ELEIÇÕES
Ivo Lucchesi (*)
É fato que a campanha para as eleições de 2002 terá início oficial a partir de junho, mês inglório e fadado a pleno alheamento. Nessa época, algo de "monumental" estará mobilizando o imaginário brasileiro para uma de suas mais intensas paixões: a Copa do Mundo. Não menos verdadeira a avaliação para os respectivos meses (maio e julho), razão de todo o frenesi que precede o "grande evento" e do que a ele sucede, seja qual for o resultado da competição. Em 6 de outubro, haverá a votação única para os cargos legislativos e, se necessário, um segundo turno para os cargos executivos, um dos quais é o posto máximo da nação.
O resumo acima deixa claro que não é apenas o futebol brasileiro o alvo de tanáticos calendários. Também a política é assim manobrada. Ambas as cenas dizem respeito a modelo reinante no Brasil, desde os tempos da fundação: o regime da tanatocracia. A única e substancial diferença a separar o futebol da política é que a esta cabe a montagem de planejamentos, uma espécie de "operação malha-fina", a mover todo um sistema a partir do qual o destino de milhões de vidas é decidido. Ora, num país cujo propósito, desde as origens, jamais foi o de emancipar a nação, é compreensível reservarem-se minguados dois meses para algumas discussões e pronto. Toca-se o barco no mar da tempestade. Em outros termos, La nave va... É pena que Fellini não tenha olhado com mais acuidade o "cenário cinematográfico" dos Trópicos. Não é menos lamentável que Kafka não tenha vivido mais tempo e, assim, pudesse haver passado uma temporada pelas "terras brasílicas". Bem, o cinema e a literatura ter-se-iam, sem dúvida, ainda mais abastecido por singulares vislumbres. Pelo menos, fica o consolo de havermos tido entre nós Glauber e Machado… Também estes, porém, se foram em épocas indevidas. Saíram da vida antes do tempo, ou chegaram cedo demais.
A democracia e a repetição
O tom indisfarçavelmente irônico com que se pautam os parágrafos anteriores teve o intuito de preparar o terreno reflexivo para o tema da miragem. Aqui é importante ressaltar a formação da palavra na condição original de verbo ("mirar") e de sua derivação para substantivo ("miragem"). Um simples sufixo altera radicalmente o significado primeiro. Enquanto "mirar" supõe um "olhar clínico e preciso", próprio de quem tenciona acertar o alvo, "miragem" se torna o "olhar enganado, iludido". Na miragem, vê-se o que se quer para, em seguida, amargar a dor de uma ilusão perversa. Vamos, portanto, transportar o ensinamento da língua pródiga à realidade fatídica e penosa.
Ao longo de dois meses, tempos e espaços serão divididos por milhares de rostos e nomes por esse continental país. Deputados (em âmbito estadual e federal), senadores (duas vagas por Estado), governadores, presidenciáveis e respectivos vices estarão amotinados na procura nervosa pela visibilidade possível. Está preparado o caldeirão da "feijoada política". O pacote, devidamente desenhado para produzir, no eleitorado, o estado de atordoamento, aguarda o momento solene. No final, corre-se o risco de o voto ser definido entre o "surto" e o "susto". Para agravar, os noticiários, programas e "debates" (com "n" regras estipuladas e distribuídas em parcos minutos e segundos) tenderão obviamente a pôr o foco prioritário na disputa presidencial, não menos infectada pela velha fórmula do "redentor", "salvador", "mártir" e derivados… As vozes que efetivamente vão, na cena política real e concreta, aprovar, bloquear, emendar, obstruir processos, projetos e votações estarão, quando puderem, confinados aos ridículos estilhaços de tempo televisivo, rediofônico, e estampados em centenas milhares de inúteis folhetos, panfletos, cartazes e "santinhos", tudo a espalhar-se pelos mais impensáveis redutos, enquanto alguém proferirá a sentença mágica: "É a festa da democracia!"
O tom assumido de "crônica", presente nos parágrafos anteriores, objetivou apenas reavivar a memória do eleitor, quanto a um enredo já exibido tantas vezes. Nada de novo, portanto. O breve relato situou os ingredientes que colaboram para desfazer o olhar enquanto alimentam a miragem. Esta é a que tem decidido, na maioria dos casos, as eleições proporcionais e, em todos os casos, as eleições majoritárias.
A imagem e a miragem
A história da "redemocratização" do Brasil, pelo menos até aqui, contrariamente ao que a mídia divulga, não tem servido à qualificação crítica do voto. O conceito de, quanto mais é exercido o voto, mais a escolha é aprimorada pelo eleitor não tem respaldo no processo histórico brasileiro. O fundamento em si é correto. Todavia, a aplicabilidade do fundamento à realidade cultural do país não o traduz como deveria. O voto crítico não advém do modelo maquínico do "ensaio / erro", e sim da mecânica binária do "estímulo / resposta". Há uma diferença conceitual e operacional entre ambas as modalidades. A primeira está associada a estágios de aperfeiçoamento cognitivo e perceptivo; a segunda diz respeito à sofisticação de quem codifica e à desqualificação cultural de quem decodifica ou responde.
A julgar o perfil cultural dominante no cenário nacional presente, não há o que festejar, a não ser o temor pela reedição (quem sabe até mais grave) da miragem, reforçada pelos "efeitos especiais" do marketing e da publicidade, compondo a maquiagem a ser ofertada à escolha do "iletrado sofrido" e do "letrado ingênuo". Este é o retrato-padrão do eleitor brasileiro. O "eleitor-crítico" atuará, como de hábito, na banda estreita que nada decide.
Como as identidades (ou entidades) concorrentes às eleições proporcionais, salvo um caso ou outro, ainda fazem parte da realidade invisível, centraremos breve análise relativa ao que é da ordem da visibilidade, levando em conta o que até o presente momento se tem revelado: os presidenciáveis. Sem muito esforço reflexivo, pode-se perceber quanto de peso decisivo tem o efeito da miragem, quando sugerida pelo fascínio da imagem. Vejamos…
A exemplo do ocorrido em 1989, com a "aparição" do desconhecido Collor (em luta contra os "marajás" e em defesa dos "descamisados" ? a retórica parece insinuar enredo de filme americano), e, em seguida, com a abstração mística do Plano Real a render dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, eis que, no limiar do século 21, irrompe, quase do nada, a miragem da "musa tropical". Pelo efeito de imagens de um "programa político", a "deusa" detona, no imaginário debilitado, a força de sua "sedução", o que a alavancou, de imediato, ao segundo lugar nas "pesquisas" (?). Agora, vive a tensão do sobe-e-desce, em razão das denúncias.
O "outro" (variante do atual), paladino da saúde, no país do mosquito letal, e à frente dos mais altos índices deficitários em saneamento público, é fruto da imagem oculta e da voz silenciosa. Até aqui, tem-se alimentado de suspense e articulações na calada da noite, ou seja, é uma miragem salpicada de tempero hitchcokiano.
Na banda oposicionista histórica, situam-se perfis não menos merecedores de configuração: à frente, a imagem já consagrada pela "mística salvacionista", martirizada por três derrotas consecutivas, é incensada por uma vociferante expectativa honesta ? é bem verdade ? mas frágil, porque apoiada em crenças voluntaristas. Digamos tratar-se de uma "miragem espiritual". Atrás, vem o jovial e aplicado governador, alimentado pela força-motriz da "miragem futurística", sabedor de que não é para o presente seu vôo para Brasília. Por último, a seguir os índices das "pesquisas" (?), a imagem que, até o momento, não agrega contaminações oriundas da "miragem". Pelas atuações públicas e midiáticas, a terceira opção, entre as trincheiras oposicionistas, tem procurado fixar o contorno de um perfil objetivo, apostando na associação entre a inteligência e a honestidade, com suporte em discurso enredado em torno de um "programa estratégico". Talvez, a ausência da dose de "miragem" revele a dificuldade em firmar a própria imagem, junto a um eleitorado educado pelo devaneio.
Assim, o quadro parece desenhado, deixando em aberto o reconhecimento para outras possibilidades de "leitura". Esta é uma delas, na expectativa de contribuir para, um dia, fazer valer a expressão majoritária do "voto crítico". Se a esse estado de consciência chegarmos, a sociedade brasileira, nessa hora, terá descoberto os benefícios da democracia. Em caso contrário, continuemos a votar como torcedores nas arquibancadas dos campos de futebol…
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.