Ao que parece, e as várias matérias publicadas neste Observatório confirmam (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui): pensar uma emissora de televisão pública exigirá muitas, e sérias, discussões.
Segundo os especialistas, não temos um modelo de grade, e os exemplos de boas idéias ainda são raros. Aqueles que, pelo menos, sejam sedutores e estimulem à reflexão e, ou, ao pensamento da condição humana do espectador. Porém, importante, sem idiotizá-lo mais ainda.
Sem querer discordar, mas querendo lembrar, o Canal Brasil (afora a exibição dos filmes nacionais, bons ou não…), aos poucos, vem achando um jeito de fazer uma TV muito interessante. Nela, de forma leve e criativa, exibindo curtas, música, arte e discussões comportamentais, além do Sem Frescura, com o Pereio, que por si mesmo é o máximo, o Brasil é o seu personagem principal. Mas, me parece que por falta de visão dos responsáveis da Cable, o canal fica ‘escondido’, tanto quanto o Globo Rural, que está numa TV aberta, mas se esconde na grade às 8 da manhã de domingo.
O deus Celebridade
(Esta questão abriria um parêntese quilométrico: bons ‘produtos’ merecem bons horários na grade? Não merecem chamadas diferenciadas? Merecem audiência? Ou são bons, limitadamente, porque a audiência no horário é cativa e garantida? Outras audiências merecem bons produtos, ou será melhor compartimentá-las para efeito de simplificação da mensuração do índice de telespectadores? Seria perigoso, para quem ampliar o espectro de interesses, qualificar a audiência pela multi-diversidade-cultural?)
Essa TV que aí está faz de conta que nos faz companhia. Afaga nossa cabeça. Faz de conta que sabe quem somos e, ‘muito amiga’, durante 24 horas por dia, nos apresenta centenas de heróis (e anti-heróis) para nossa escolha. Mas é bom lembrar que, além dos aviões de carreira, há um novíssimo tipo de herói nos céus: a Celebridade, que, sem nenhuma característica dos heróis míticos conhecidos, só é heróica porque ‘entrou, viu e venceu’ na selva midiático-televisiva.
Associando idéias, intuo que a mídia televisiva agora represente uma inédita versão do cruzamento do Minotauro com a baleia de Jonas. Ele, um devorador de donzelas, ela, o símbolo do inconsciente, o negro, profundo abismo, o misterioso lugar onde o herói precisa ir para garantir seu renascimento. Ao homem comum, ambicioso, ou talentoso, ou mesmo ainda, doente, resta o papel do herói que, a duras penas e muito sacrifício, vai conseguir penetrar no ventre do inimigo. Foi assim que surgiu aquele que hoje atingiu Olimpo, o novo herói: o deus Celebridade.
Solitários, medrosos e preguiçosos
(Me parece óbvio e desnecessário citar os famosos ‘mitos iniciativos’ como o teste do sofá, ou as filas de quarteirões a pão e água para os candidatos a uma figuração inexpressiva.)
Pela janela da TV tudo é superlativo. Ela está cheia de gente mais bonita, famosa, rica, pobre, forte, fraca, burra ou mais brilhante que você e eu. Mesmo entre essa multidão de iguais, todos nos sentimos solitários. Somos tão preguiçosos, carentes, insatisfeitos e medrosos quanto eles. E, como precisamos de referências, mitos e heróis para neles projetarmos nossas incapacidades e insatisfações, é a TV, boazinha, que nos oferece ‘a salvação’.
A TV só existe porque existem telespectadores como você e eu. E teima em existir dessa forma porque faz de conta que nos respeita, e nós, quase sempre, sem nos respeitarmos, acreditamos.
Feita por homens tão limitados quanto nós, que não temos coragem de desligar a TV e procurar outra distração menos irritante e indignante, a TV é, nada mais nada menos, que uma imagem plasmada e ampliada da parte mais pobre e medíocre do nosso inconsciente coletivo.
Mesmo assim, a todo instante algum gênio televisivo bem-sucedido profere alguma frase ofensiva sobre o nosso perfil. E alguém, como você e eu, que por razões óbvias nos enquadramos no citado perfil, se irrita com o que leu ou ouviu. E continuamos solitários, medrosos e preguiçosos, procurando alguma programação que nos faça sentirmos melhor. Nossa indignação não serve para nada. Você faz de conta que está indignado, muda de canal e a TV faz de conta que sabe disso e, na hora seguinte, a pedidos, muda a programação.
Um desafio quase intransponível
Por volta dos anos 50, quando os profissionais de rádio migraram para a TV, tiveram que fazer uma adaptação de suas técnicas de comunicação para o novo veículo que surgia. De lá para cá, o rádio, em geral, evoluiu (?). Ficou ‘gritado’ manchetado e cheios de ‘cariocas’, cheios de érrixx e éssixx, mas pelo menos cumpre seu papel: hora da notícia é hora da notícia. Mas os precursores da TV trouxeram com eles idéias do rádio que, até hoje, podem ser vistas na TV.
Tirante o vídeo tape e a miniaturização do equipamento sem perda de qualidade, ainda vemos a velha novela radiofônica; nela, vemos o locutor das notícias (não confunda com jornalista) que ainda precisa de uma voz grave – existem trezentos programas de auditório, duzentos de calouros e cem programas de entrevistas. De fato, a TV como ainda é feita, de nova não tem nada.
Há já algum tempo, imaginei um mecanismo de compreensão e avaliação psicológica dos resultados na audiência de uma determinada programação televisiva num determinado horário.
Um dado, explicitado por um terapeuta meu conhecido, havia me chamado a atenção: o dia mundialmente preferido para o suicídio é o domingo. Seu horário? Entre seis e oito da noite. Exatamente a hora em que, aqui no Brasil inteiro, começa o Fantástico.
Pela explicação que ouvira, o fim do domingo ‘promete e garante’ ao indivíduo depressivo, um desafio quase intransponível: uma nova segunda-feira de expectativas negras e outra imensa semana de sofrimento.
Novos horizontes para reflexões
Ou seja, se um suicida brasileiro vencer a compulsão de se matar até as 20 horas e ligar a TV no Brasil, depois da ‘escalada’ do programa domingueiro, certamente, às 20:05 horas consumará seu desejo.
Unindo este fato estatístico, mais a forma de avaliação de aproveitamento escolar e a facilidade do mecanismo do Ibope minuto-a-minuto, imaginei o telespectador apertando um botãozinho no seu controle remoto e ‘avaliando’ seu estado de espírito, seu nível de satisfação ou insatisfação com as informações adquiridas ao fim do que havia assistido.
E fui conversar com um amigo, o psiquiatra Gustavo Barcellos, tradutor de Cidade e Alma, de James Hillman. Nem sei se me expressei bem, ou se estava excitado demais com a idéia e meu discurso pareceu demasiado caótico. Sei que o Gustavo ficou me olhando com aquele ‘olhar de paisagem’, aquele olhar perdido através de outros assuntos que não aquele que me levara a papear com ele. Senti-me um utópico, bobo, inútil, solitário. Pensei no suicídio.
Exageros a parte, qualquer coisa nesse sentido, depois de uma leitura feita por especialistas, seria capaz de balizar os tais novos caminhos para uma programação interessante, produtiva e sedutora na TV Pública. A máxima democrática ‘O poder emana do povo, para o povo’, se fosse aplicada honestamente na TV, abriria novos horizontes para estas reflexões.
Ou nós, que nos ocupamos do assunto, continuaremos fazendo de conta que somos a Maria Antonieta até que sejamos guilhotinados por uma multidão enfurecida?
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Compositor, educador e jornalista, Delfinópolis, MG