salões intelectuais nem pelos radicais-chique. Não cabia no labirinto das teorias estéticas nem nos esquemas ideológicos convencionais, impossível oferecer-lhe apoio e admiração. Melhor considerá-lo datado, filho da Guerra Fria, mero acidente na história literária do século 20.


Alma russa


Ficou o estigma de anticomunista e lacaio dos belicistas do State Department. Nem a aproximação com o cristianismo ortodoxo e a surpreendente identificação com o brutal esquema de Vladimir Putin (cria do Gulag) conseguiram reacender as perplexidades que provocou.


Nasceu quando acabava a Grande Guerra, sofreu todos os abusos produzidos pela Segunda Guerra Mundial e morreu no exato momento em que o Cáucaso, terra natal, corre o risco de incorporar-se ao Arquipélago das Guerras, a marca do novo século.


Soljenitsin é um desafio, a alma russa encharcada de contradições. Complicado demais para as simplificações.