TELEJORNALISMO
Paulo José Cunha (*)
É do nosso jeitão, sempre foi. A gente prefere deixar pra lá do que cobrar o que nos é de direito. É recente no Brasil a idéia de que se deve lutar. A consciência dos direitos individuais começou a se popularizar timidamente a partir de 1990, com a entrada em vigor do Código de Defesa dos Direitos do Consumidor. Autores de delitos contra esses direitos, que antes não eram incomodados, hoje já enfrentam o Procon, as procuradorias, os balcões de reclamações. Antes, ninguém nem se lembrava disso. Comerciante infrator nadava de braçada. O consumidor, ah, que se danasse. Mas as coisas andam mudando. Infelizmente, entretanto, a consciência desse direito não chegou ainda ao campo da informação, menos ainda ao da política.
Comecemos pela política. Se considerarmos a propaganda eleitoral como atividade sujeita à legislação ordinária, podemos imaginar a real possibilidade de alguém ir às barras dos tribunais reclamar o descumprimento das promessas de campanha com base no que preceitua o Código de Defesa dos Direitos do Consumidor no capítulo que trata da propaganda enganosa. Só para ficar num exemplo, o governador Joaquim Roriz, do Distrito Federal, venceu a eleição contra o candidato Cristovam Buarque ao prometer 28% de reajuste nos salários do funcionalismo, promessa que nunca cumpriu. Igualzinha à do danoninho, que a propaganda prometia valer por um bifinho. Quando foram ver, mal valia por um grão de arroz, e a Danone se estrepou. Será que um bom advogado não podia entrar com uma ação acusando o governador pela prática de propaganda enganosa e fazê-lo pagar pelo crime? Ou mesmo acionar o Conar, o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária?
Não se conhece o caso de ninguém ter ido bater na porta da justiça para reclamar o direito líquido e certo de ter acesso à informação livre e isenta, sobretudo a produzida por empresa de radiodifusão beneficiária de concessão estatal. Mas bem que podia, eis que a legislação assegura ao cidadão esse direito. Ainda outro dia, quando algumas emissoras baianas de televisão omitiram as informações favoráveis à cassação de ACM, repassando apenas as versões dele e de seus paus mandados, bem que um baiano arretado podia ter entrado com uma ação desse tipo. Afinal, foi lesado em seu direito à informação completa. Tal como um maranhense aperreado podia ajuizar contra as emissoras maranhenses de tevê que só transmitiram o discurso de José Sarney e cortaram a transmissão quando o senador Artur da Távola subiu à tribuna e apontou o dedo para a oligarquia que domina o belo estado de Gonçalves Dias há algumas décadas. O detentor de concessão estatal tem a obrigação de fornecer informação completa ao público que, em última etapa, é seu patrão, pois é seu mantenedor.
Na mesma área, já que a regionalização da produção televisiva e radiofônica é constitucionalmente assegurada, nada impede que alguém lá da Amazônia se sinta incomodado pela enxurrada de informação marcada pelo traço de cultura do eixo Rio-São Paulo, distribuída (ou seria melhor dizer imposta) para todo o país, e exija eqüidade no conteúdo do produto que recebe. Quando veículos de comunicação de caráter semi-oligopolísticos disseminam costumes, conceitos e valores de uma única matriz cultural brasileira, ameaçando as nuances regionais, estão ou não cometendo um delito? Será exagero afirmar que tal comportamento é como ajudar a derrubar edifícios de importância histórica para, em seu lugar, erigir arranha-céus de cunho estritamente utilitário? Será que um telespectador do Piauí não tem o direito de "se ver" na televisão tanto quanto todo dia "se vêem" os felizes moradores de Ipanema?
A lição de Orwell
É bom lembrar que é com a aquisição e o uso dos produtos e serviços anunciados por esses veículos que seus donos fazem fortuna. Quem adquire esses produtos e usa esses serviços mora no Rio de Janeiro, mas também mora em Itaituba, no Pará. O gatão sarado das pedras do Arpoador, no Rio de Janeiro, e a caboclinha cor de jambo da beira do Tapajós, em Itaituba, têm exatamente os mesmos direitos, concorda?
Além disso, ainda está por aparecer quem comece a exigir simplesmente o cumprimento do dispositivo constitucional que define as finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas como princípios básicos a serem obedecidos pela programação das emissoras de rádio e tevê. Vai que um juiz de bom senso perceba a justiça contida no pleito e sente o pau nos infratores? Que belo precedente!
Tudo isto pode parecer apenas um grande delírio. Mas foi com um delírio deste tipo que o advogado criminalista Heráclito Sobral Pinto tirou da cadeia do Estado Novo o líder comunista Luiz Carlos Prestes. Sobral Pinto botou Prestes em liberdade invocando, na época, a Lei… de Proteção aos Animais!
Ainda bem que temos legislações mais modernas para aplicar. Mas é bom não esquecer que os princípios da Lei de Proteção aos Animais estão em pleno vigor, agora mais aperfeiçoados ainda com a adoção do Código Ambiental. Se as outras legislações não forem suficientes, a gente pode invocar nossos direitos de animais. Orwell nos ensinou que, na condição de bichos, podemos fazer uma revolução.
(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>