Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma nova ética para uma nova modernidade

JORNALISMO EM CRISE

Bernardo Kucinski (*)


Texto preliminar, para discussão,
sujeito a correções e revisão. Redigido
para a abertura do V Fórum Nacional de Professores de
Jornalismo, em Porto Alegre, 28/4/2002. Intertítulos
da Redação do OI.


O jornalismo brasileiro vive hoje uma crise ética muito
especial. Mais do que a incidência de desvios éticos
pronunciados, a característica dessa crise é o vazio
ético. Nas redações, deu-se uma rendição
genralizada aos ditames mercantilistas ou ideológicos dos
proprietários dos meios de informação. O liberdade
de informar e o direito de ser informado, canonizados na Declaração
Universal dos Direitos do Homem e erigidos em ideologia dos códigos
de ética jornalística nos mais diversos países,
tornaram-se letra morta.

Não por acaso, esse novo ambiente ético no jornalismo
é adequado aos valores do neoliberalismo econômico
e foi instrumental ao seu processo de implantação.
Nesse sentido é um equívoco considerar o vazio ético
das redações uma disfunção do jornalismo.
Ele existe porque tem uma função. E resulta de um
embate ideológico que se dá além da esfera
estrita da comunicação, um embate entre propostas
divergentes de civilização e de organização.

No dia-a-dia, o vazio ético é reforçado por
mecanismos diversos entre os quais o fim da demarcação
entre o jornalismo e assessorias de imprensa, a fusão mercadológica
de notícia, entretenimento e consumo; a concentração
de propriedade na indústria de comunicação,
a crescente manipulação da informação
por grupos de interesse e principalmente a mentalidade pós-moderna.

Quando aceitei o convite, que tanto me honra, para esta aula inaugural
, já tinha algumas dessas idéias delineadas. Mas o
que me levou realmente a aceitar o convite de bom grado, como uma
oportunidade feliz e não apenas como mais uma tarefa, foi
um incidente ocorrido algumas semanas antes, que desencadeou um
profundo processo de revisão das minhas ideais sobre o problema
da ética no nosso jornalismo. É disso que pretendo
tratar hoje. Antes, preciso explicar quais eram minhas idéias
sobre a ética jornalística.

Confesso que era um fundamentalista
no tocante á ética jornalística. Minha paixão
pelo jornalismo foi tão absoluta que vesti a camisa da ética
jornalística como uma ideologia, no sentido mesmo de camisa-de-força,
conforme denunciado por Cornelius Castoriades. Ou seja, eu me colocava
dentro da ética jornalística, e por isso não
a podia ver criticamente ou como parte da ideologia de uma época
ou fé de uma hegemonia datada. É bom que o jornalista
se coloque dentro da ética de sua profissão, mas o
professor e acadêmico deve poder olhá-la também
de fora. Quem me chamou a atenção para o caráter
"idealista" de minha postura foi o professor e colega
Manuel Chaparro. Não o refutei na ocasião, mas sua
observação foi fazendo um lento estrago nas minhas
convicções.

Nessa concepção idealista
eu pregava que o jornalismo é uma atividade que se define
por uma ética e não por uma técnica. E que
essa ética é formada por um imperativo categórico,
ou seja um preceito universal de conduta aplicável em todas
as circunstâncias, e que não admite adaptação
ou compromisso. É o imperativo categórico da verdade.
Por esse imperativo, o jornalismo existe para socializar as verdades
de interesse público, para tornar público o que grupos
de interesse ou poderosos tentam manter como coisa privada. O absolutismo
dessa ética pode ser sentido por uma de suas implicações,
a de que o jornalista não é responsável pelas
conseqüências da divulgação de uma verdade
de interesse público, seja ela qual for. Mas é responsável
e até cúmplice das conseqüências de não
ter socializado essa verdade de interesse público. Na minha
ética jornalística absolutista, o valor responsabilidade
não é simétrico.

É uma ética kantiana, na qual o valor verdade transcende
todos os demais valores e se coloca de modo absoluto. E por que
a ética kantiana se aplica ao jornalismo? Porque se o jornalista
começa a ponderar sobre as conseqüências das verdades
que tem a dizer, sobre a conveniência de revelar parte da
verdade e omitir outra, começa a assumir um outro papel social
? deixa de ser jornalista para ser um censor e um juiz daquilo que
o povo deve ou não deve saber. Na ética kantiana,
não cabe esse julgamento. A verdade não pertence ao
jornalista, que apenas recebeu um mandato da sociedade para procurar
os fatos, e até certos privilégios éticos para
executar esse mandato, como o direito de bisbilhotar na vida alheia
ou de surrupiar certos documentos desde que a serviço do
interesse público.

A vida como meta-narrativa

Na cultura anglo-saxônica, em que essa ética jornalística
prosperou e ganhou status de ideologia do jornalismo, há
até mesmo duas etimologias para expressar o valor responsabilidade,
na ética do jornalismo, em sua relação como
valor verdade; fala-se que o jornalista deve ser " accountable"
por suas ações, mas não é " responsible"
pelas verdades que revela. Poderíamos traduzir como: o jornalista
é responsável
por todos os seus atos, mas não pode ser responsabilizado
pelas conseqüências de ter revelado verdades. Ou poderíamos
dizer: a responsabilidade do jornalista esgota-se no ato de revelar
a verdade.

Explico tudo isso que já se sabe, até de modo um
pouco maçante, para mostrar que essa ética é
fundamentalista: não permite nenhuma redução
da verdade, nenhum compromisso, sob nenhum pretexto, porque por
definição isso não é necessário,
já que não &eacuteeacute; da conta do jornalista o que acontece
depois que revelou o que tinha que revelar.

Essa busca de verdade de interesse público implica a adesão
a uma deontologia, uma ética de procedimentos e que não
se limita á técnica de bem escrever, abarcando todas
as etapas da busca de verdade ou, para usar uma palavra mais precisa,
da busca da veracidade
dos fatos. E os fundamentos dessa deontologia são a honestidade
intelectual e a perícia. O jornalista ético é
o que age com a mesma honestidade intelectual que caracteriza o
bom cientista. Aí está então, em resumo, o
que vinha sendo minha visão da ética jornalística
e a essência do que eu passava aos meus alunos e colegas sempre
que havia oportunidade.

Tudo isso entrou em crise no incidente que vou relatar. Estava
dando a penúltima aula de um curso de pós-graduação
latu sensu denominado "Saúde e cidadania",
de um módulo sobre jornalismo social. A aula tratava de ética.
Minhas idéias provocaram uma reação alérgica
imediata e muito forte que culminou com uma rebelião da classe.
O mote geral era o de que eu estava exigindo posturas irreais, que
em todas as redações o jornalista tem que fazer o
que o patrão manda, e o que a publicidade manda. E choveram
os relatos pessoais de incidentes de supressão de matérias,
de opiniões, de trechos e de pautas.

Foi então que eu me dei conta que aquela era uma das classes
mais homogêneas que eu já havia tido: eram quase todos
jornalistas em serviço ativo, nas mais diversas redações,
desde a TV Globo até revistas técnicas setoriais.
E quase todos na faixa dos 30-35 anos de idade, ainda jovens mas
não novatos. A maioria já tinha uns dez anos de experiência
nas costas. Era a revolta de uma categoria toda contra a exigência
de uma ética.

Perguntei a eles qual a diferença entre um médico
que mata e um jornalista que mente? Ofendidos, não responderam.
Disse a eles que navegar é preciso, viver não é
preciso, ou seja, ninguém precisa ser jornalista. Também
não gostaram. Responderam que tinham sim o direito de serem
jornalistas sem precisar ser éticos. Por necessidade de sobrevivência.
Não sendo deles a culpa e sim do sistema, tinham esse direito.
Finalmente disse a eles que eu não estava ali para fazer
julgamentos morais, mas que eu só podia ensinar na escola
uma ética, a do jornalismo livre e comprometido com o interesse
público, que se desenvolveu nos melhores tempos do jornalismo
ocidental. Disse também que era um equívoco pensarem
que a violência intelectual que cada um deles sofria no dia-a-dia
das redações não teria conseqüências
de longo prazo. Disse que era um equívoco banalizarem essa
situação.

O incidente me abalou profundamente, mas depois comecei a rememorar
situações que já vinham de longe, e mostravam
que havia algo de furado na minha posição fundamentalista
de "ou tudo ou nada". Lembrei-me da descoberta de que
muitos alunos de jornalismo aprendem a "cascatear", ou
seja, a inventar matérias, já no primeiro ano do curso.
Forjam entrevistas que não existiram. Cozinham matérias
de outros sem se referir à autoria inicial. Digamos que isso
está ainda no universo dos malandragens da adolescência
escolar, como o hábito de colar em provinhas. Mas a dimensão
é outra, quando se sabe que cascatear é um traço
marcante do jornalismo brasileiro.É possível até
que esse verbo nem exista no jargão jornalístico de
outras culturas.

Lembrei-me também de um aluno que propôs uma reportagem
sobre uma desastrosa expedição do navio da USP à
Antártida, a partir de informações de um amigo
que participou da viagem. O barco quase soçobrou, porque
só um dos lados tinha holofotes. O freezer pifou e por isso
eles perderam todos os espécimes de "krills" que
haviam coletado. Finalmente estourou uma epidemia de diarréia
a bordo, mas nessa altura, o médico já havia saltado
do navio em Porto Alegre. Sugeri ao aluno que checasse bem as informações
e escrevesse a reportagem para o Jornal do Campus. Qual não
foi a minha surpresa quando o aluno me entregou o que eu chamei
de a antimatéria.Um texto que escamoteava tudo o que aconteceu,
com expressões, como "apesar de alguns problemas, terminou
relativamente bem a viagem do navio Besnard à Antartida…"
Quando questionei o aluno ele respondeu que não queria se
complicar criticando as autoridade da USP. Ou seja, esse jovem ainda
nem havia começado a vida de jornalista e já tinha
decidido que contar a verdade não faria bem à sua
carreira.

Comecei a mapear o destino dos meus alunos já formados:
a maioria engajou-se em projetos jornalísticos sem nenhuma
ambição intelectual, filosófica ou política.
E uma minoria significativa entendeu a profissão meramente
como uma boa oportunidade de ganhar dinheiro. Foi bastante frustrante
ver discípulos de grande valor intelectual, selecionados
por um vestibular competidíssimo e rigoroso, e com os quais
compartilhei boas experiências de jornalismo ainda no campus
universitário e desenvolvi uma relação de amizade,
se conformarem com uma visão tão banal dessa profissão
que eu via como tão fascinante ? e dessa forma aceitar uma
proposta banal para sua própria vida. Para eles a vida decididamente
não era uma meta-narrativa. Para eles a utopia era um conceito
morto, desprovido de qualquer significado.

Onde foram parar os sonhos?

Há dois anos, para substituir um professor, comecei a ministrar
a disciplina "Ética e deontologia do jornalismo"
e, de novo, surgiram os sinais de que algo estava errado nos fundamentos
do meu ensino. Num dos primeiros exercícios de classe, que
funcionou como uma espécie de pesquisa de opinião
dos alunos, ficou claro que para boa parte deles a existência
de um código de conduta para jornalistas era um absurdo.
Cada jornalista tinha o direito de pensar e agir a seu modo. Era
a demonstração de que no ambiente da pós-modernidade
é difícil haver um código de conduta porque
não existe a aceitação de valores dominantes
e rejeita-se a idéia da coerção, mesmo a coerção
moral.

Naquela classe não havia patrões para imporem a autocensura
e nem os inspirava tanto assim a idéia do oportunismo, do
jornalismo como uma forma de ficar rico. Esses alunos, ainda bem
jovens, de primeiro ano, rejeitavam genuinamente a possibilidade
de haver uma ética, porque isso estava em conflito com seus
valores fundamentais, acima de tudo os valores "individualismo"
e "tolerância" .

O desafio que temos pela frente portanto é de como reconstruir
uma ética jornalística em tempos pós-modernos.Uma
ética pertinente, que não paire no ar, descolada dos
jovens, como uma mera cobrança de culpas que eles nem sequer
reconhecem. Os códigos de ética diferem de país
para país, ou de tempos em tempos, justamente porque refletem
mudanças de ênfase ou de articulação
de valores das matrizes éticas de cada cultura ou de cada
tempo. De hábitos novos, surgem novos valores, que por sua
vez se aplicam na forma de normas de conduta, entre elas os código
aplicados de ética, como são os diferentes código
de ética profissionais, inclusive os dos jornalistas

Os diferentes códigos aplicados de ética são
portanto exercícios datados de hegemonia ideológica.
Seus processos de formulação e de legitimação
se dão em contextos discursivos também datados. Hoje,
vivemos um novo tempo discursivo, marcado pela negação
das utopias e pela ausência de um padrão ético
hegemônico, exceto no sentido metafísico de que a ausência
de padrões também seria um padrão. Fatores
objetivos contribuíram para a quebra de valores tradicionais.
As revoluções da biotecnologia, que inovaram o campo
da reprodução humana, alteraram definições
fundamentais como as do início da vida e do momento da morte.
O homem passou a ser definido como um animal simbólico e
não como ser racional. Sua relação com a natureza
passou a ser de uma solidariedade de destinos e não mais
de dominação. O fracasso do socialismo real deu lugar
á supremacia do neoliberalismo.

Nesse novo ambiente, as éticas socialmente constituídas
cederam espaço a uma ética definida em torno de cada
indivíduo, o que parece uma contradição em
termos, um paradoxo, já que as condutas pessoais só
podem ser avaliadas na sua articulação com outras
condutas. Pode ser uma ética provisória. O fato é
que hoje, dentro de limites bastante amplos, cada um tem o direito
de pensar e agir como quiser. O exemplo mais expressivo está
no campo sempre delicado da sexualidade: cada um pode adotar a preferência
sexual que quiser. É também uma ética de muitos
direitos e poucos deveres. Cada um tem o dever
de pensar antes de tudo em si mesmo
, em seu projeto de
vida. Uma ética em que o dever é definido como negação
do social como celebração da individuação
ética.

Não se trata da morte dos valores, mas da prevalência
de determinados valores como tolerância,
pluralismo, sucesso pessoal
e liberdade
individual
que no seu conjunto e principalmente na forma
como se articulam, definem uma matriz ética perversa pelos
critérios de virtuosidade de nossa ética agora ultrapassada.
Talvez devamos dizer que a ética da pós-modernidade
é marcada também pelo declínio dos valores
solidariedade e compaixão
que marcaram a humanidade nos pós-guerra, e pelo predomínio
de valores não valores,
como o ceticismo, o cinismo,
a negação da utopia
e da justiça social.

Não por coincidência, são esses não
valores que mais servem à etapa de superconcentração
do capital e de supremacia dos interesses do capital sobre os interesses
do homem, que marcam o mundo de hoje. Também nesse sentido,
a aparente ausência de uma padrão ético dominante
é apenas um verniz que encontra uma ética de antivalores
que se encaixa perfeitamente numa ideologia neoliberal dominante.

Por isso, vivemos hoje a mais básica de todas as dicotomias
da ética: a do indivíduo versus sociedade.
Sendo os códigos morais socialmente constituídos,
eles são hoje negados liminarmente por essa nova mentalidade
que contesta a própria possibilidade de haver uma recomendação
de conduta universal. Cada indivíduo nesses tempos pós-modernos
teria a faculdade de decidir sua própria conduta, cultivar
seus próprios valores. É a desqualificação
do direito de exigir determinados comportamentos. É o retorno
também à mais básica e fundamental de todas
as discussões éticas: sobre a necessidade ou não
de haver uma ética.

Se fossemos re-elaborar uma ética jornalística compatível
com o novo ambiente ético, teríamos que partir dos
valores dominantes dessa matriz e os rearticular de modo que percam
seu sinergismo perverso. A tolerância
poderia ser um dos valores dessa nova ética jornalística
desde que no contexto de uma matriz ética em que não
entre como antivalor, como negação da necessidade
de outros valores, e sim como indicativo da necessidade de aceitarmos
as diferenças com o legítimas. A tolerância
nesse contexto seria um valor importante para se antepor á
inclinação à exclusão, típica
do argumento neoliberal.

Certamente o sucesso pessoal,
um dos valores centrais da ética neoliberalismo, poderia
ser encaixado de tal forma numa matriz ética que se torne
socialmente útil. Nos momentos de maior desespero ético,
tenho apelado junto a meus alunos para o mais puro individualismo.
Pergunto a eles: vocês querem ser mais um jornalista medíocre
no meio dessa massa de jornalistas que nunca farão nada de
importante na vida? Provoco seu brio. Machuco sua auto-estima. Pergunto
onde foram parar seus sonhos? Se não têm sonhos como
todo jovem tem. Se não têm a ambição
de serem os melhores, os mais bacanas, os mais bem-sucedidos. É
um argumento cativante porque parte da mentalidade existente, fundada
na idéia do sucesso pessoal, do vencer na vida, chegando
de modo natural à concepção do grande jornalista,
ou seja do bom jornalista. E o bom jornalista é necessariamente
um jornalista ético.

A ética como luta política

O passo seguinte é discutir o que é ser bom jornalista
e como fazer sucesso na profissão, como se destacar da massa
dos medíocres. Lembrei-me que costumava terminar meus cursos
a alunos de quarto ano, quando eles já se preparavam para
enfrentar a competição ferrenha no mercado, com uma
aula em que dava dez sugestões para ser um jornalista bem-sucedido.
Por exemplo, eu aconselhava os alunos a evitaram de início
as grande redações e procurarem se robustecer em redações
pequenas e em áreas não estratégicas do jornalismo.
Dizia que jornalista bem-sucedido é aquele que sabe o que
os outros não sabem, que tem fontes que os outros não
têm. Ou seja, trabalhava em prol do jornalismo de qualidade,
até mesmo validando a idéia perversa da competição.

A maioria das sugestões diziam respeito ao processo de acúmulo
de conhecimento e de fontes, à criação de um
saber e de uma competência
jornalística. Dizia, por exemplo, que o jornalista no Brasil
nunca deve entregar os documentos e materiais para os arquivos da
empresas, e sim montar seu próprio arquivo. As empresas perdem
esses materiais: além disso te demitem sem mais essa ou aquela,
arbitrariamente. E mais, eu dizia, em determinadas ocasiões
faça reportagens, aceite incumbências pesadas, para
ter acesso a fontes e materiais que de outra forma seriam de acesso
mais difícil. O saber
passa a se localizar no jornalista e não nos arquivos das
empresas. Assim o jornalista vai se tornando um sujeito do conhecimento
e um ser epistêmico. Também um autodidata, que vai
crescendo intelectualmente á medida que vai suprindo todas
aquelas lacunas de conhecimento
deixadas pelos currículos escolares, que como nós
sabemos são montados de modo arbitrário.

O saber é alérgico ao mau jornalismo, à manipulação
desonesta da informação. Por isso as grandes empresas,
quando querem praticar o jornalismo desonesto, mandam repórteres
jovens que ainda não acumularam conhecimento, que não
têm memória histórica. Certamente o saber
pode ser um valor central a numa nova ética porque ele tem
essa característica de tornar seu portador naturalmente resistente
à desonestidade intelectual e à manipulação.

A escola tem um papel fundamental na procura de uma nova ética,
porque através dela se desenvolve no jovem a prontidão
para o saber e o conhecimento. Esse "ser epistêmico",
como nós o chamamos uma vez numa das reformas de nosso currículo,
vai estabelecer com o mercado um conflito
ético
feito de confrontos com editores autoritários
e proprietários de mentalidade oligárquicas. Por um
lado, isso exige do jornalista a adoção de certas
estratégias de sobrevivência. Por outro lado, esse
conflito altera a qualidade do próprio mercado. Trata-se,
nesse sentido, de um conflito necessário, um conflito
produtivo
. E o fim da falsa discussão se a escola
educa para o mercado ou contra o mercado.

É na escola também, e apenas na escola, que o aluno
tem hoje o aporte de conhecimento sobre as teorias da ética
e da moral necessárias para seu posicionamento especifico
no debate ético. Não temos aqui instâncias como
comissões de ética ou direitos como a "cláusula
de consciência", que permitem o acompanhamento regular
do debate ética durante a carreira do profissional. Os poucos
ombudsman que temos, já está visto, limitam-se a corrigir
erros localizados de informação ou erros gramaticais,
com isso legitimando os grandes processos de supressão da
verdade e da liberdade do jornalista.

Na busca de uma ética não metafísica, contemporânea
e condizente com o ambiente discursivo da pós-modernidade,
há três outros aportes possíveis. O primeiro,
é o que cobra a qualidade do jornalismo e da informação
como um dos direitos do consumidor.
O consumidor em duas dimensões; como indivíduo que
paga por um produto e tem o direito de receber um produto de qualidade,
e o consumidor como cidadão, membro de uma sociedade que
tem o direito de informar e ser informado como parte de seus direitos
de cidadania. Essas são abordagens compatíveis com
a mentalidade neoliberal e portanto mais fáceis de serem
trabalhadas.

Uma segunda abordagem é a denúncia da supressão
da liberdade do jornalista no seu local de trabalho como um ato
de "assédio moral".
Esse é um conceito novo, como se vê
fundado no indivíduo e que naturaliza por assim dizer o direito
político à liberdade intelectual. Através dele,
pode-se fazer a crítica da práticas autoritárias
nas redações a partir de um discurso tipicamente pós-moderno
e portanto com legitimidade discursiva. Notem o paralelismo do conceito
de "assédio moral", com o de assédio sexual.

Finalmente, quero terminar com o que considero a maior dimensão
do problema ético que vivemos hoje no Brasil, sua dimensão
política. Está claro, pela intensidade com que os
meios de comunicação de massa são hoje manipulados
pelos grupos dominantes para se manter no poder, que nosso principal
problema ético hoje não é de natureza moral
e sim política. A supressão dos ditames da ética
jornalística clássica e a banalização
do assédio moral nas redações existem porque
são instrumentais no uso dos meios de comunicação
de massa pelas classes dominantes para sua perpetuação
no poder.

Isso significa que a luta por uma nova ética é também
e acima de tudo uma luta política. E portanto essa luta tem
que ser condicionada por algumas das leis da política, tais
como ser referida a interesses sociais e desenvolver-se através
de etapas e objetivos táticos e estratégicos bem definidos.
Estar articulada às demais lutas políticas do momento.
Lutas como pela instalação do Conselho de Comunicação
Social, pela cláusula de consciência, pela limitação
à concentração na indústria da comunicação.
Na verdade, poderíamos organizar todas essas ações,
sob a retranca da ética. Porque, entre tantos paradoxos de
nossos tempos, um deles é de que a pós-modernidade
até aceita uma luta pela ética, desde que colocado
em termos morais e pessoais, e não político-ideológicos.

De qualquer forma, a proposta de uma nova ética que resgate
o pluralismo e da verdade a serviço público, e re-elaborada
como construção pedagógica de um novo jornalista
contra-hegemônico, é hoje uma proposta necessária
e importante, para a sociedade e para o jornalismo.

(*) Jornalista, editor do boletim
Cartas Ácidas <www.www.agenciacartamaior.com.br>,
professor da ECA-USP, autor de Jornalistas e revolucionários
(Scritta), Jornalismo Econômico (Edusp) e outros