A NOVA CENSURA
André Azevedo (*)
A trama de O nome da rosa, romance de Umberto Eco, traz metáforas luminosas sobre o problema do controle da informação. Ambientada no auge da Inquisição, a história mostra o padre William sendo chamado para investigar mortes misteriosas num mosteiro. Todos os sacerdotes assassinados tinham em comum a ligação com a difusão da informação. O tradutor de grego, que se dedicava à obra de Aristóteles, é uma das vítimas mais simbólicas.
A obra desse filósofo era especialmente temida por atribuir à comédia o status de expressão da verdade. Essa teoria confrontava todo o código do comportamento da ordem religiosa responsável pela guarda dos livros. Para eles, o riso era inadmissível. Um sacerdote deveria se manter sempre carrancudo. Portanto, a atitude do bibliotecário-chefe consistia basicamente em negar a existência da obra.
Uma questão surge, entretanto: por que simplesmente não destruíam esses livros proibidos? Não o faziam justamente por terem noção de sua preciosidade e, talvez, até mesmo admitissem, em segredo, a validade dessas teorias. Além disso, dominar esses conhecimentos seria fundamental para detectá-los ainda no nascedouro, caso surgissem de forma espontânea nas discussões teológicas no mosteiro. Portanto, a importância da informação não estava no valor em si, mas na agilidade da repressão que seu domínio garantiria. Não era a “verdade” o que os sacerdotes buscavam, mas a racionalização teórica que justificasse e garantisse a manutenção de seu poder.
Inimigo a favor
O filósofo Jean-François Revel, em O conhecimento inútil, lembra que, nos regimes totalitários, “os dirigentes e a imprensa do Estado enganam a sociedade; mas os governos não conduzem sua política segundo suas próprias mentiras. Eles estão diante de outros documentos” . Da mesma forma, os padres que conheciam o teor do livro sabiam do potencial iconoclasta ali guardado e, por isso mesmo, estudavam-no secretamente e dificultavam o acesso a ele.
Contudo, o escritor Alexandre Zinoviev, na fala de um personagem do livro Para Belum, escreve que, na arte de enganar pela desinformação, “o inimigo deve agir como nós desejamos, completamente convencido de que age segundo sua própria vontade e contra nossos interesses”. A desinformação estratégica, nas palavras de Revel, “consiste em se fazer com que seja o próprio adversário, ou, então, alguém neutro quem primeiro torne pública a falsa notícia ou sustente a tese que se deseja propagar” .
Essa estratégia se mostra mais eficiente do que a censura explícita no controle da informação. Nilson Lage, em A estrutura da notícia, aparentemente reforça essa tese ao escrever “a censura não elimina o fato cuja divulgação proíbe, nem impede que ele se repita ou tenha conseqüências, quando é determinado por estruturas sociais. No máximo, pode protelar o processo”.
Moral volúvel
De fato, todas as iniciativas do poder para censurar as informações mostraram-se ineficientes a longo prazo. Onde há coerção há resistência. Na obra de Eco, a negação da existência do livro fez atiçar a curiosidade do investigador. Quando o Estado, ou os grupos econômicos, tornam-se conscientes da ineficiência desses métodos coercivos, desenvolvem novas formas de censura, mais sofisticadas e eficientes, que garantam efetivamente o sigilo desejado. E uma forma eficiente consiste em estimular mais e mais informações na selva louca de notícias, artigos, boatos, notinhas, fofocas, mentiras, meias verdades e desmentidos na imprensa.
A obsessão ideológica de que o sujeito bem-informado deve estar “por dentro de tudo”, que circula na mídia, inspira a análise de dois fenômenos cujas características parecem ser muito semelhantes à censura. Primeiro: desinformação ? pois a metástase de versões, opiniões, análises, contradições e interpretações superficiais freqüentemente se contradizem e anulam a tomada de posição individual fundamentada acerca de qualquer assunto. Essa dispersão aleatória de informação, em vez de oferecer referências sólidas para embasar o conhecimento, estaria criando labirintos indevassáveis. Sabe-se pouco ou quase nada de muito ou quase tudo. Conhecemos mil pontas de iceberg e ficamos satisfeitos com a racionalização que fazemos a partir desses fragmentos.
O excesso de informação pode estar causando, por outro lado, um relativismo absoluto, ou, como escreveu o filósofo Gilles Deleuze, uma moral volúvel, o que levaria ao segundo fenômeno: sentimento de impotência ou apatia ? pois a constelação de informações inviabiliza a hierarquia de valores do receptor, impossibilitando-o de avaliar o que é de fato fundamental e o que é supérfluo. Futilidades circulam ao lado de grandes questões da humanidade com idênticos formatos, espaços editoriais e repercussão. A notícia importante desaparece encolhida sob a multiplicação infinita de fofocas, notinhas sobre celebridades, rusguinhas teatrais entre políticos, declarações oficiais etc.
Tempos irônicos
A nova censura entranha-se na esfera individual da hierarquia de valores do receptor. Da mesma forma, seu protesto se dissolverá no oceano de informações da mídia. Uma denúncia social, lançada nesse maremoto, esvai-se como uma gota e é esquecida para que, amanhã, o mesmo espaço editorial noticie a namorada nova do governador. A censura do poder se torna, portanto, contraproducente, pois serviria como uma anti-referência axiológica, traria ao assunto censurado uma visibilidade inconveniente. A nova censura não oferece resistência. Pelo contrário, agrega, inclui, hipertrofia, quer mais e mais, até encobrir a informação indesejável sob um mar de futilidades agradáveis, rotuladas de informação. Se a antiga censura dava um tapa na cara, a nova oferece doces.
Uma eficiente técnica de marketing, muito utilizada atualmente para alcançar visibilidade, é justamente provocar algum tipo de proibição. Há pouco tempo, uma associação de enfermeiras entrou com pedido na Justiça para vetar numa revista a publicação de fotos de uma mulher nua que tinha o apelido de “enfermeira”. Poucas pessoas conheciam essa personagem até então. O processo foi um grande salto na carreira da modelo. A repercussão perdurou mais do que se o fato tivesse seguido seu curso natural de instantaneidade midiática, tanto que aqui estamos falando dela. Um caso recente foi o desejo manifestado pela Riotur de processar os criadores do desenho animado Os Simpsons, por considerar um dos episódios da série uma ofensa ao Brasil. Quem nunca havia ouvido falar desse desenho agora está ansioso para vê-lo.
Irônicos os novos tempos. Para censurar, informe ao infinito. Para divulgar, faça com que queiram censurá-lo!
Referências
REVEL, Jean-François. O conhecimento inútil: a comunicação é o contrário da informação?, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1991, pp. 271, 338, 338.
LAGE, Nilson. Estrutura da notícia, São Paulo, Ática. 1993, p. 56.
(*) Estudante de Jornalismo da Universidade de Uberaba, MG