NÚMERO-NOTÍCIA
Antonio Fernando Beraldo (*)
Dia destes foi divulgado o resultado uma pesquisa Vox Populi sobre "credibilidade da palavra" de alguns "tipos de gente" (sic). Os "tipos de gente" listados foram: criança, padre, professora, jornalista etc., e até político. O tipo de gente "criança" ganhou disparado, sendo creditado por 42% dos entrevistados. Depois veio o tipo de gente "padre", com a metade (21%) e o tipo de gente "professora" com 14% (não foi elencado o tipo de gente "professor"). Lá atrás vem o tipo de gente "jornalista", com 7%. O resto dos tipos de gente, somados (advogados, policiais, artistas de televisão, bóias-frias, incas venusianos, anões besuntados, manicures & pedicures & bordadoras de calcinhas, cachorros do Magri, técnicos de futebol), incluindo aí o tipo de gente "nenhum deles", mereceu apenas perto de 16% de acreditância (neologismo imediato) ? ou seja, nada.
Depois que você parar de rir, é curioso notar que, além dos percentuais múltiplos de 7 (42, 21, 14, 7), o tipo de gente "criança", a mais votada, não tem sua palavra válida nos tribunais. Daí que é preciso, urgente, modificar o código dos processos civil e penal, restringir a idade dos eleitores para algo "entre zero e dez anos", e trocar o nome do instituto para Vox Pueri, ou algo equivalente (meu latim dos tempos de coroinha já não é lá essas coisas).
Em setembo do ano passado, quando ainda subia a fumaça do World Trade Center, uma pesquisa diferente dava só 15% de credibilidade a jornalistas. Houve muita choradeira, mas, infelizmente, esta é a triste realidade: quase ninguém acredita em políticos (1%) ou em artistas de TV (1%). Como nossa grande mídia é 99% preenchida com isso, reclamar por quê? Olhe que 7% estão de bom tamanho, como veremos a seguir.
"Confiança é a primeira que morre", já dizia vovó Maria Conga [veja remissão abaixo]. A mídia, em geral, engole cifras com um apetite de urso e um estômago de avestruz, e as repassa aos distintos leitores e espectadores sem a mínima crítica, salvo raras e notabilíssimas exceções, como a dos jornalistas Rubens Valente e Eduardo Scolese, da Folha de S.Paulo. Depois de muito trabalho investigativo, demoliram os quantitativos do "maior programa de reforma agrária do muuuuuundo", mostrando algo que o humorista José Simão provavelmente descreveria como a tucanagem dos números. Consultado o sr. FHC, ficamos sabendo, entre outras coias, que a diferença entre "família assentada" e "família instalada" é apenas de ordem técnica, apesar de o governo usar uma ou outra categoria quando melhor lhe aprouver. Daí que os tais "600 mil assentados" incluem até o "tipo de gente" que estava passando e, cansada de ficar em pé, permitiu-se ser numericamente assentada.
Do cheiro de pernada que exala o evento anterior, seguiu-se a desconfiança de outros números:
1. As estatísticas coletadas na área da Segurança estão sendo colocadas sob desconfiança, principalmente as do Rio de Janeiro, onde a equipe do ex-governador Garotinho deixou de contabilizar algo em torno de 7.500 roubos de carros entre 2000 e 2001, o que dá algo de 11 roubos de carro por dia, não notificados no Diário Oficial (O Globo, 3/5). Segundo o chefe da Polícia Civil, Zaqueu Teixeira, deixaram de aparecer nas estatísticas oficiais cerca de 20% dos homicídios, 28% dos roubos em ônibus e 26% dos assaltos a pedestres e o número de roubos de celulares jamais foi divulgado. E, já que não eram computados os mortos em confrontos com a polícia, e os cadáveres desovados em cemitérios clandestinos, os números reais dos homicídios podem ser 50% a mais do que o divulgado pelo governo passado. Há que se tomar cuidado pois, daqui a pouco, quando começarem a apercer os números reais, algum jornal "de campanha" pode gritar em manchete que "Explode a criminalidade no governo da Bené!"
Em São Paulo, ao que consta até agora, a maquiagem é bem mais discreta, mas já mereceu até editorial da Folha. E todos os candidatos ao governo estão batendo na mesma tecla: segurança pública.
2. Na área da Saúde há um complicador: a subnotificação de casos. Seja por ignorância, seja por vergonha, seja até por "modismo", os números das incidências não são nada confiáveis. Quando há um surto de dengue, em que os possivelmente infectados sobem à casa dos centenas de milhares, ninguém consegue saber a extensão da epidemia e os administradores de recursos para a Saúde lidam com estimativas ? que o "tipo de gente" jornalista costuma encarar como números "firmes". Mas quando José Serra discursa que o governo dá de graça remédios para o povo (vaias), mas que o povo não tem acesso aos remédios (mais vaias) por um problema de distribuição (muito mais vaias), aí é de lascar … Por que será que o "tipo de gente" candidato tucano não falou do programa de assistência aos aidéticos, considerado um modelo no mundo inteiro? Por que será que não falou da vitória que foi a quebra de patentes? Falta de lobby junto à mídia?
3. Falta de lobby era o que não tinha Paulo Renato Souza, ministro da Educação, hoje um tanto fora dos gramados. Mas nos últimos sete anos e meio (que o governo insiste que são oito) o senhor ministro freqüentou diariamente as páginas de jornais, rodeado de números coloridos de rosa. Segundo FHC, foi promovida uma "revolução silenciosa" na Educação: temos cerca de 97% das crianças dentro de sala de aula. É realmente um número e tanto, mas que não leva em consideração que tipo de sala de aula é oferecida, que tipo de aula é dada e que tipo de salário é pago aos "tipos de gente" professoras. O ensino médio no país foi abandonado (para usar uma palavra mais branda), como mostram outros números que, estes sim, deveriam sair todos os dias nos jornais: os índices de performance dos alunos que estão prestes a "sair para o mercado" ou entrar para uma faculdade.
Em Minas Gerais, chega a 80% o índice dos que não conseguem entender enunciados simples de Física, Química ou Biologia. Outras tragédias são o Português e a Matemática, embora a gente passe a vida escolar inteira com estas duas disciplinas sempre no currículo. Chegou ao ponto em que a Universidade Federal de Juiz de Fora resolveu retirar do vestibular a prova de Redação. As redassões eram tão "padronizadas" pelos cursinhos que pareciam cópias umas das outras, fosse qual fosse o tema. Da "clonagem de seres humanos" ao "desmatamento da Amazônia", era tudo uma coisa só.
Vamos ficar por aqui, embora o assunto seja inesgotável. É tanta informação truncada, é tanto dado incorreto, é todo este oceano de números oficiais em que nos afogamos, que não espanta que a mídia pague o pato por uma culpa que não é totalmente sua. O nível de confiança dos governos (ou políticos) anda lá pelo subsolo, e a mídia desatenta que reproduz estas "informações oficiais" leva a rebarba desta desconfiança.
***
Da crítica a esta preguiça de criticar, a estas manipulações,
ingenuidades e piruetas estatísticas é que nasceu
minha colaboração com este Observatório,
lá se vão mais de quatro anos. Do artigo de estréia,
final de 1997, até agora, o assunto foi quase sempre este:
o número-notícia. E, quando ajudo a soprar as velinhas
dos seis anos de vida, tenho absoluta certeza que nosso nível
de confiança (acredito que possa dizer assim) só fez
crescer. Vida longa ao OI! (A.F.B.)
(*) Engenheiro, professor do Departamento
de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora
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