Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Temas de saúde", copyright Diário de Notícias, 8/4/02

"O denominado ?surto de meningite? que percorreu as notícias, sobretudo nas televisões, durante quase todo o passado mês de Fevereiro, provocou reacções vivas e desencontradas, quer de analistas, quer da classe médica, quer das autoridades oficiais, tendo mesmo, na primeira fase da campanha para as eleições legislativas, constituído um tema de polémica e diferenciação entre partidos. Não admira, pois, que, em tal ambiente, a confusão reinante se transmitisse às notícias, independentemente de terem sido, ou não, elas a criar a situação de pânico que quase se viveu nessa altura. A provedora não realizou, nem conhece, qualquer estudo sobre a origem das primeiras notícias do ?surto?, que confirme, ou contrarie, a ideia de que tenham sido os media a provocar a situação. Contudo, ao reler as notícias publicadas nos jornais verifica-se que a ideia prevalecente nas declarações dos responsáveis de saúde apontavam para a responsabilização dos media, em especial das televisões, pelo alarmismo instalado no País, que a seu ver, não se justificava.

O leitor Sérgio Faria reagiu à capa do DN, de 20 de Fevereiro, que, a toda a largura, anunciava Meningite/6 mortos/Médicos aconselham vacina dos 0 aos 20. Era, graficamente, um título esmagador, pela força que a cor e dimensão dos caracteres imprimiam à palavra ?meningite?.

?O DN podia ter feito esta capa o ano passado, em que o número de crianças mortas foi semelhante?, diz o leitor. ?Como se vê na própria noticia, não há epidemia nenhuma em Portugal, a não ser na comunicação social?, acrescenta Sérgio Faria, referindo-se às declarações e aos números apresentados pelo próprio jornal.

O director do DN, Mário Resendes, considera que ?o título era puramente factual?, além de que o jornal ?não foi caso isolado?, dado que ?toda a comunicação social deu relevo aos casos de meningite?. Segundo o director, ?o próprio ministério enfrentou o problema com uma atenção sem precedentes?. Acrescenta Mário Resendes que ?se a vacina pode salvar pelo menos uma vida, é obrigação dos media alertar nesse sentido?.

A análise da cobertura jornalística deste caso reveste-se de particular dificuldade, em primeiro lugar, por se tratar de um tema de extrema sensibilidade, sobre o qual qualquer raciocínio de natureza exclusivamente racional corre o risco de ser rejeitado. De facto, nenhuma voz autorizada surgiu, nessa altura, a afirmar, categoricamente, que a vacinação era desnecessária e que o ?surto? estava controlado, apesar de a generalidade dos responsáveis de saúde se pronunciar contra a existência do ?surto? e ter esclarecido que a eficácia das vacinas não era total. Mas, os depoimentos de pais aflitos, correndo para as farmácias e centros de saúde, mostrados exaustivamente pelas televisões, e o clima emocional que se gerou, tornavam impossível a imposição de qualquer ideia que não fosse a necessidade imperativa de vacinação das crianças. Não havia, pois, argumentos que pudessem sobrepor-se às notícias que, diariamente, falavam do ?surto? e da necessidade de proteger as crianças através da vacina, situação que era agravada pela imagem de indecisão e incerteza dos responsáveis governamentais que passava nos media.

E, no entanto, algumas das declarações iniciais desses responsáveis, na altura mal recebidas pela opinião pública, e notícias que foram vindo a público, indiciavam que o ?surto? de que falavam os media podia ter origens e causas bem mais prosaicas do que o desejo de alertar a população para uma situação de risco que, supostamente, atingia as crianças e os jovens portugueses. A componente económica do assunto foi ganhando terreno, não sendo, ainda, claro, pelo menos para o comum dos cidadãos, onde se situa, em toda a trama dos acontecimentos, o interesse público – isto é, a necessidade e a possibilidade de impedir, ou travar, um surto de meningite (que os números nunca provaram) – e os interesses económicos de instituições com poder de influenciar e usar os media. Mas, deve reconhecer-se, nenhuma autoridade oficial se credibilizou, no decorrer do processo, como podendo ser escutada com confiança, pela população.

Como tantos outros casos, talvez o público nunca venha a saber como nasceu o ?surto?, e como chegou aos jornais, rádios e televisões. Entretanto, continuam a surgir nos jornais notícias que ajudam a levantar a ponta do véu: por um lado, os dez milhões de euros gastos em vacinas para a meningite só nos dois primeiros dois meses deste ano – mais doses do que em todo o ano passado, segundo a agência Lusa; por outro, ?as fragilidades? apontadas pelo Ministério da Saúde ao estudo em que se baseou grande parte das notícias sobre o ?surto? e a urgência da vacinação, segundo noticiava o DN no passado dia 28.

Os cidadãos, em geral, e os leitores do DN, em especial, mereceriam, sobre o assunto, o esclarecimento que, obviamente, a provedora não pode dar-lhes.

Quanto à capa do DN, que motivou o protesto do leitor, ela pretendeu ser, como refere o director, um alerta para as famílias. Mas, tudo indica, essa capa serviu mais os interesses económicos dos promotores das notícias do que o interesse dos cidadãos.

Esta situação não ocorreu, apenas, com o DN e não é fácil de evitar. Mas pode ser minorada, recuperando uma ?máxima? do jornalismo, que diz que a fonte é sempre parte interessada.

Bloco-notas

Audiências ? ?Se a audiência do seu canal de TV for baixa, transmita uma ?estória? sobre saúde ou medicina. Se for, realmente, muito baixa, transmita duas.? Esta frase é da autoria de Tom Bettag, produtor executivo da CBS, e surge citada num artigo de Trudy Lieberman dedicado à cobertura de novas descobertas no campo da saúde, publicado na Columbia Journalism Revue. Segundo o autor, os jornalistas que cobrem esta área são, muitas vezes, vítimas de poderosas máquinas de relações públicas que representam interesses económicos muito fortes. A divulgação de um produto, ou tecnologia, que ainda não deram provas clinicamente efectivas, gera enormes lucros para os fabricantes e cria uma situação dificilmente reversível, diz o autor. Torna-se, então, muito difícil, aos cientistas e médicos esclarecer a situação e explicar o que pode ser considerado como seguro e o que é, ainda, incerto. Os jornalistas não ajudam, diz Lieberman. Muitas vezes, omitem informações sobre o grau de incerteza que caracteriza muitas descobertas e tratamentos. A maneira como são tratados os temas de saúde pode ajudar a criar audiências, diz o autor, mas contribui pouco para ajudar o público a compreender a sua complexidade.

Pecados mortais ? O citado artigo aponta ?sete pecados mortais? do jornalismo, na cobertura dos assuntos de saúde e medicina. O primeiro consiste em acentuar o lado positivo das descobertas e ignorar o lado negativo. O autor explica o que pretende dizer: muitas notícias sobre questões médicas saem dos gabinetes de relações públicas ?prontas a transmitir?. O seu objectivo é vender um produto, pelo que possuem um enquadramento positivo, mostrando o produto como se fosse milagroso ou incontornável. Na sua ânsia de divulgar uma nova descoberta médica, muitos órgãos de comunicação social não procuram saber mais e desvalorizam, ou omitem, os aspectos negativos, mesmo quando existe evidência científica de que o tratamento não é efectivo.

Testemunhos ? O segundo ?pecado mortal? é a generalização de casos pessoais. Muitas vezes os vendedores de novos produtos, ou tecnologias, recomendam a apresentação de testemunhos de pessoas que beneficiaram do produto.

Ora, a maior parte das vezes, tais testemunhos surgem como se o tratamento podesse ser usado por todas as pessoas, quando isso nem sempre é claro. Outros ?pecados? são: a incapacidade dos media de reconhecerem a fraqueza de alguns estudos científicos, dos quais, muitas vezes, não se conhece o nível de rigor; a dificuldade na interpretação dos números e a não divulgação dos conceitos utilizados, indispensáveis à compreensão desses números; a ausência de informação sobre conflitos de interesses por parte das fontes, isto é, a existência de ligações financeiras entre os fabricantes e os vendedores dos produtos; a confusão entre um resultado intermédio e uma conclusão definitiva; e o destaque dado a informações enganadoras e susceptíveis de causar prejuízo à saúde."