Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Revista falastrona, cobertura beócia

VENEZUELA, GOLPE E CONTRAGOLPE

Luiz Antonio Magalhães

A reportagem sobre a crise na Venezuela que saiu na última edição da revista Veja (1.747, com data de capa de 17/04/02) merece ser transformada em "case", como gostam de dizer os moderninhos, de anti-jornalismo. Devia ser objeto de estudo em todas as escolas de Comunicação do país. Senão vejamos.

"O falastrão caiu" é a falastrona manchete da reportagem. "Multidões nas ruas e rebelião militar tiram Hugo Chávez da Presidência da Venezuela", completa o subtítulo. Ora, na sexta-feira, data de fechamento do semanário da Abril, qualquer foca sabia que Chávez fora vítima de um golpe militar. Os responsáveis pela revista também sabiam, é claro, mas preferiram comemorar uma vitória que julgavam definitiva.

Sim, o verbo é este mesmo: Veja comemorou a quartelada contra um presidente eleito pelo voto popular. Aliás, comemorou e mentiu: "Na quinta-feira passada, uma multidão de 200.000 venezuelanos, arregimentados por sindicatos de patrões e empregados, marchou para o palácio presidencial e foi recebida a bala por partidários do presidente. Morreram quinze manifestantes e 350 ficaram feridos. Na madrugada de sexta, com a nação mergulhada em comoção cívica, uma rebelião militar forçou Chávez a renunciar e ele foi aprisionado num quartel na periferia de Caracas, a capital do país. O destino dramático do presidente contém certa dose de justiça: há dez anos, quando era tenente-coronel do corpo de pára-quedistas, comandou uma sangrenta tentativa de golpe de Estado. Agora, sentiu na pele o peso da insubordinação nos quartéis", escreve a revista.

Chávez, como já se sabe, nunca renunciou à presidência da Venezuela. Foi preso, vítima de um golpe militar em nada diferente de tantos outros que a América Latina cansou de viver. Desta vez, porém, a força das massas "bolivarianas" foi maior e aconteceu o oposto do que Veja reportou: "Chávez é o terceiro presidente sul-americano a ser corrido do palácio pelo povo nas ruas em apenas quatro meses", diz o semanário, quando, na verdade, Chávez foi é trazido de volta ao palácio pelo povo nas ruas. Na seqüência, Veja opta por uma "pseudoanálise" em que, para arrepio de qualquer estudante de ciência política, episódios completamente diversos como a fuga de Fujimori do Peru, a renúncia de Fernando De La Rúa na Argentina e o assassinato do vice-presidente paraguaio, além do golpe contra Chávez, são tratados como fenômenos semelhantes. Este erro, é bem verdade, não foi exclusivo de Veja, já que a revista concorrente ? a global Época ? levou a mesma comparação para a sua capa.

Veja, ao contrário de Época, no entanto, editorializou a crise na Venezuela e não conseguiu disfarçar o contentamento com o levante no país vizinho, sem deixar de tirar algumas "lições" para o Brasil ? uma marca registrada do estilo Veja de jornalismo. "Com uma vizinhança tão encrencada, o esforço do Brasil para se provar um país estável aos olhos dos investidores estrangeiros e criar barreiras contra o estigma terá de ser redobrado. ?Tomara que a queda de Chávez represente uma vacina contra salvadores da pátria na região?, disse a Veja Andrés Oppenheimer, colunista do jornal americano Miami Herald e respeitado especialista em América Latina", escreveu a revista. Só faltou dar os nomes dos "salvadores da pátria": Lula, Ciro, Garotinho, enfim, qualquer um que não se chame José Serra.

A revista fecha a "reportagem" sobre a crise venezuelana com a mesma "objetividade" com que começou: "Chávez se considerava um Robin Hood bolivariano. Era mais um bufão, que entretinha o povão com programas de televisão em que se comportava mais como animador de auditório do que como presidente. Sua queda foi recebida como boa notícia no mundo: melhorou o índice risco país da Venezuela, a bolsa de Caracas disparou (alta de 8%) e o preço internacional do petróleo caiu 9%".

Na receita de jornalismo de Veja, importa mesmo ouvir a voz do Mercado. Para os responsáveis pela revista, a Constituição rasgada, o Parlamento fechado e até mesmo a Justiça impedida de exercer a sua função não significam coisa alguma, não justificam sequer uma linha de repúdio, se o Mercado assim o desejar. Aliás, não deixa de ser irônico que, junto com Veja, o FMI tenha sido dos primeiros a comemorar o golpe contra Chávez ao oferecer imediata ajuda ao "presidente" Carmona. Mas o mais grave é outro paralelo: se Veja e o FMI se comportaram de maneira tão eufórica no tratamento de um golpe de Estado na Venezuela, nada indica que possam de comportar de outra maneira se a quartelada for no Brasil.

A volta de Chávez ao poder, porém, mostra que a revista falastrona vai ter que engolir mais esta "barriga". Veja não anda com muita sorte: bancou a "overdose" de Cássia Eller, mas a moça morreu de infarto. Insinuou que a morte de Celso Daniel tinha relação com um suposto "escândalo" de corrupção na prefeitura de Santo André, mas o prefeito foi vítima de bandidos comuns.

Apesar de tudo, Veja segue líder absoluta entre as revistas semanais do Brasil. Nem a editorialização das reportagens, nem as "barrigas" e informações desencontradas tiram da revista o seu apelo de venda. Talvez o problema de Veja não esteja na falta de pudor de quem a produz, mas na falta de inteligência e discernimento de quem a consome. Se alguém quiser pesquisar mais a fundo, vai descobrir que as vendas de Veja têm muito a ver com a má qualidade da Educação no país. Afinal, a capacidade de manipulação é diretamente proporcional à ignorância do manipulado.